“Na minha saída da Comissão, a gente estava em uma situação muito complicada. A Comissão sofreu um golpe da Secretaria-Geral da OEA. Não tenho nenhum problema de falar, falo em on. O secretário-geral da OEA [o uruguaio Luis Almagro] deu um golpe na Comissão Interamericana ao não renovar o contrato do secretário executivo, porque era atribuição exclusiva da CIDH tomar essa decisão”, afirma Joana Zylbersztajn.

Advogada de direitos humanos, ela atuou por cerca de três anos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), entre o começo de 2017 e outubro de 2020. Primeiro, foi assessora do então secretário executivo da organização, Paulo Abrão, lidando diretamente com os sete comissários da CIDH. Depois, foi coordenadora de monitoramento da América do Sul e, por fim, coordenadora da seção de medidas cautelares do órgão interamericano.

Para Joana, direitos humanos são “um conceito construído historicamente, com base em luta, para definir o que pertence a todo mundo que é gente”. Mestre e doutora em direito constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), ela tem sua atuação vinculada aos direitos humanos desde a época da graduação em direito, quando começou a trabalhar na ONG Centro de Direitos Humanos. Lá, ficou entre 2002 e 2008.

Passou também pela então Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência e pela Secretaria Geral da Presidência, entre 2010 e 2013. No governo federal, participou da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, que fez a atualização e revisão que gerou o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Após a experiência em Brasília, Joana foi chefe de gabinete da então recém-criada Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, durante a gestão de Fernando Haddad, entre 2013 e 2014. Em seguida, trabalhou com relações governamentais na Natura, de onde saiu para trabalhar na Comissão Interamericana.

Nesta entrevista, ela explica seu entendimento do que são os direitos humanos, aborda bastidores, os critérios utilizados pela CIDH e traça perspectivas para o Sistema Interamericano. A versão resumida da conversa, feita em 20 de novembro de 2020, está abaixo e você pode ler a entrevista na íntegra aqui.

Advogada de direitos humanos deixou a CIDH logo após polêmica saída do secretário executivo - Foto: Arquivo pessoal

Qual a importância do Sistema para a proteção dos direitos humanos no continente?

O Sistema é essencial como sistema. Ele precisa fazer parte do sistema de justiça de proteção dos direitos humanos, que começa nos Estados, começa ali na delegacia de polícia, quando se faz um boletim de ocorrência de uma violação. E veja bem, não estou falando em instâncias, porque o Sistema Interamericano não pode ser uma nova instância. Ele não faz parte do mesmo sistema [de justiça], ele é parte de um sistema de proteção aos direitos humanos. A justiça dos Estados tem que participar desse sistema, porque o Sistema Interamericano não pode substituir. Não tem capacidade, não tem como, não vai fazer, e não é essa a ideia.

E também [é essencial] para estabelecer quais são os parâmetros, os 'estándares', em espanhol. O Sistema vai delinear as diretrizes de como deveria ser a proteção de direitos humanos em cada um dos Estados.

Só que é importante também lembrar, que a CIDH não tem só o sistema de petições e casos no seu mandato. Isso precisa ser visto e reforçado, porque os outros pilares do mandato da Comissão, talvez garantam a maior democratização do acesso à proteção dos direitos humanos.

O que são direitos humanos e qual a sua importância?

Direitos humanos são um conceito criado pela civilização. Não são algo que se encontra na natureza. São um conceito. Aí, a construção desse conceito, é feita historicamente. O que são direitos humanos em um determinado momento da história, provavelmente vai ser diferente do que são direitos humanos em outro momento da história. E não só em momentos históricos, mas também em culturas diferentes.

A Declaração Universal talvez inaugure esse momento do conceito de direitos humanos contemporâneo, ao dizer que os direitos humanos são universais, no sentido de que são para todas as pessoas, e que todas as pessoas são iguais, pelo simples fato de serem pessoas. A universalidade passa a ser para seres humanos. Você não pode ter um direito retirado por alguma característica sua, por ser mulher, por ser muçulmano, por ser gay, por nenhum motivo especial. E é construído historicamente por luta, por batalha, por disputa, por avanço.

Estamos em uma permanente evolução dessa resposta, do que são os direitos humanos em seu conteúdo. Mas são um conceito construído historicamente, com base em luta, para definir o que pertence a todo mundo que é gente. Acho que esse seria o meu conceito-resumo.

