Ficha Técnica

Vítimas: Povo Indígena Xucuru
Peticionários e/ou Representantes: Movimento Nacional de Direitos Humanos/ Regional Nordeste, Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (Gajop) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi), além da Justiça Global
Juízes: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Presidente; Eduardo Vio Grossi, Vice-Presidente ; Humberto Antonio Sierra Porto, Juiz; Elizabeth Odio Benito, Juíza; Eugenio Raúl Zaffaroni, Juiz; e L. Patricio Pazmiño Freire, Juiz

Cronologia

Na CIDH

16 de outubro de 2002

Petição

29 de outubro de 2009

Relatório de Admissibilidade

28 de julho de 2015

Relatório de Mérito

Na Corte

16 de março de 2016

Submissão pela CIDH

5 de fevereiro de 2018

Sentença

Supervisão do cumprimento

Leia entrevista do Réu Brasil com Carol Hilgert, assessora jurídica do Cimi


Resumo

Oitavo caso brasileiro analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a sentença do Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros versus Brasil data de 5 de fevereiro de 2018.

As primeiras referências históricas da habitação do Povo Xucuru no agreste de Pernambuco remontam ao século XVI. O processo demarcatório da Terra Indígena Xucuru, localizada em Pesqueiras (PE), iniciou-se em 1989, pouco após a promulgação da Constituição de 1988, que garante aos indígenas a posse das terras tradicionalmente ocupadas. A demarcação, que transcorreu de forma lenta, somente foi finalizada 16 anos depois, em 2005. Nesse meio tempo, a demora no processo provocou atritos entre indígenas e não indígenas, resultando na morte de lideranças Xucuru, inclusive de um cacique.

Mesmo depois da finalização, o Estado não promoveu a desintrusão completa do território nos anos subsequentes, até a sentença da Corte Interamericana. Além disso, dois processos judiciais, um de reintegração de posse, e outro de anulação do processo administrativo de demarcação, ainda não tinham solução definitiva à época.

Em outubro de 2002, o Movimento Nacional de Direitos Humanos/Regional Nordeste, o Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (Gajop) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as violações de direitos humanos sofridas pelos membros do Povo Xucuru. Questionado, o Brasil apontou não esgotamento dos recursos internos, mas a CIDH refutou a alegação e produziu relatório de admissibilidade da petição em outubro de 2009.

Em julho de 2015, a Comissão Interamericana produziu relatório de mérito, considerando o Brasil responsável por violações de direitos humanos, em prejuízo do povo Xucuru e de seus membros. O órgão emitiu uma série de recomendações ao Estado. Em março de 2016, após considerar que o Brasil não havia avançado substancialmente no cumprimento das medidas, a CIDH remeteu o caso à Corte Interamericana. Considerando a data de reconhecimento da competência do Tribunal pelo Brasil (dezembro de 1998), a Comissão submeteu à Corte “as ações e omissões estatais” que ocorreram ou continuaram ocorrendo após esse marco temporal. Já durante a tramitação perante o Tribunal, a Justiça Global tornou-se representante do caso.

A Corte Interamericana admitiu parcialmente uma das exceções preliminares interpostas pelo Estado e negou as outras três, dando prosseguimento ao julgamento. Na mesma sentença, condenou o Brasil pela violação dos direitos à garantia judicial de prazo razoável, à proteção judicial e à propriedade coletiva, em relação com a obrigação de respeitar e garantir os direitos, previstos na Convenção Americana, em detrimento do povo Xucuru e seus membros.

Entre as determinações da Corte ao Estado brasileiro estão o pagamento de custas e gastos, de US$ 1 milhão em indenização, assim como a publicação da sentença. Além disso, o Tribunal determinou que o Brasil garantisse, “de maneira imediata e efetiva”, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, bem como concluísse o processo de desintrusão, efetuasse o pagamento das indenizações por benfeitorias e removesse “qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão”.

O Brasil efetivou as publicações da sentença nos espaços ordenados pela Corte e, no início de 2020, pagou a reparação devida ao povo Xucuru. Os dois processos judiciais que ameaçam o direito de posse do povo indígena, porém, ainda seguem tramitando, sem uma solução definitiva. Além disso, o Estado brasileiro ainda não finalizou a desintrusão completa da Terra Indígena Xucuru, tampouco concluiu o pagamento de indenizações por benfeitorias.

O procedimento de supervisão do cumprimento da sentença segue em aberto, quase três anos após a decisão. O único relatório de supervisão publicado pela Corte, que versa somente sobre as publicações da sentença, data de novembro de 2019.

Xicão Xucuru foi assassinado durante processo demarcatório do território de seu povo - Foto: Os Brasis e suas memórias

Contexto e trâmite no Brasil (até a sentença da Corte)

Os direitos dos povos indígenas sobre suas terras, territórios e recursos são garantidos pela Constituição Federal de 1988. Seu artigo 20 determina que as áreas indígenas são propriedade da União, que concede a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos aos indígenas.

Atualmente, o processo de demarcação das terras indígenas, que oferece maior segurança jurídica a esse direito, é regulamentado pelo Decreto No. 1775/96 e pela Portaria do Ministério da Justiça No. 14/96. Tal processo compreende cinco etapas, ocorrendo por iniciativa e sob a orientação da Fundação Nacional do Índio (Funai).

O processo administrativo tem início quando a Funai toma conhecimento de uma terra indígena, ou a pedido dos próprios indígenas ou de organizações não governamentais. Na primeira etapa, de identificação e delimitação, é feito um estudo antropológico. Caso ele seja aprovado, a Funai publica relatório e, a partir disso, estados, municípios e demais interessados têm 90 dias para apresentar contestação.

Na fase de declaração, a Funai analisa as objeções e emite parecer. Caso seja positivo, o procedimento administrativo é enviado para o Ministério da Justiça. Se a pasta ministerial aprovar, a terra é declarada mediante uma portaria, que determina a demarcação administrativa da área. Na etapa seguinte, há a demarcação física, com um estudo detalhado da área.

Na quarta etapa, há a homologação por decreto presidencial, ato que reconhece juridicamente a nova terra indígena, bem como a ocupação indígena. A partir disso, são considerados nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, domínio e posse das terras, sendo extintos qualquer título de propriedade sobre a área demarcada e autorizada a retirada dos ocupantes não indígenas. Na quinta e última etapa, a Funai promove o registro imobiliário do território na comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União (SPU).

