Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares versus Brasil
Ficha Técnica
Vítimas: 60 vítimas fatais e seis sobreviventes da explosão, bem como 100 familiares das pessoas falecidas e sobreviventes da explosão
Peticionários e/ou Representantes: Centro de Justiça Global, Movimento 11 de Dezembro, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Subseção de Salvador, Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus/Bahia, e Ailton José dos Santos, Yulo Oiticica Pereira e Nelson Portela Pellegrino
Juízes: Elizabeth Odio Benito, Presidenta; L. Patricio Pazmiño Freire, Vice-Presidente; Eduardo Vio Grossi, Juiz; Humberto Antonio Sierra Porto, Juiz; Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Juiz; Eugenio Raúl Zaffaroni, Juiz; e Ricardo Pérez Manrique, Juiz;
Cronologia
3 de dezembro de 2001
Petição
2 de março de 2018
Relatório de Admissibilidade e Mérito
19 de setembro de 2018
Submissão pela CIDH
15 de julho de 2020
Sentença
Resumo
Décimo caso brasileiro analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a sentença do Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares versus Brasil data de 15 de julho de 2020.
O município de Santo Antônio de Jesus (BA) é o segundo do país em produção de fogos de artifício. Além disso, também foi o palco do maior acidente de trabalho com fogos de artifício da história do país. Em 11 de dezembro de 1998, a fábrica do “Vardo dos Fogos” foi cenário de explosão que matou ao menos 60 pessoas, incluindo 20 crianças, além de ferir outras seis, sendo três crianças – o Movimento 11 de dezembro, tocado por sobreviventes e familiares, fala em 64 vítimas fatais. A fábrica, que empregava mulheres e crianças, majoritariamente negras, majoritariamente pobres, pagava salários ínfimos, desrespeitava inúmeros direitos trabalhistas e não funcionava em condições adequadas de segurança. Os principais responsáveis eram Osvaldo e Mário Prazeres Bastos.
Após a explosão, foram instaurados processos administrativo, civis, trabalhistas e penal. Até a sentença da Corte Interamericana, a despeito de condenação em primeira e segunda instância, nenhum dos responsáveis pela fábrica de fogos havia sido preso, graças a recursos protelatórios nas cortes superiores brasileiras. Pelo contrário, o Superior Tribunal de Justiça determinou, em 2019, nova análise em segunda instância, por não ter havido intimação dos advogados no julgamento de recursos. As ações civis de indenização, movidas pelos familiares das vítimas e pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA), ainda não haviam sido plenamente executadas, assim como as trabalhistas. O processo administrativo, finalizado em 1999, determinou o fechamento da fábrica, mas não impediu que a família Prazeres Bastos continuasse no ramo.
Em dezembro de 2003, a Justiça Global, o Movimento 11 de Dezembro, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - Subseção de Salvador, o Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus/Bahia, Ailton José dos Santos, Yulo Oiticica Pereira e Nelson Portela Pellegrino entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as violações sofridas pelas vítimas mortas, pelas sobreviventes, bem como por seus familiares. Em outubro de 2003, a CIDH resolveu analisar a admissibilidade e o mérito da petição conjuntamente.
Inicialmente, o Estado brasileiro questionou a admissibilidade, solicitando o arquivamento da petição por não esgotamento dos recursos judiciais internos. Três anos depois, porém, durante audiência pública, o Brasil mudou seu posicionamento, mostrando-se sensível aos fatos, admitindo o tempo excessivo de tramitação do processo e afirmando que não questionaria a admissibilidade da petição. Após a mudança de postura estatal, foi iniciado procedimento de solução amistosa. A tentativa, entretanto, foi infrutífera, e os peticionários solicitaram que fosse analisado o mérito da demanda, após quatro anos.
Em março de 2018, mais de 16 anos após a petição ser apresentada, a CIDH produziu relatório de admissibilidade e mérito, admitindo a petição e considerando o Brasil responsável por uma série de violações de direitos humanos, em detrimento das vítimas da explosão e de seus familiares. O órgão fez uma série de recomendações ao Estado brasileiro, que não se manifestou sobre o cumprimento das medidas ao final do prazo determinado para tal. Com base nisso, a CIDH resolveu remeter o caso à Corte Interamericana em setembro de 2018.