Um apontamento de pessoas das organizações que costumam peticionar, algo que ninguém soube explicar muito bem é quais os critérios da Comissão para admitir caso, para julgar o mérito de um caso e para enviar um caso para a Corte. Esses critérios são claros ou é uma coisa um pouco abstrata?

São bastante claros. A Comissão segue sempre o que está no regulamento. Quanto à admissibilidade dos casos, eles lançaram um digesto de admissibilidade [Digesto sobre Decisões de Admissibilidade, lançado em março de 2020], que são todos os critérios mais esmiuçados, que vêm todos do regulamento. Isso não é nenhuma novidade. Principalmente o que não se admite, que é o mais importante.

O envio para a Corte é bastante simples. Se o Estado cumpriu a decisão e tem concordância dos peticionários, publica o relatório e aí vai fazendo seguimento. Se é só uma reparação [pecuniária], pagou, pronto, acabou. Mas se tem que construir alguma coisa, mandar um projeto de lei, vai fazendo seguimento da decisão. E quando não tem cumprimento, manda para a Corte.

Nesse “mandar” para a Corte, muitas vezes tem muito pedido de prorrogação de prazo pelos Estados, falando que não conseguiu entregar relatório ainda, mas vai entregar. A Comissão está, inclusive, discutindo atualmente, de começar a colocar limite para pedido de prorrogação. Tem muitos casos que os peticionários não querem que vá para a Corte, porque eles acham que na Corte vão perder, ou vai ser frágil, ou vão ter menos acesso. Às vezes os peticionários mesmo ficam segurando para mandar para a Corte.

Só explicando melhor, o que as organizações com quem eu conversei colocaram como pouco claro, não são os critérios a partir do momento que a Comissão passa a analisar, mas os critérios para a Comissão escolher o que vai analisar. Eu compilei o tempo que demorou entre a petição e a admissão, ou entre a petição e o mérito em alguns casos. Isso varia bastante, desde três, quatro anos. No último caso que a Corte sentenciou o Brasil, da Fábrica de Fogos, foram dezesseis anos até a Comissão analisar o mérito…

Sim, é isso mesmo. Isso historicamente sempre foi um problema. Casos do Brasil, por exemplo, ficaram anos sem ter nenhum relatório de admissibilidade. Anos. O caso da invasão dos EUA no Panamá, anos parado. Tem muita coisa mal explicada, mal andada, mal organizada, historicamente, sim. E essa foi uma das coisas que se organizou nos últimos quatro anos, e na minha opinião, foi um dos motivos que derrubou o secretário executivo [Paulo Abrão]. Porque passou-se a ter critérios objetivos para o andamento dos casos.

O primeiro critério objetivo é ordem cronológica, que não se seguia. A Comissão sempre foi muito permeada por esses interesses e andava com os casos que interessavam. Os casos que não interessavam foram ficando esquecidos. Quando tem uma proposta para reorganizar, para ficar claro quais são os casos que estão atrasados, para pôr na ordem e tocar tudo, as pessoas não gostaram. Um caso que demora dois anos vai começar a demorar seis, e um caso que demorava 26 vai demorar também seis... Como assim? Eu acho que esse foi um dos motivos que causou a queda do secretário executivo. Começou a ter critérios de processamento.

Qual tem sido, nos últimos anos, a relação do Brasil com o Sistema? O Brasil tem cumprido as decisões da Comissão e da Corte? Nos outros países essa relação é diferente?

Quando eu cheguei na Comissão, eu fui ver muita coisa, e entender como a CIDH é de fato muito mais efetiva, incisiva, importante e impactante em outros países do continente. Muito forte, claro, em países pequenos e da América Central. Bastante relevante. Mas também em países como México, Argentina, Colômbia, que são países bem maiores. Os Estados levam muito a sério a CIDH.

Eu atribuiria à questão do idioma, primeiro, essa barreira da Comissão com o Brasil. Tanto a CIDH não entende o Brasil, quanto o Brasil não entende a CIDH. Depois, uma questão de história, mesmo. Eu acho que [durante] as ditaduras da América Latina, a Comissão foi omissa quanto à ditadura brasileira. Especialmente porque era muito o começo da CIDH, tinha uma composição com representante brasileiro, que era ligado ao governo militar e não deixava as coisas no Brasil andarem.

O Brasil sempre tem um comissário eleito. São só sete comissários para 35 países, e o Brasil sempre tem. Normalmente, Brasil, Colômbia, México e EUA, normalmente. Mas nessa, por exemplo, não tem nem EUA e nem Colômbia, eles não conseguiram eleger na última Assembleia Geral. E o Brasil sim. [O Brasil é o segundo país com mais comissários na história (6), empatado com a Venezuela e atrás dos EUA.]