Uma das terras indígenas atualmente reconhecida ocupa território no agreste pernambucano. As primeiras referências históricas do povo indígena Xucuru remontam ao século XVI e uma série de documentos históricos do governo local descrevem as áreas ocupadas pela população ao longo do século XVIII. Atualmente, o povo Xucuru de Ororubá, composto por cerca de 2,3 mil famílias, ocupa uma área de 27.555 hectares, no município de Pesqueira (PE), a 216 km de Recife. Além dos mais de 7,7 mil moradores da Terra Indígena (TI) Xucuru, que têm organização política e estruturas de poder próprias, há cerca de 4 mil indígenas vivendo fora da TI, na cidade de Pesqueira.

O processo demarcatório do território Xucuru iniciou-se em 1989, quando foi criado Grupo Técnico para realizar a identificação e a delimitação da área. À época, o procedimento era regulamentado pelo Decreto No. 94.945, de 1987. O Relatório de Identificação, emitido em setembro de 1989, mostrou que os Xucuru tinham direito a uma área de 26.980 hectares. O parecer foi aprovado pelo presidente da Funai em março de 1992, e em maio do mesmo ano, o Ministério da Justiça concedeu a posse permanente da terra mediante uma portaria. Em 1995, a extensão do território Xucuru foi retificada, determinando-se área de 27.555 hectares, ocorrendo posteriormente a demarcação física do território.

Em janeiro de 1996, porém, foi promulgado o decreto que atualmente regulamenta o processo demarcatório, dando direito a terceiros interessados no território de impugnar o processo e de interpor ações judiciais por seu direito à propriedade, além de solicitar indenizações. Nos processos que já estavam em andamento, os interessados tinham 90 dias para manifestar-se, a partir da publicação do decreto.

Após a mudança normativa, foram interpostas 270 objeções contra o processo demarcatório do território Xucuru por interessados, incluindo o município de Pesqueira. Em junho de 1996, o Ministério da Justiça declarou todas as objeções improcedentes, mas os interessados apresentaram Mandado de Segurança perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em maio de 1997, o STJ decidiu a favor dos terceiros interessados, concedendo um novo prazo para as objeções administrativas. As novas objeções foram também recusadas pelo Ministro da Justiça, que reafirmou a necessidade de se continuar a demarcação.

Em 30 de abril de 2001, após período em que a Corte não dispõe de informações sobre o processo, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, expediu decreto presidencial que homologou a demarcação da Terra Indígena Xucuru, publicado no Diário Oficial da União dois dias depois.

Dando seguimento ao processo demarcatório, a Funai solicitou o registro do território junto ao Registro de Imóveis de Pesqueira, em 17 de maio de 2001. Fora do prazo, porém, em agosto de 2002, o Oficial de Registro de Imóveis de Pesqueira interpôs uma ação de suscitação de dúvida, questionando aspectos formais da solicitação. A legalidade do registro de imóveis foi emitida pela 12ª Vara Federal em 22 de junho de 2005, sendo executada a titulação da Terra Indígena em 18 de novembro daquele ano.

O processo de cadastro dos ocupantes não indígenas foi concluído em 2007, resultando em 624 áreas. O pagamento de indenizações por benfeitorias de boa-fé, previsto no processo de demarcação, foi iniciado em 2001, e o último pagamento ocorreu em 2013, totalizando 523 ocupantes não indígenas indenizados.

Das 101 terras restantes, 19 pertenciam aos próprios indígenas, e as outras 82 eram de não indígenas, sendo que 75 dessas áreas foram ocupadas pelos Xucuru entre 1992 e 2012. Até a emissão da sentença da Corte Interamericana, 45 ex-ocupantes não indígenas ainda não haviam recebido indenização e seis não indígenas ainda permaneciam dentro da Terra Indígena Xucuru.

Paralelamente ao processo de demarcação da TI, ocupantes não indígenas moveram ações judiciais contra o povo Xucuru. Em março de 1992, Milton do Rego Barros Didier e Maria Edite Didier apresentaram uma ação de reintegração de posse em detrimento dos Xucuru e também do Ministério Público Federal (MPF), a Funai e a União. A ação se referia a uma fazenda de cerca de 300 hectares que estava dentro do território e que havia sido ocupada por cerca de 350 indígenas em 1992.

Após conflito de competência que atrasou o trâmite do processo, a ação foi enviada à 9ª Vara Federal de Pernambuco, que em julho de 1998 emitiu sentença favorável aos não indígenas. Tanto Funai, quanto o MPF, a União e o povo Xucuru apresentaram recursos à decisão. A maioria deles foi negado sucessivamente, em 2003, 2007 e 2012, pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) e também pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Um embargo de declaração movido pela União teve decisão favorável em maio de 2011, mas a sentença da ação de reintegração de posse transitou em julgado em 28 de março de 2014, com a decisão favorável aos não indígenas.

Em março de 2016, já após o relatório de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Funai interpôs ação rescisória com o objetivo de anular a sentença por descumprimento do direito ao contraditório e ampla defesa. Até a sentença da Corte Interamericana, a decisão do TRF-5 continuava pendente e a disputa pelos 300 hectares dentro do território Xucuru ainda não tinha solução definitiva.

Em 2002, outros oito ocupantes de cinco imóveis localizados dentro do território Xucuru interpuseram ação ordinária, solicitando a anulação do processo administrativo de demarcação em relação a esses imóveis. Os autores da ação alegavam que a demarcação deveria ser anulada porque eles não haviam sido notificados pessoalmente para apresentar suas objeções ao processo administrativo.

Em junho de 2010, a 12ª Vara Federal de Pernambuco deu decisão parcialmente favorável à ação, excluindo a União como parte demandada e determinando que os autores tinham direito de receber cerca de R$1,4 milhão de reais de indenização da Funai, em valores da época.

Funai e União recorreram da sentença junto ao TRF-5, que reformou a decisão da primeira instância em julho de 2012, restabelecendo a União como parte da demanda e reconhecendo vícios no processo de demarcação da TI Xucuru. Pela gravidade da medida, os desembargadores não declararam a nulidade do processo demarcatório, mas foi estabelecido o pagamento de indenização por perdas e danos a favor dos autores da ação.

Recursos especial e extraordinário foram interpostos pela Funai em dezembro de 2012, no STJ e no Supremo Tribunal Federal (STF), respectivamente. Até a publicação da sentença da Corte, as decisões ainda estavam pendentes.