A Corte IDH negou as três exceções preliminares interpostas pelo Estado, dando prosseguimento ao julgamento. Na mesma sentença, condenou o Brasil pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, da criança, às garantias judiciais, à proteção judicial, à igual proteção da lei, à proibição de discriminação e ao trabalho, em relação com a obrigação de respeitar e garantir os direitos, previstos na Convenção Americana. Para a Corte, as violações ocorreram em detrimento das 60 vítimas falecidas e das seis sobreviventes, bem como de 100 familiares das vítimas.
O Tribunal determinou uma série de medidas de reparação, que incluem a publicação da sentença e o pagamento de indenização, custas e gastos. Também determinou outras medidas de reabilitação e satisfação, incluindo: oferecimento de tratamento médico e psicológico; produção e divulgação de material para rádio e televisão sobre o caso; e realização de ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional.
Além disso, a Corte determinou uma série de medidas visando garantir a não repetição dos fatos, incluindo: inspeção sistemática e periódica dos locais de produção de fogos de artifício; apresentação de relatório sobre projeto de lei que objetiva nova regulamentação sobre fabricação, comércio e uso de fogos de artifício; elaboração e execução de projeto de desenvolvimento socioeconômico em Santo Antônio de Jesus; e apresentação de relatório sobre a aplicação das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos.
O Tribunal também determinou a continuidade do processo penal para que, em prazo razoável, os responsáveis sejam julgados e, se for o caso, punidos. Por fim, determinou a continuidade das ações civis de indenização e dos processos trabalhistas em prazo razoável, com promoção completa da execução das sentenças, caso seja pertinente.
Como a decisão é recente à época da publicação deste texto, o Estado brasileiro ainda não avançou significativamente no cumprimento das medidas de reabilitação, satisfação, indenização e não repetição determinadas pela Corte.
Em relação à execução das ações trabalhistas e da ação civil movida contra o Brasil, a Bahia, a cidade de Santo Antônio de Jesus e a empresa de Mário Prazeres Bastos, a reportagem não conseguiu informações adicionais às já apresentadas na sentença da Corte. A ação civil ex delicto contra Osvaldo Prazeres Bastos, Maria Julieta Fróes Bastos e Mário Fróes Prazeres Bastos segue na fase de execução do acordo homologado em 2019, com tramitações recentes. A ação penal, por sua vez, segue aguardando novo julgamento perante o Tribunal de Justiça da Bahia, após a determinação do STJ.
Ainda não foi publicado nenhum relatório sobre o cumprimento pela Corte Interamericana, e o procedimento de supervisão segue em aberto.
Contexto
O município de Santo Antônio de Jesus (BA), a 187 km da capital Salvador, tem hoje pouco mais de 100 mil habitantes. Localizada no Recôncavo Baiano, região em que houve intensa utilização de mão de obra escravizada na produção agrícola, a cidade tem mais de 75% de sua população preta ou parda, de acordo com dados do censo do IBGE de 2010.
A herança escravagista da região, combinada com relações trabalhistas essencialmente informais e a utilização de mão de obra não qualificada, fazia com que mais de ⅓ da população local tivesse renda per capita de até ½ salário mínimo, segundo o Censo. Além disso, em 2010, 13,3% dos habitantes da cidade entre 15 e 24 não estudavam nem trabalhavam, e quase 40% dos maiores de 18 anos sem formação básica executavam trabalhos informais.
Em Santo Antônio de Jesus, uma das principais atividades com a utilização de trabalho informal é a produção de fogos de artifício. O Brasil é o segundo maior produtor mundial, e a cidade no Recôncavo Baiano é a segunda cidade do país nessa atividade, sendo o polo mais importante da região nordeste. Em 2005, estimava-se que 10% da população de 80 mil habitantes do município sobrevivia a partir da produção de fogos de artifício. De acordo com outras fontes, esse número estava entre dez e quinze mil pessoas em 2008. A fabricação de fogos de artifício em Santo Antônio se caracterizava pela clandestinidade e insalubridade, sem que fossem respeitadas as condições mínimas de segurança.