Agora, tem comissário, mas não segue as decisões da Comissão. Da Corte, sim. Eu entendo que a Corte eles levam a sério, no seu papel jurisdicional. A Comissão, eles respondem tudo, não deixam de responder – isso eu tô falando atualmente, porque em cada fase dos governos muda essa relação. Mas nos últimos anos em que eu estive lá, o Brasil sempre respondia as correspondências da Comissão. Responde no prazo, responde com cuidado. Mas não toma nenhuma providência, em nada. Só começa a tomar providências efetivamente quando vai para a Corte.

No texto que você publicou sobre a sua saída da Comissão, você diz que “nós estamos enfrentando tempos difíceis na região, e um Sistema verdadeiramente comprometido com a defesa dos direitos humanos será essencial”. Quais as perspectivas para o Sistema nos próximos anos?

Na minha saída da Comissão, a gente estava em uma situação muito complicada. A Comissão sofreu um golpe da Secretaria-Geral da OEA. Não tenho nenhum problema de falar, falo em on. O secretário-geral da OEA [o uruguaio Luis Almagro] deu um golpe na Comissão Interamericana ao não renovar o contrato do secretário executivo, porque era atribuição exclusiva da CIDH tomar essa decisão.

Isso em um contexto em que o mesmo secretário-geral está sendo fortemente acusado de ter feito um golpe em um Estado-membro, que foi o caso da Bolívia. A gente tinha o órgão que acolhe o Sistema Interamericano [a OEA] dirigido por uma pessoa que estava respaldada pelos Estados para violar institucionalidades democráticas e defesa dos direitos humanos. Além das violações em si, havia uma fragilidade da própria Comissão em responder às violações.

Eu acho que esse cenário deu uma melhoradinha com a vitória e a ascensão ao poder na Bolívia, que retoma um pouco a institucionalidade democrática. Eu não estou falando do partido que ganhou, estou falando de uma eleição e de uma retomada do poder constitucional no país. Acho que a eleição americana também recoloca um pouco a questão das institucionalidades democráticas que estavam sendo questionadas ali.

O que ainda não sei é qual a será a capacidade da CIDH estar à altura desse momento do continente. Ainda está complicado. Precisa ver como vai ser a geopolítica da região nos próximos meses. Disso depende a força da Secretaria-Geral da OEA poder interferir mais ou menos na estrutura da Comissão e como ela vai responder.

Outro elemento importantíssimo: em junho, tem Assembleia Geral da OEA, e ali se definem três comissários e quatro juízes, se eu não estou enganada. Dependendo de como estiverem os governos ali, você pode criar uma situação pro Sistema, que vai demorar muitos anos para reverter.

Essa movimentação política no continente tem que ser observada com muita atenção nos próximos meses. Como vai ser a articulação da sociedade civil, dos Estados, para a eleição dessas pessoas. Acho que isso vai definir os próximos anos desses órgãos, e como eles vão ser capazes de responder a essa queda de braço polarizada que a gente tem no continente hoje, com agendas tão divergentes.

Você fala de direitos humanos como conceito em constante evolução, e construído a partir de lutas. O cenário para os próximos anos é de retrocesso nesse conceito?

Eu acho que não mais. Acho que o momento de refluxo já passou. Não sei se posso falar isso. Estou falando isso e pensando. Eu tenho um pouco a sensação, não tenho elementos concretos, mas a minha sensação é de que o pior já passou, do ponto de vista de refluxo, de retrocesso. Acho que a gente ainda tem uma caminhada de luta para não retrocesso, para manutenção. Acho que a gente vai conseguir evoluir pouco nos próximos anos, e a nossa luta ainda vai ser para a permanência do que foi garantido.

Eu consigo ver evolução em duas áreas: gênero/raça, em que talvez a gente consiga evoluir ainda alguma coisa. Especialmente na parte de racismo, a gente consiga empurrar algo ainda nos próximos anos, de evolução mais visível.

E também em meio ambiente. Acho que é uma pauta que dá para avançar porque as pessoas estão começando a ficar com medo. É menos ideológico, porque quem é contra o meio ambiente é mais desse grupo mais radical, antidireitos, de direita. Os liberais do mundo, um pouco mais racionais, já estão embarcando na agenda ambiental. Já entenderam que não tem muito o que fazer.