Para além de ações judiciais contrárias, as duas décadas em que perduraram o processo de demarcação da Terra Indígena Xucuru também foram marcadas por hostilidades e um contexto de insegurança e ameaças, inclusive com a morte de diversas lideranças indígenas da comunidade. Em setembro de 1992, foi morto José Everaldo Rodrigues Bispo, filho do Pajé do povo Xucuru. Menos de três anos depois, em maio de 1995, o representante da Funai e defensor dos indígenas Geraldo Rolim também foi morto.

O ponto mais marcante da violência ocorrida durante o processo demarcatório ocorreu em 21 de maio de 1998, quando o Cacique Xicão, chefe dos Xucuru, foi assassinado. O inquérito policial determinou o fazendeiro José Cordeiro de Santana, que ocupava parte do território indígena, como autor intelectual. Conhecido como “Zé de Riva”, ele se matou enquanto estava detido pela Polícia Federal.

O autor material, identificado como “Ricardo”, morreu no Maranhão, em acontecimento não relacionado ao caso. Já Rivaldo Cavalcanti de Siqueira, apontado como intermediário entre o fazendeiro e o assassino, foi acusado como autor de homicídio simples pelo MPF em agosto de 2002. Em novembro de 2004, o Tribunal do Júri da 16ª Vara Federal de Pernambuco condenou Siqueira a 19 anos de prisão. Conhecido como “Riva de Alceu”, ele foi assassinado dentro da penitenciária em que cumpria pena, em 2006.

Após a morte de Xicão, seu filho e sucessor, Cacique Marcos, bem como sua mãe, Zenilda Maria de Araújo, também passaram a receber ameaças de morte. Na mesma data em que foi apresentada a petição perante a Comissão Interamericana, em outubro de 2002, as organizações responsáveis pela peça solicitaram medidas cautelares com a finalidade de garantir a vida e a integridade de Cacique Marcos e de sua mãe. O pedido foi atendido pela CIDH em 29 de outubro de 2002. O órgão solicitou que o Estado adotasse medidas para proteger a ambos e que iniciasse investigação a respeito dos fatos. As medidas cautelares foram sucessivamente prorrogadas e continuavam em vigor na data da sentença da Corte.

A presença de ocupantes não indígenas ao longo do processo demarcatório também provocou conflitos internos entre os próprios Xucuru. Em fevereiro de 2003, o Cacique Marcos sofreu um atentado contra sua vida, que resultou na morte de dois indígenas. O ataque foi atribuído a uma dissidência Xucuru denominada “Grupo de Biá” ou “Xucurus de Cimbres”, que divergia em relação ao desenvolvimento de projetos turísticos dentro da área demarcada.

Além das medidas cautelares solicitadas pela Comissão Interamericana, em março de 2003, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) criou uma Comissão Especial com o objetivo de acompanhar a investigação de tentativa de homicídio contra o Cacique Marcos e os fatos relacionados. Anos depois, em 2008, o cacique foi incluído no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos de Pernambuco.

Dona Zenilda, viúva de Xicão Xucuru, sofreu recorrentes ameaças - Foto: Tiago Miotto/Cimi

Na Comissão

O Movimento Nacional de Direitos Humanos/Regional Nordeste, o Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (Gajop) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 16 de outubro de 2002. Para os peticionários, a demora no processo de demarcação do território e a ineficácia da proteção judicial destinada a garantir o direito à propriedade do povo representavam uma violação de direitos. No documento, as organizações denunciaram o Brasil pela violação dos direitos à propriedade (artigo 22) e às garantias (artigo 8) e proteção judicial (artigo 25), em relação às obrigações gerais de respeitar os direitos e de adotar disposições de direito interno, previstas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana, em prejuízo do povo indígena Xucuru e seus membros.

A petição foi encaminhada ao governo brasileiro em 5 de novembro de 2003, para que fosse apresentada contestação no prazo de dois meses. O Estado questionou o esgotamento dos recursos internos e classificou a tramitação do processo de demarcação da Terra Indígena como razoável e satisfatória. A Comissão Interamericana produziu relatório de admissibilidade do caso sete anos depois de sua apresentação, em 29 de outubro de 2009. Na mesma data, a CIDH abriu a possibilidade de solução amistosa, mas nenhuma das partes se manifestou.

Na etapa de mérito, os peticionários incluíram alegações relacionadas aos direitos à vida (artigo 4) e à integridade pessoal (artigo 5), previstos na Convenção Americana. Em 28 de julho de 2015, durante seu 155º Período Ordinário de Sessões, a Comissão Interamericana produziu relatório de mérito sobre o caso.

O órgão concluiu que o Brasil é internacionalmente responsável pela violação do artigo XXIII (direito de propriedade) da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem para os fatos ocorridos até a ratificação da Convenção Americana pelo país, que ocorreu em 25 de setembro de 1992. A partir desse marco temporal, a CIDH considerou o Estado “responsável pela violação do direito à integridade pessoal, propriedade coletiva, às garantias judiciais e à proteção judicial estabelecidos nos artigos 5, 21, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com as obrigações consagradas nos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado, em detrimento do povo indígena Xucuru e seus membros”.

A Comissão fez quatro recomendações ao Estado brasileiro. Solicitou que o país adotasse, com brevidade, as medidas necessárias para “realizar a desintrusão efetiva do território ancestral do povo indígena Xucuru” e, em consequência, “garantir aos membros do povo que possam continuar vivendo de maneira pacífica seu modo de vida tradicional, conforme sua identidade cultural, estrutura social, sistema econômico, costumes, crenças e tradições particulares”.

Recomendou que o Brasil adotasse medidas para “finalizar os processos judiciais interpostos por pessoas não indígenas sobre parte do território do povo indígena Xucuru”, velando para que as “autoridades judiciais resolvam as respectivas ações conforme os parâmetros sobre direitos dos povos indígenas” expostos no relatório de mérito. Também solicitou que o país reparasse “nos âmbitos individual e coletivo as consequências da violação dos direitos enunciados”, principalmente considerando os danos provocados pela “demora no reconhecimento, demarcação e delimitação, e pela falta de desintrusão oportuna e efetiva de seu território ancestral”.

Por fim, a CIDH recomendou que o Estado adotasse medidas “para evitar que no futuro ocorram fatos similares”, particularmente adotando “um recurso simples, rápido e efetivo que tutele o direito dos povos indígenas do Brasil a reivindicar seus territórios ancestrais e a exercer pacificamente sua propriedade coletiva”.