Parte da atividade, destinada à fabricação de ‘estalo de salão’, uma espécie de fogos de artifício, utilizava essencialmente mão de obra feminina, incluindo mulheres, crianças e idosas, caracterizando-se pela marginalização, ausência de capacitação formal e exclusão de direitos trabalhistas. Em 1998, cerca de duas mil mulheres dedicavam-se a essa atividade no município, a maior parte delas negras. Além disso, de 30% a 40% do total da força de trabalho era formada por crianças.
Os homens, por sua vez, ocupavam-se da produção da ‘massa’, mistura de nitrato de prata, areia, álcool e ácido nítrico, geralmente em locais diferentes dos utilizados para a produção do estalo de salão. Em comum com a atividade tocada por mulheres e crianças, estava o alto grau de informalidade e clandestinidade.
Na Fazenda Joeirana, na zona rural de Santo Antônio de Jesus, funcionava uma fábrica de fogos de artifício, identificada como do “Vardo dos Fogos” pela população local. ‘Vardo’ é Osvaldo Prazeres Bastos, proprietário da fazenda e pai de Mário Fróes Prazeres Bastos, cujo nome estava no registro da fábrica. Osvaldo já fora condenado, em abril de 1996, em processo penal por uma explosão ocorrida no contexto de suas atividades com fogos de artifício.
Na fábrica do “Vardo dos Fogos”, trabalhavam especialmente mulheres negras, provenientes de bairros periféricos de Santo Antônio, caracterizados pela pobreza, falta de acesso à educação formal e problemas de infraestrutura. Elas eram contratadas de maneira informal, com salários baixíssimos e sem nenhum adicional pelo risco que corriam. De acordo com informações colhidas no âmbito do processo junto à Corte Interamericana, essas mulheres trabalhavam na fábrica de fogos pela dificuldade de conseguir trabalho no comércio pela falta de alfabetização. Além disso, não eram aceitas como empregadas domésticas por preconceito, já que os bairros onde viviam eram associados à criminalidade.
A fábrica em questão consistia em um conjunto de tendas em área de pastos, com algumas mesas de madeira compartilhadas. Não havia espaços destinados a descanso ou alimentação, tampouco banheiros, e boa parte dos materiais explosivos localizavam-se junto aos espaços onde ficavam as trabalhadoras.
Em uma série de violações à Constituição, à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e outras normativas, à força de trabalho da fábrica do “Vardo dos Fogos” não era oferecida equipamentos de proteção individual, treinamento ou capacitação. Várias crianças trabalhavam no local, algumas delas com seis anos de idade, sendo que essas trabalhavam por seis horas diárias durante o período letivo e o dia inteiro nas férias, finais de semanas e feriados. As mulheres trabalhavam das seis da manhã às cinco e meia da tarde, recebendo entre R$ 1,50 e R$ 3,00 por dia. De acordo com a sentença da Corte Interamericana, as condições nas fábricas de Santo Antônio não mudaram substancialmente nos anos seguintes.
Os donos da fábrica, localizada na zona rural de Santo Antônio de Jesus, tinham conhecimento de que ela era perigosa e poderia provocar uma tragédia. Apesar de ter recebido autorização do Ministério do Exército, as atividades eram realizadas de maneira irregular.
Entre 1991 e 1998, o Brasil havia registrado 46 mortes relacionadas à produção de fogos de artifício. Pouco antes das 12 horas de 11 de dezembro de 1998, esse número começou a mais do que dobrar, com a consumação de uma tragédia anunciada, no maior acidente de trabalho com fogos de artifício da história do país. A explosão da fábrica do “Vardo dos Fogos” teve como consequência a morte de 60 pessoas, entre elas 40 mulheres, 19 meninas e um menino. Seus corpos tinham queimaduras graves e alguns estavam mutilados.