Após a concessão de uma prorrogação de prazo, a Comissão considerou que o Estado não havia avançado substancialmente no cumprimento das recomendações, a despeito de avanços no processo de desintrusão, e resolveu remeter o caso à Corte Interamericana.

Assembleias do Povo Xucuru, realizadas no aniversário da morte de Xicão, reúnem milhares de pessoas - Foto: Daniel Pereira

Na Corte

A Comissão Interamericana remeteu o caso à Corte em 16 de março de 2016. Para a CIDH, além da necessidade de obtenção de justiça, o caso permitia à Corte “aprofundar sua jurisprudência em matéria de propriedade coletiva dos povos indígenas sobre suas terras e territórios ancestrais”, especificamente no que diz respeito às “características que deve ter um procedimento de reconhecimento, titulação, demarcação e delimitação dessas terras e territórios para que possa ser considerado compatível com as obrigações do Estado em matéria de propriedade coletiva e proteção judicial, com especial ênfase na necessidade de que tais procedimentos não se dilatem injustificadamente”. A Comissão também destacou que era uma oportunidade da Corte “se aprofundar sobre o alcance e conteúdo da obrigação de regularizar as terras e territórios ancestrais a fim de assegurar que, na prática, o direito de propriedade coletiva dos povos indígenas possa ser efetivado de maneira pacífica”.

Em sua demanda, a CIDH solicitou que o Tribunal declarasse a responsabilidade internacional do Brasil pelas violações constantes do relatório de mérito de 2015, e que ordenasse ao Estado o cumprimento das mesmas recomendações incluídas no relatório.

onsiderando a data de reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil, em 10 de dezembro de 1998, a CIDH submeteu ao Tribunal especificamente “as ações e omissões estatais” que ocorreram ou continuaram ocorrendo após esse marco temporal: a violação do direito à propriedade coletiva do povo por uma demora de sete anos (a partir de 1998) no processo de reconhecimento do território e pela falta de regularização total do território ancestral até o momento da submissão do caso; a violação dos direitos às garantias judiciais e proteção judicial, pela demora no processo administrativo de reconhecimento e pelas ações civis interpostas por não indígenas sobre partes do território ancestral.

Os representantes, que não apresentaram escrito de petições, argumentos e provas, ganharam o reforço da organização Justiça Global, que se tornou co-peticionária em 21 de fevereiro de 2017, durante o trâmite do processo. Um mês após, em 21 de março, foi realizada audiência pública sobre o caso do povo Xucuru. Os representantes apresentaram seus pontos durante a audiência pública e também em suas alegações finais, mas a Corte decidiu não avaliar “nenhuma alegação ou prova dos representantes que acrescentasse fatos, outros direitos que se aleguem violados ou supostas vítimas no caso, ou pretensões de reparações e custas diferentes daquelas solicitadas pela Comissão, por não haver sido apresentadas no momento processual oportuno”.

Uma peculiaridade dessa demanda foi a apresentação de cinco pedidos de amici curiae, por diferentes organizações, incluindo a Defensoria Pública da União. O Estado brasileiro, de maneira inédita, apresentou objeção aos cinco escritos. As objeções, feitas de maneira extemporânea, foram negadas pela Corte.

Exceções Preliminares

Na fase de contestação do processo, o Estado brasileiro interpôs cinco exceções preliminares – recurso utilizado para evitar o julgamento de mérito pelo Tribunal de parte ou da totalidade da demanda. Todas essas foram julgadas juntamente com o mérito.

Tal como o fez no casos Brasil Verde e Favela Nova Brasília, a primeira alegação brasileira foi de que a Comissão Interamericana teria publicado o Relatório de Mérito antes do envio da demanda à Corte, o que resultaria na inadmissibilidade do caso.

O Tribunal ressaltou que a alegação era idêntica à apresentada nos dois casos anteriores. Resgatando a jurisprudência estabelecida nas duas demandas, os juízes negaram a exceção preliminar, afirmando que “o que o Tribunal expressa nos casos citados se aplica também ao presente, pois o Estado tampouco demonstrou que a publicação do Relatório de Mérito se deu de forma contrária ao exposto pela Comissão ou infringindo o estabelecido na Convenção Americana”.

Em sua segunda e terceira exceção, o Brasil alegou incompetência ratione temporis em relação aos fatos anteriores à data de reconhecimento da jurisdição da Corte e quanto aos fatos anteriores à adesão do Estado à Convenção Americana. A defesa brasileira apontou que a Corte só poderia conhecer de casos iniciados depois dessa aceitação e criticou a interpretação dada pela Comissão Interamericana.

A alegação foi considerada parcialmente fundamentada pela Corte a partir do princípio da irretroatividade, estabelecendo 10 de dezembro de 1998, data do reconhecimento da competência pelo Brasil, como marco temporal para análise das violações.

A quarta exceção brasileira apontou incompetência ratione materiae a respeito de uma suposta violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), afirmando que a Corte não possuía competência material para fazer essa análise, já que o instrumento não faz parte do sistema de proteção da Organização dos Estados Americanos.

O Tribunal considerou a alegação improcedente, já que não era objeto do litígio uma eventual violação das disposições da Convenção 169 da OIT e que, portanto, não poderia ser declarada uma violação a esse respeito. Adicionalmente, a decisão destaca que, em reiteradas ocasiões, o Tribunal “considerou útil e apropriado utilizar outros tratados internacionais, tais como diversas convenções da OIT, para analisar o conteúdo e o alcance das disposições e direitos da Convenção”.

A quinta e última exceção preliminar apresentada pelo Brasil foi uma alegação de falta de esgotamento dos recursos internos. O país apresentou uma série de possibilidades de recursos que as supostas vítimas ou seus representantes poderiam ter utilizado, afirmando que os indígenas sempre tiveram “todos os meios e recursos necessários para impugnar o processo de identificação e indenização das ocupações privadas de sua terra, assim como para obter a retirada forçada (desintrusão) dos não índios das terras tradicionalmente ocupadas”.

A Corte destacou que cabe ao Estado, e não ao Tribunal ou à Comissão, apontar quais são os recursos disponíveis e que não foram esgotados, ainda na fase de admissibilidade do caso perante à CIDH. Além disso, os argumentos sobre falta de esgotamento interno expostos pelo Estado perante à Corte devem ser os mesmos que foram apresentados à Comissão. Não foi o que ocorreu no presente caso. Considerando isso, os juízes negaram a exceção preliminar, já que o Brasil “não especificou os recursos internos pendentes de esgotamento ou que estavam em curso, nem expôs as razões pelas quais considerava que eram procedentes e efetivos no momento processual oportuno”.