Seis pessoas sobreviveram, sendo três mulheres, dois meninos e uma menina. Além delas, o bebê Vitória França da Silva também sobreviveu, após um parto prematuro. Sua mãe, que estava grávida de cinco meses, faleceu posteriormente, em consequência da explosão, assim como outras quatro mulheres que estavam grávidas. Vitória sofre até hoje com ataques epiléticos e suas condições psicológicas, decorrentes da explosão, comprometeram sua capacidade de aprendizado.
Pela falta de quantidade suficiente de ambulâncias em Santo Antônio de Jesus, que também não tinha um centro médico de tratamento de pessoas com queimaduras, moradores da cidade e familiares tiveram que transportar as vítimas em seus carros até hospital de Salvador. A maioria das pessoas transportadas não resistiu aos ferimentos.
Entre os seis sobreviventes, nenhum recebeu tratamento médico adequado para que se recuperassem do acidente. A maioria sofreu lesões corporais graves, com perda auditiva e queimaduras de até 70% do corpo, vivendo até hoje com sequelas.
No momento da explosão, além de autorização do então Ministério do Exército – atualmente Ministério da Defesa –, a fábrica também estava autorizada pelo município, e dispunha de certificado de registro com vigência até o final de 1998. A partir desse certificado, a empresa estava autorizada a armazenar 20 mil quilos de nitrato de potássio e 2,5 mil quilos de pólvora negra.
Na época, o controle de atividades perigosas era regulamentado pelo Decreto Nº 55.649, de 28 de janeiro de 1965, que determinava que, a cada região militar, cabia registrar as empresas, levar a cabo a fiscalização e realizar inspeções. Em especial quanto à fiscalização, o decreto a atribuía aos departamentos de inspeção do Ministério da Defesa, em colaboração com a Polícia Civil e governos municipais, também atribuindo responsabilidade às polícias locais. Em âmbito regional, o Decreto Estadual 6.465, de 1997, dava essa função à Secretaria de Segurança Pública do Estado.
A despeito da legislação, não há registro de que alguma atividade de fiscalização tenha sido realizada pelo Estado na fábrica até o momento da explosão, seja quanto às condições de trabalho, seja quanto ao controle de atividades perigosas.
No âmbito de processo administrativo – mais amplamente abordado na seção ‘Trâmite no Brasil’ – e perícia técnica, autoridades concluíram que havia violações das normas de segurança quanto ao manejo e armazenamento dos explosivos. Segundo a perícia, a explosão foi causada pela falta de segurança no local, não apenas pelo armazenamento incorreto de materiais explosivos, mas pela falta de capacitação das funcionárias que manipulavam os produtos.
Vários dos familiares e sobreviventes convivem com sintomas pós-traumáticos, como depressão e ansiedade, desde a explosão na fábrica de fogos. Esses sobreviventes e parentes das vítimas criaram o Movimento 11 de Dezembro, que desde o acidente luta por justiça e promove auxílio para os filhos das vítimas fatais.
Trâmite no Brasil (até a sentença da Corte)
A partir da explosão da fábrica de fogos, foram iniciados uma série de processos, na área civil, trabalhista, penal e administrativa. Quando do Relatório de Mérito e Admissibilidade da CIDH, somente os processos administrativos e parte dos trabalhistas estavam concluídos, sendo que esses ainda estavam em fase de execução da sentença.
Processo penal
O processo penal (nº 0000447-05.1999.8.05.0229) quanto à explosão foi formulado a partir de investigação da Polícia Civil da Bahia, que resultou em denúncia apresentada pelo Ministério Público do estado (MP-BA) em 12 de abril de 1999. Na ocasião, o MP-BA acusou o dono da fábrica, Mário Fróes Prazeres Bastos, seu pai, Osvaldo Prazeres Bastos, e seis pessoas que exerciam funções administrativas – três delas também filhos de Osvaldo – por homicídio doloso e tentativa de homicídio.
Mais de cinco anos depois, em novembro de 2004, o juiz da Vara Criminal de Santo Antônio de Jesus resolveu que os acusados deveriam ser submetidos ao Tribunal do Júri, ao encontrar indícios suficientes sobre a possível prática de um crime. Mais dois anos e meio de trâmite e, em julho de 2007, o MP-BA solicitou ao Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) que o caso fosse transferido para Salvador, por conta da influência econômica e política dos acusados na região. A decisão foi acolhida em novembro daquele ano.
Quase três anos depois, em 20 de outubro de 2010, o Tribunal do Júri condenou cinco pessoas, incluindo Mário e Osvaldo Prazeres Bastos, e absolveu outros três acusados. As penas variavam entre 9 e 10 anos. Os condenados interpuseram recurso de apelação, rejeitado pelo TJ-BA em abril de 2012. Depois, levaram o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que igualmente negou recursos em setembro de 2014.
Em seguida, os condenados impetraram recursos perante o Supremo Tribunal Federal (STF). O primeiro agravo regimental foi negado no seguimento pela ministra Rosa Weber em agosto de 2017, mas os réus interpuseram novo recurso perante o STF no mês seguinte. O novo agravo regimental foi novamente negado, dessa vez no provimento, pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em outubro de 2018, já após o relatório da Comissão Interamericana. Em 12 de novembro daquele ano, foram interpostos embargos de declaração perante o STF, que também os negou, em fevereiro de 2019.
Enquanto ele ainda estava pendente, os condenados impetraram uma série de habeas corpus (HC), ao longo de 2019. Em outubro, o Tribunal de Justiça da Bahia concedeu o HC movido por Osvaldo Prazeres Bastos, declarando extinta sua pena por conta de prescrição. Antes disso, em agosto do mesmo ano, o STJ proveu um habeas corpus (nº 0242655-82.2019.3.00.0000) impetrado com o objetivo de anular a decisão dos recursos de apelação, pois os advogados dos acusados não haviam sido convocados para a sessão de julgamento de tais recursos. Nos meses seguintes, a decisão foi ampliada para os outros réus. Com isso, determinou-se novo julgamento das apelações, que ainda não havia ocorrido até a sentença da Corte.
A despeito de manifestações da Procuradoria-Geral da República (PGR) no sentido de que as penas fossem executadas independentemente da interposição de novos recursos defensivos, que seriam meramente protelatórios, nenhum réu foi preso pela explosão da fábrica de fogos até a sentença da Corte Interamericana.
Ações civis
Em 4 de março de 2002, as vítimas e seus familiares apresentaram demanda contra o Brasil, a Bahia, o município de Santo Antônio de Jesus e a empresa de Mário Prazeres Bastos – a fábrica de fogos –, por danos morais e materiais. No âmbito da ação (nº 2002.33.00.005225-1), foi solicitada a antecipação de tutela para os menores de 18 anos que haviam perdido as mães na explosão, pedido aceito pelo Juiz Federal no dia seguinte à apresentação da ação.
Das 44 pessoas que perderam as mães no acidente, 39 foram efetivamente beneficiadas pela decisão de antecipação de tutela. Destas, somente 16 receberam a pensão mensal de um salário, já que as demais já tinham mais de 18 anos, idade máxima para receber o benefício.
Após a concessão da tutela antecipada, a ação foi desmembrada em 14 processos distintos, por conta do alto número de litigantes – 84. As decisões de primeira instância foram proferidas entre julho de 2010 e agosto de 2011. Foram interpostos recursos contra as sentenças, que foram negados entre agosto de 2013 e março de 2017, e embargos de declaração, decididos entre outubro de 2015 e maio de 2018.
A União e o estado da Bahia também interpuseram recursos especiais e extraordinários em 12 dos 14 processos. Dois tiveram decisões definitivas em setembro de 2017 e abril de 2018, e outros dez permaneciam pendentes, quase duas décadas após a demanda ser iniciada. Nem a Comissão, nem a Corte Interamericana detinham, e tampouco o Estado apresentou informações sobre o pagamento das reparações por parte do Brasil.