Supostas violações analisadas pela Corte

Artigos 21, 8.1 e 25, em relação com os artigos 1.1 e 2

Em sua argumentação perante a Corte, a Comissão Interamericana ressaltou que o direito à propriedade coletiva tem características particulares quando se trata de povos indígenas, pela especial relação dessas populações com suas terras e territórios tradicionais. Destacou que o Estado tinha o dever de efetivar a desintrusão de ocupantes não indígenas das terras demarcadas e que a responsabilidade internacional do Brasil devia-se aos anos em que os Xucuru não puderam exercer sua posse.

A Comissão também considerou que o prazo do processo demarcatório, assim como da análise das ações judiciais interpostas por não indígenas, que ainda não haviam sido solucionadas, não foi razoável. Para a CIDH, a demora constituía ameaça ao direito à propriedade coletiva dos Xucuru, causando constante insegurança jurídica. Com base nisso, o órgão demandou que o Estado fosse considerado responsável pela violação dos artigos 8 e 25, em relação com o artigo 1.1, e do artigo 21, em relação com os artigos 1.1 e 2

Os representantes destacaram que o processo de demarcação da terra indígena ainda não havia sido concluído, e que a instabilidade e a insegurança persistiam por três razões: a presença de seis ocupantes não indígenas que permaneciam no território sem o consentimento do povo; a existência de antigos ocupantes, que não mais habitavam a terra, mas que ainda não tinham recebido a indenização devida; e a falta de solução relacionada às duas ações judiciais, sendo que a de reintegração de posse era suscetível de execução.

Também descartaram a tese do Estado de que havia uma coexistência pacífica, ressaltando o histórico de assassinatos e ameaças contra os povos indígenas. Por fim, destacaram a demora no processo demarcatório e na análise das ações judiciais, apontando violação do princípio do prazo razoável. Para os representantes, o Brasil violou os artigos 21, 8 e 25, em relação com as obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2.

Em sua defesa, o Estado destacou a proteção maior outorgada às comunidades indígenas pela Constituição brasileira, apontando que não era possível considerar ter havido uma violação da garantia de acesso à Justiça no que diz respeito ao processo demarcatório, já que se trata de um processo iniciado de ofício pelo Estado, em que os indígenas não são autores, mas beneficiários. Afirmou que a não retirada dos últimos ocupantes não indígenas não constituía violação e que a presença que ainda persistia era “insignificante, pacífica e compreendida pelos indígenas”.

Para o país, não houve demora injustificada, nem no procedimento demarcatório, nem na titulação ou desintrusão da terra indígena. Além disso, o Estado argumentou que, tanto no processo administrativo de demarcação, quanto nas ações judiciais movidas por não indígenas, os Xucuru não tinham as condições necessárias de sujeito passivo, o que impossibilitaria, mesmo em tese, uma violação do artigo 8. Por fim, a defesa alegou que o Brasil cumpriu seu dever constitucional de assegurar o direito de acesso à justiça, e que negar esse acesso aos não indígenas caracterizaria arbitrariedade.

Em sua decisão, a Corte Interamericana destacou que o artigo 21 da Convenção Americana “protege o estreito vínculo que os povos indígenas mantêm com suas terras bem como com seus recursos naturais e com os elementos incorporais que neles se originam”, ressaltando a característica de propriedade coletiva da terra. “Essas noções do domínio e da posse sobre as terras não necessariamente correspondem à concepção clássica de propriedade, mas a Corte estabeleceu que merecem igual proteção do artigo 21 da Convenção Americana”, diz a sentença, que reforça a jurisprudência do Tribunal sobre a propriedade comunitária das terras indígenas, destacando uma série de direitos e as obrigações estatais.

A decisão ressalta que “não se trata de um privilégio de usar a terra, o qual pode ser cassado pelo Estado ou superado por direitos à propriedade de terceiros, mas um direito dos integrantes de povos indígenas e tribais de obter a titulação de seu território, a fim de garantir o uso e gozo permanente dessa terra”. Adicionalmente, o Tribunal destacou que a falta de delimitação e demarcação efetiva pelo Estado “pode criar um clima de incerteza permanente entre os membros dos referidos povos, porquanto não sabem com certeza até onde se estende geograficamente seu direito de propriedade coletiva e, consequentemente, desconhecem até onde podem usar os respectivos bens, e deles usufruir livremente”.

A sentença evoca o princípio da segurança jurídica como parte fundamental do Estado de Direito, apontando que, no caso dos povos indígenas, “para garantir o uso e o gozo do direito da propriedade coletiva, os Estados devem assegurar que não exista interferência externa sobre os territórios tradicionais, ou seja, devem eliminar qualquer tipo de interferência sobre o território em questão por meio da desintrusão, com o objetivo de que o exercício do direito à propriedade tenha um conteúdo tangível e real”, conforme apontado pela Relatora Especial das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz. Para a Corte, quando a desintrusão não é completa e os bens titulados têm vícios ocultos, “é claro que o direito de propriedade coletiva não foi garantido por completo”.

O Tribunal destacou a interpretação dada pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, que “confere preeminência ao direito à propriedade coletiva sobre o direito à propriedade privada, quando se estabelece a posse histórica e os laços tradicionais do povo indígena ou tradicional com o território, ou seja, os direitos dos povos indígenas ou originários prevalecem frente a terceiros de boa-fé e ocupantes não indígenas”. A sentença aponta que “a titulação de um território indígena no Brasil reveste caráter declaratório, e não constitutivo, do direito”, sendo “um ato de proteção, e não de criação do direito de propriedade coletiva no Brasil, o qual é considerado originário dos povos indígenas e tribais”.

Com base em sua jurisprudência, a Corte lembrou que “os povos indígenas e tribais têm direito a que existam mecanismos administrativos efetivos e expeditos para proteger, garantir e promover seus direitos sobre os territórios”, e que “não basta que a norma consagre processos destinados à titulação, delimitação, demarcação e desintrusão de territórios indígenas ou ancestrais, mas que esses processos tenham efetividade prática”.

Passando ao caso concreto, o Tribunal passou a analisar se o prazo razoável foi cumprido pelo país. Para os juízes, “o Estado não demonstrou quais seriam os fatores de complexidade que explicariam o atraso na conclusão do processo de titulação, de dezembro de 1998 [data de reconhecimento da competência da Corte] a novembro de 2005”.