Paralelamente a esse processo, ainda em 1998, o MP-BA ajuizou ação cautelar solicitando o bloqueio de bens dos acusados Osvaldo e Mário Prazeres Bastos, para garantir a reparação de danos das vítimas sobreviventes e dos herdeiros das falecidas. Em 9 de janeiro do ano seguinte, o Ministério Público, em conjunto com vários familiares das vítimas, ajuizou ação civil (nº 0000186-40.1999.8.05.0229) perante a 1ª Vara Cível. O processo, movido contra os dois citados acima e também contra Maria Julieta Fróes Bastos, tinha o objetivo de obter reparações.
Por conta de acordo entre os demandantes e os processados, o processo foi concluído em outubro de 2013, sendo homologado em dezembro do mesmo ano. A partir dele, estabeleceu-se indenização de cerca de R$ 1,28 milhão, a serem divididos entre os processantes.
O acordo, porém, foi descumprido por parte dos demandados, e o MP-BA apresentou petição de cumprimento da sentença, solicitando imposição de multa e apresentando lista de propriedades de Osvaldo Prazeres Bastos, para possível embargo em caso de não pagamento.
Até outubro de 2017, os demandados haviam pago R$ 1,94 milhão. Posteriormente outros R$ 354,5 mil também foram quitados, restando cerca de R$ 475 mil. Após expedição de alvarás determinando o pagamento dos valores arrecadados, em novembro de 2016 e maio de 2018, foi homologado um novo acordo em março de 2019, com o objetivo de promover o pagamento da quantia restante. Até a sentença da Corte, a dívida não havia sido totalmente paga.
Ações trabalhistas
Entre 2000 e 2001, 76 demandas foram apresentadas perante a Justiça do Trabalho de Santo Antônio de Jesus. 30 foram arquivadas definitivamente e 46 declaradas improcedentes em primeira instância porque a Justiça não reconheceu vínculo empregatício. Diante das negativas, foram interpostos recursos, e o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região deu razão às trabalhadoras e determinou novo pronunciamento.
Nas novas decisões, o vínculo empregatício foi reconhecido e 18 demandas foram declaradas parcialmente procedentes, além de uma declarada totalmente procedente. Desses processos, seis permaneceram em arquivo provisório por vários anos, pela falta de bens de Mário Prazeres Bastos que permitissem a execução da dívida.
Em agosto de 2018, no âmbito do processo trabalhista da vítima sobrevivente Leila Cerqueira dos Santos, foi embargado bem do pai de Mário, Osvaldo Prazeres Bastos, no valor de R$ 1,8 milhão, suficiente para indenizar as vítimas de todas as ações que ainda estavam com a execução pendente. Não há informações claras sobre a efetivação desse pagamento.
Processo administrativo
Após a explosão, a Sexta Região Militar do Exército iniciou um processo administrativo, que resultou no confisco e na destruição de produtos irregulares encontrados na fábrica de fogos na mesma semana do acidente. Posteriormente, em junho do ano seguinte, o procedimento foi finalizado, determinando-se o cancelamento definitivo do registro da empresa, que foi consumado em 23 de junho de 1999.
No âmbito do processo, foram constatadas uma série de irregularidades, incluindo a falta de segurança nas instalações, utilização de depósitos não registrados junto aos locais de fabricação, armazenamento indevido de materiais explosivos no mesmo depósito, falta de extintores de incêndio e falta de justificativa da origem de parte dos produtos controlados.
A despeito da cassação do registro da empresa, o dono da fábrica, Mário Prazeres Bastos, continuou exercendo atividades irregulares de produção de fogos de artifício, pelo menos até outubro de 1999.
Na Comissão
A Justiça Global, o Movimento 11 de Dezembro, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - Subseção de Salvador, o Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus/Bahia, Ailton José dos Santos, Yulo Oiticica Pereira e Nelson Portela Pellegrino entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 3 de dezembro de 2001. Os peticionários apontaram violações de direitos humanos pelo Estado brasileiro, em detrimento de 70 vítimas da explosão da fábrica de fogos, bem como de seus familiares.