No que diz respeito à desintrusão do território indígena, a sentença ressalta que “se tratava de um procedimento complexo e custoso, em razão do grande número de proprietários não indígenas”. A despeito disso, a decisão aponta que “em que pese o grande número de ocupantes não indígenas presentes nesse território no início do processo de reconhecimento e titulação, em 1989, a complexidade e os custos do processo de desintrusão não justificam a demora de praticamente 28 anos – sendo 19 anos dentro da competência da Corte – para concluí-lo”.

O Tribunal afirmou que “não se exigia do povo Xucuru que interviesse no processo administrativo, e não existe informação nem prova disponível que permita ao Tribunal inferir que a demora no processo seja imputável em alguma medida” ao povo. Quanto à conduta das autoridades estatais, a Corte constatou “diversos momentos em que se percebe ausência de impulso processual por parte das autoridades estatais”. Além disso, a sentença aponta que a demora de quatro anos para a resolução da impugnação do registro da propriedade junto ao Registro de Imóveis “ocorreu apesar de sua falta de complexidade” e que “o atraso adicional na titulação das terras é diretamente imputável à atividade processual do Estado e das autoridades que fizeram tramitar a ação”.

Considerando esses aspectos, a Corte declarou haver “suficientes elementos para concluir que o atraso do processo administrativo foi excessivo, em especial a homologação e a titulação do território Xucuru” e que “o tempo transcorrido para que o Estado realizasse a desintrusão dos territórios titulados é injustificável”. Com base nisso, considerou o Estado responsável pela violação do “direito à garantia judicial de prazo razoável, reconhecido no artigo 8.1 da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento”.

No que diz respeito à possível violação do direito à propriedade coletiva, a Corte lembrou que não era objeto de controvérsia a existência do direito dos Xucuru sobre seus territórios tradicionais, mas que em três pontos as partes divergiam: a alegação de falta de cumprimento das “obrigações positivas para garantir o direito de propriedade”; a falta de segurança jurídica “sobre o uso e gozo pacífico” dos territórios dos Xucuru, por conta da falta de desintrusão; e a efetividade dos processos iniciados internamente em relação a isso.

O Tribunal apontou que, em dezembro de 1998, quando é reconhecida a competência da Corte pelo Brasil, “permaneciam pendentes de implementação as duas etapas finais do processo de reconhecimento, demarcação e titulação do território” – a homologação presidencial e o registro. Para os juízes, “nenhuma dessas etapas envolvia trabalhos de campo ou procedimentos complexos que superassem a decisão política de emissão do Decreto Presidencial e seu registro”. sendo que a demora na conclusão do processo demarcatório e a incompleta desintrusão “foram elementos fundamentais que permitiram a presença de ocupantes não indígenas e geraram – em parte – tensão e disputas entre indígenas e não indígenas”.

O Estado apontou que a maior parte do território foi reocupado pelos Xucuru entre 1992 e 2012, mas não especificou em qual período ou de que forma isso ocorreu, tampouco apresentou prova de qual foi o processo de retirada das 624 ocupações cadastradas. Com base nisso, a Corte considerou que “as ações executadas pelo Estado não foram efetivas para garantir o livre gozo do direito de propriedade”. A sentença também aponta que, embora o reconhecimento formal da propriedade coletiva dos Xucuru esteja estabelecido desde novembro de 2005, “não há hoje segurança jurídica sobre seus direitos à totalidade do território”.

No que diz respeito às duas ações, de reintegração de posse e ordinária, movidas por não indígenas, a Corte considerou que “tiveram um impacto direto no direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru”, e que “embora ambas as ações judiciais tenham sido apresentadas por terceiros não indígenas, é indiscutível que ambos os processos devem ser analisados pela Corte, pois tiveram um impacto direto na segurança jurídica da titularidade dos direitos sobre o território coletivo”. Para o Tribunal, a despeito do Estado não ter responsabilidade direta sobre essas, e ser obrigado a proporcionar esse tipo de recurso, “a excessiva demora na tramitação e resolução dessas ações provocou um impacto adicional na frágil segurança jurídica do povo Xucuru em relação à propriedade de seu território ancestral”.

Como já havia apontado, a Corte reiterou que a determinação do direito de propriedade dos Xucuru “não supunha uma complexidade inerente”, e que o Estado “tampouco demonstrou que esses processos representassem uma complexidade jurídica ou fática que pudesse justificar a falta de uma decisão definitiva” até a data da sentença.

Em síntese, a decisão aponta que “o processo administrativo de titulação, demarcação e desintrusão do território indígena Xucuru foi parcialmente ineficaz” e, além disso, “a demora na resolução das ações interpostas por terceiros não indígenas afetou a segurança jurídica do direito de propriedade do Povo Indígena Xucuru”

Levando em conta os quase 19 anos entre a data de reconhecimento da competência da Corte e a da sentença, o Tribunal considerou que “o Estado violou o direito à proteção judicial e o direito à propriedade coletiva, reconhecidos nos artigos 25 e 21 da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento”.

Os juízes também analisaram a alegação dos representantes de que as normas internas do processo demarcatório padeciam de vícios, como a falta de prazo para a maior parte das etapas, o que provocaria insegurança jurídica e, no caso em questão, teria colaborado com o atraso no processo administrativo e na situação de tensão e violência.

A Corte apontou que a alegação foi apresentada de maneira extemporânea e que “se a Comissão ou os representantes consideravam que havia uma suposta incompatibilidade da legislação brasileira com a Convenção, essa incompatibilidade devia ter sido provada durante as diferentes etapas do processo perante esta Corte”. A decisão considera que a CIDH não argumentou de forma precisa quais eram as normas ou a omissão incompatível com a Convenção, e que os representantes não especificaram “qual a norma que consideravam incompatível com a Convenção, nem salientaram em que sentido essa norma devia ser modificada para que cumpra o disposto no artigo 2o da Convenção”.

O Tribunal relembrou jurisprudência que estabeleceu que “[a] competência contenciosa da Corte não tem por objeto a revisão das legislações nacionais de maneira abstrata, mas é exercida para resolver casos concretos em que se alegue que uma ação [ou omissão] do Estado, executada contra pessoas determinadas, é contrária à Convenção”.