Em 7 de outubro de 2003, seguindo seu Regulamento então vigente, a CIDH comunicou às partes sua decisão de pronunciar-se sobre a admissibilidade juntamente com o debate e decisão sobre o mérito. Inicialmente, o Estado alegou que a petição não atendia aos critérios de admissibilidade e solicitou seu arquivamento por falta de esgotamento dos recursos internos.
Três anos depois, a Comissão promoveu uma audiência pública entre as partes. Na ocasião, a representante do Estado declarou que “[eram] sensíveis aos fatos e espera[vam] que não torn[assem] a acontecer”. Também reconheceu o tempo excessivo da tramitação do processo, que já durava oito anos, afirmando que esperava-se que os réus fossem condenados no ano seguinte. Mudando seu posicionamento inicial, o Estado informou que não questionaria a admissibilidade do caso e reconheceu sua responsabilidade quanto à falta de fiscalização, propondo a negociação de solução amistosa.
No dia seguinte, em 20 de outubro de 2006, as partes se reuniram num encontro de trabalho e concordaram em iniciar o procedimento de solução amistosa. Passados mais quatro anos, porém, em outubro de 2010, os peticionários solicitaram que a CIDH emitisse relatório de mérito.
A Comissão Interamericana produziu relatório de admissibilidade e mérito durante seu 167º Período Ordinário de Sessões, em 2 de março de 2018, 16 anos e três meses após a petição inicial. Para a CIDH, o Brasil violou o direito à vida (artigo 4.1) e à integridade pessoal (artigo 5.1), em relação às obrigações estabelecidas nos artigos 19 (direitos da criança) e 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) da Convenção, em detrimento das vítimas diretas da explosão.
Considerou que o Estado, em detrimento das vítimas, violou o direito ao trabalho (artigo 26), em relação com as obrigações estabelecidas nos artigos 1.1 e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da Convenção, bem como do artigo 19, no caso das crianças. Por enxergar “nexo claro entre o descumprimento dessas obrigações e a situação de pobreza das vítimas”, a CIDH também enxergou violação do princípio de igualdade e não discriminação, estabelecido nos artigos 24 e 1.1 da Convenção.
O órgão também considerou que o Estado violou os direitos às garantias judiciais (artigo 8.1) e à proteção judicial (25.1), em relação com o artigo 1.1, em detrimento dos familiares das vítimas mortas, bem como dos seis sobreviventes da explosão. Por fim, considerou o Brasil responsável pela violação do direito à integridade psíquica e moral dos familiares das vítimas da explosão.
A CIDH fez ao todo cinco recomendações ao Estado brasileiro. Recomendou que reparasse as violações, tanto no aspecto material como no imaterial, adotando medidas de compensação econômica e satisfação do dano moral. Também recomendou que o país dispusesse de medidas de atenção em saúde física e mental aos sobreviventes da explosão, e de saúde mental aos familiares direitos das vítimas.
Recomendou que o Brasil investigasse de maneira diligente, efetiva e num prazo razoável os fatos relacionados às violações, com o objetivo de identificar todas as responsabilidades e impor as sanções possíveis. A recomendação incluía “tanto as investigações penais como administrativas que sejam pertinentes, não só a respeito de pessoas vinculadas à fábrica de fogos, mas das autoridades estatais que descumpriram seus deveres de inspeção e fiscalização”.
A Comissão também recomendou a adoção de medidas para que as responsabilidades e reparações estabelecidas nos processos trabalhistas e civis respectivos fossem implementadas. Por fim, o órgão recomendou que o Estado adotasse medidas para evitar a repetição dos fatos, especialmente por intermédio do oferecimento de possibilidades de trabalho distintas na região; da prevenção, erradicação e punição do trabalho infantil; e do fortalecimento das instituições “para assegurar que cumpram devidamente sua obrigação de fiscalização e inspeção de empresas que realizam atividades de risco”, incluindo a criação de mecanismos de responsabilização de autoridades que se omitam dessas obrigações.