Com base nisso, considerou não dispor “de elementos para determinar que norma poderia estar em conflito com a Convenção e, muito menos, como essa eventual norma impactou, de maneira negativa, o processo de titulação, reconhecimento e desintrusão do território Xucuru”. Portanto, a decisão aponta que o Estado não descumpriu o “dever de adotar disposições de direito interno, estabelecido no artigo 2o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 21 do mesmo instrumento.

Marquinhos Xucuru é cacique desde que seu pai foi morto e já escapou de tentativa de assassinato - Foto: Paulo Trigueiro/Folha PE

Artigo 5.1, em relação com o artigo 1.1

Para a Comissão Interamericana, a falta de reconhecimento oportuno e de proteção eficaz, além da não finalização da desintrusão do território Xucuru, tiveram como consequência uma situação de insegurança e violência, que representou uma violação do direito à integridade psíquica e moral, previsto no artigo 5.1 da Convenção, em prejuízo dos membros do povo indígena. A responsabilidade internacional por essa violação por parte do Estado foi estabelecida pela CIDH pelo princípio iuria novit curia, já que os representantes não apresentaram essa alegação durante o trâmite perante a Comissão.

À Corte, os representantes afirmaram que a violação do direito à integridade do povo Xucuru “decorre da natureza dos danos sofridos: assassinatos, hostilidade e outras tensões e violências, além de processos recorrentes de criminalização”. Para eles, as falhas estatais no processo demarcatório, a não conclusão da desintrusão e a falta de proteção eficaz provocou um clima de insegurança, tensão e violência, causando danos à saúde e à integridade pessoal dos Xucuru. As demais alegações dos representantes, apresentadas somente durante a fase de audiência e nas alegações finais, foram consideradas extemporâneas.

Em sua defesa, o Estado afirmou que o relatório de mérito da CIDH não permite que se deduza com clareza qual é o fato, ação ou omissão estatal que implicou em violação do direito à integridade pessoal, o que limitaria a defesa brasileira. Para o país, não há necessariamente uma correlação automática entre uma violação do direito de propriedade e do direito à integridade pessoal.

Em sua decisão, a Corte relembrou diversos aspectos de sua jurisprudência sobre o direito à integridade física e psíquica, salientando que essa é revestida de “diversas conotações de grau e abrange desde a tortura até outro tipo de constrangimento ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, cujas sequelas físicas e psíquicas variam de intensidade segundo fatores endógenos e exógenos da pessoa“.

Também apontou que, em determinados contextos, inclusive o dos povos indígenas que atuem em defesa de seus territórios, “os Estados têm a obrigação de adotar todas as medidas necessárias e razoáveis para garantir o direito à vida, à liberdade pessoal e à integridade pessoal das pessoas que se encontrem em uma situação de especial vulnerabilidade, especialmente em consequência de seu trabalho, desde que o Estado tenha conhecimento de um risco real e imediato relacionado a elas, e que existam possibilidades razoáveis de prevenir ou evitar esse risco”.

Passando para o caso concreto, a Corte apontou que a Comissão “alegou a violação do artigo 5o da Convenção, sem especificar a que fato essa violação se refere e quem seriam as vítimas”, sendo que parte dos fatos concretos que rendundariam nessa violação – três mortes de líderes indígenas Xucuru –, ocorreram antes do reconhecimento da competência do Tribunal. Para os juízes, “a Comissão não cumpriu a obrigação de provar sua alegação, levando em conta que não apresentou a argumentação jurídica e fática necessária; e não indicou os fatos concretos que configurariam a alegada violação, nem os responsáveis por ela”.

Quanto à argumentação dos representantes, a Corte apontou que “apresentaram alegações mais precisas e especificaram determinados aspectos da ‘falta de proteção estatal’ que teria resultado na impunidade do homicídio do Cacique Xicão (em maio de 1998) e na falta de proteção dos líderes do povo indígena”. Essas alegações, porém, foram apresentadas extemporaneamente e “por conseguinte, a Corte não poderia examiná-las, pois afetaria o direito de defesa do Estado, que não teria podido se defender adequadamente de acusações concretas apresentadas pela primeira vez durante a audiência pública”.

Dessa forma, o Tribunal considerou que “embora seja possível constatar a existência de um contexto de tensão e violência” durante períodos do processo de demarcação e desintrusão da TI Xucuru, a argumentação da CIDH não ofereceu base suficiente e as alegações dos representantes foram extemporâneas. Por isso, a Corte decidiu que “não é possível concluir que o Estado tenha violado o direito à integridade pessoal, estabelecido no artigo 5.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1. do mesmo instrumento”.

Pontos resolutivos da sentença

Corte decide, por unanimidade:

  1. Julgar improcedentes as exceções preliminares interpostas pelo Estado, relativas à inadmissibilidade do caso na Corte, em virtude da publicação do Relatório de Mérito pela Comissão; à incompetência ratione materiae, a respeito da suposta violação da Convenção 169 da OIT; e à falta de esgotamento prévio dos recursos internos.
  2. Declarar parcialmente procedentes as exceções preliminares interpostas pelo Estado, relativas à incompetência ratione temporis a respeito de fatos anteriores à data de reconhecimento da jurisdição da Corte por parte do Estado.

Corte declara, por unanimidade:

  1. O Estado é responsável pela violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, previsto no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento do Povo Indígena Xucuru.
  2. O Estado é responsável pela violação do direito à proteção judicial, bem como do direito à propriedade coletiva, previsto nos artigos 25 e 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento do Povo Indígena Xucuru.
  3. O Estado não é responsável pela violação do dever de adotar disposições de direito interno, previsto no artigo 2o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 21 do mesmo instrumento, em detrimento do Povo Indígena Xucuru.
  4. O Estado não é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, previsto no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em detrimento do Povo Indígena Xucuru.

Corte decide, por unanimidade:

  1. Esta Sentença constitui, por si mesma, uma forma de reparação.
  2. O Estado deve garantir, de maneira imediata e efetiva, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território.
  3. O Estado deve concluir o processo de desintrusão do território indígena Xucuru, com extrema diligência, efetuar os pagamentos das indenizações por benfeitorias de boa-fé pendentes e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xucuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses.
  4. O Estado deve proceder às publicações indicadas na sentença, nos termos nela dispostos.
  5. O Estado deve pagar as quantias fixadas na sentença, a título de custas e indenizações por dano imaterial.
  6. O Estado deve, no prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento.
  7. A Corte supervisionará o cumprimento integral desta sentença, no exercício de suas atribuições e no cumprimento de seus deveres, conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso uma vez tenha o Estado dado cabal cumprimento ao nela disposto.
Xucuru descem a Serra do Ororubá todo 20 de maio, aniversário da morte de Xicão - Foto: Renato Santana/Cimi

Cumprimento da sentença

A Corte Interamericana publicou um relatório de supervisão do cumprimento da sentença em 22 de novembro de 2019.

Pontos resolutivos 8 e 9 (direito de propriedade e desintrusão)

Segundo o cacique Marcos Xucuru, em entrevista ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ainda há pendências no processo de desintrusão, sendo que seis ocupantes não indígenas ainda habitam o território e alguns pagamentos de benfeitorias de boa-fé seguem pendentes.

Menos de um mês após a sentença da Corte, em 28 de fevereiro de 2018, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) declarou-se incompetente para julgar ação rescisória da Funai que tinha como objetivo anular a sentença favorável à ação de reintegração de posse movida por Milton do Rego Barros Didier e Maria Edite Didier. Após rejeitar recursos do órgão indigenista, o TRF-5 remeteu os autos para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em agosto de 2019. O processo nº 0801601-70.2016.4.05.0000 pode ser buscado no site do STJ e do TRF-5.

Em 31 de agosto de 2020, o relator da ação, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, determinou que Milton e Maria Didier apresentassem manifestação, o que foi feito em 14 de outubro. Em 27 de novembro, o relator determinou que as partes especificassem “as provas que pretendem produzir, justificando a sua necessidade”, no prazo de 10 dias. A ação rescisória movida pela Funai ainda aguarda decisão do ministro.

Paralelamente a isso, Milton e Maria Didier moveram ação contra a Funai e contra a União, pleiteando pagamento de indenização por prejuízos materiais que teriam sido causados pela ocupação, demarcação e expropriação indireta do imóvel localizado dentro da TI Xucuru. Em 14 de novembro de 2018, juiz federal da 28ª Vara de Pernambuco julgou parcialmente procedente a demanda, condenando a União a pagar cerca de R$ 684 mil para os pleiteantes. Embargos movidos tanto pela Funai quanto pelos Didier foram negados e a ação atualmente aguarda julgamento de novo recurso no TRF-5. A ação tramita sob o número 0812757-50.2017.4.05.8300.

Em relação à ação ordinária movida por não indígenas com o objetivo de anular parte da demarcação, as partes tiveram recursos julgados no STJ, que determinou que a ação fosse remetida de volta ao Tribunal Regional da 5ª Região. A reportagem buscou a ação nos sistemas do Supremo Tribunal Federal (STF), para quem a Funai também recorreu, e do TRF-5, mas não foi possível encontrá-la. No site do STJ, ela pode ser buscada a partir do número 0002246-51.2002.4.05.8300.

Ponto resolutivo 10 (publicações)

O Brasil publicou o resumo oficial da sentença no Diário Oficial da União em 13 de setembro de 2018. O Estado também disponibilizou o resumo e a íntegra da sentença nos sites dos ministérios das Relações Exteriores e dos Direitos Humanos em 5 de julho e em 28 de agosto de 2018.

Ponto resolutivo 11 (indenizações)

Em comum acordo entre os líderes da Comunidade Indígena Xucuru e o Brasil, com o aval da Corte, foi decidido que o pagamento da reparação determinada na sentença seria feito sem a constituição de um “fundo” – que exigiria proposta legislativa –, mas diretamente à Associação da Comunidade Indígena Xucuru.

A partir de um Acordo de Cumprimento de Sentença, assinado entre o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, que estabeleceu um plano de atividades e a prestação de contas por parte dos indígenas, o Estado brasileiro efetivou em fevereiro o pagamento de US$ 1 milhão determinado pela Corte. O valor representava, no dia em que foi pago, mais de R$ 4 milhões.

Em relação ao reembolso de custas, o Brasil efetuou, em 13 de maio de 2020, o pagamento de US$ 3.333 para a Justiça Global, o Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (Gajop) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), totalizando os US$ 10 mil determinados pela Corte. O valor equivalia, à época, a cerca de R$ 19,3 mil.

Eleito em Pesqueira

Na eleição municipal de 2020, o cacique Marcos Xucuru foi eleito prefeito da cidade de Pesqueira (PE), onde está localizada a Terra Indígena Xucuru. Candidato pelo Republicanos, ele venceu o pleito com 51,6% dos votos. A candidatura do líder indígena, porém, foi indeferida pelo Tribunal Regional Eleitoral, por conta da Lei da Ficha Limpa.

O cacique Xucuru foi condenado por crime contra o patrimônio privado, relacionado ao atentado que sofreu em 2003. Após a emboscada, Marquinhos e outros indígenas teriam ateado fogo em uma casa, o que rendeu condenação em primeira e segunda instância. O líder indígena chegou a receber indulto da ex-presidente Dilma Rousseff.

O prefeito eleito, que está recorrendo da inelegibilidade no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pode ser beneficiado por uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kássio Nunes, de dezembro de 2020, que afrouxou a Lei da Ficha Limpa. Enquanto a candidatura está sob júdice, o vereador Bal de Mimoso (Republicanos) assumiu provisoriamente a prefeitura de Pesqueiras.


Saiba mais

Oficial

Outros


Notas do autor

  • As informações apresentadas neste site sobre o Caso do Povo Indígena Xucuru foram essencialmente extraídas da sentença da Corte Interamericana. Também há informações colhidas nos relatórios de admissibilidade e de mérito da CIDH, no escrito de submissão do caso à Corte, na contestação do Brasil, nas normativas brasileiras e nos processos judiciais ligados ao caso. Informações de contexto também foram colhidas nos textos e reportagens listados em “saiba mais”.
  • As informações sobre o cumprimento da sentença foram colhidas no relatório de supervisão da Corte Interamericana, nos processos judiciais ligados ao caso, no Portal da Transparência, nos textos e reportagens listadas em “saiba mais” e nos textos linkados. Também foram colhidas informações em entrevista com Caroline Hilgert, assessora jurídica do Cimi.
  • No trecho em que são apresentados os pontos resolutivos determinados pela Corte, são omitidas referências a parágrafos da sentença e feitas adaptações para melhor entendimento.
  • A terminologia “Xucuru” foi escolhida porque é dessa maneira que a Corte Interamericana se referiu ao povo em sua sentença. “Xukuru” também está correto.

Foto em destaque: Guilherme Cavali/Cimi