O país foi notificado da decisão em 19 de junho de 2018, quando foi concedido um prazo de dois meses para apresentar informações sobre o cumprimento das recomendações. Considerando a falta de qualquer manifestação por parte do Estado, a Comissão resolveu remeter o caso à Corte.
Na Corte
A Comissão Interamericana remeteu o caso à Corte em 19 de setembro de 2018. Para a CIDH, além da necessidade de obtenção de justiça, o caso permitiria que a Corte desenvolvesse “sua jurisprudência em matéria das obrigações internacionais dos Estados frente a atividades de alto risco, inclusive no que se refere à concessão de licenças de funcionamento, bem como seus deveres de fiscalização e supervisão”. O Tribunal também poderia referir-se “à temática de empresas e direitos humanos e ao alcance e conteúdo das obrigações estatais” e pronunciar-se “sobre os deveres de prevenção, punição e reparação das piores formas de trabalho infantil, bem como de violações da vida e integridade que resultem de atividades perigosas no âmbito laboral”. Por fim, a Comissão destacou que a Corte poderia “aprofundar-se sobre o alcance do direito ao trabalho e sua interseção com o princípio de igualdade e não discriminação em situações de pobreza”.
Em sua demanda, a CIDH solicitou que o Tribunal declarasse a responsabilidade internacional do Brasil pelas violações constantes do relatório de mérito de 2018, e que ordenasse ao Estado o cumprimento das mesmas recomendações incluídas no relatório. Na sentença, a Corte destacou o fato de que passaram-se quase 17 anos entre a apresentação da petição e a submissão do caso. Por acaso, a explosão da fábrica de fogos ocorreu exatamente um dia após o reconhecimento da competência da Corte Interamericana pelo Estado brasileiro e, portanto, todos os fatos constantes no relatório da Comissão foram submetidos ao Tribunal.
Em seu escrito de solicitações, argumentos e provas, os representantes das vítimas coincidiram com os apontamentos da Comissão e acrescentaram a alegação de que o Brasil violou os direitos à vida e à integridade pessoal também em relação à proteção da família, estabelecida no artigo 17 da Convenção.
O caso Empregados da Fábrica de Fogos contou com a realização de uma audiência pública, ocorrida em 31 de janeiro de 2020. Em resolução de novembro do ano anterior, quando convocou-se a audiência pública, a Corte Interamericana rechaçou objeções tanto do Estado quanto dos representantes em relação a declarações testemunhais e peritagens.
Além disso, sete escritos de amicus curiae foram apresentados em relação a esse caso, incluindo de um representante do Ministério Público do Trabalho do Brasil e de instituições estrangeiras. O Estado apresentou observações sobre a admissibilidade dos escritos, mas elas foram desconsideradas por terem sido apresentadas de maneira extemporânea.
Uma peculiaridade do presente caso é que ele foi deliberado por meio de sessão virtual, realizada entre 13 e 15 de julho de 2020, por conta da pandemia de Covid-19.
Exceções Preliminares
Na fase de contestação do processo, o Estado brasileiro interpôs três exceções preliminares – recurso utilizado para evitar o julgamento de mérito pelo Tribunal de parte ou da totalidade da demanda. Elas foram julgadas juntamente com o mérito.
Na primeira exceção preliminar, o Brasil alegou que o caso não poderia ter sido apresentado à Corte em virtude da publicação do Relatório de Admissibilidade e Mérito por parte da Comissão. Alegação idêntica foi feita pelo país nos quatro casos brasileiros anteriores: Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Favela Nova Brasília, Povo Xucuru e Herzog. Adicionalmente, o Estado solicitou que a Corte declarasse que a conduta da Comissão de publicar seus relatórios preliminares resulta em violação dos artigos 50 e 51 da Convenção Americana, e que a CIDH fosse obrigada a retirar o relatório do ar.
Em sua sentença, a Corte rememorou as decisões tomadas nos casos anteriores e negou a exceção, apontando que “a publicação do Relatório de Mérito na forma realizada pela Comissão não implica a preclusão do caso nem viola nenhuma norma convencional ou regulamentar” e que “o Estado não demonstrou que a publicação do Relatório de Mérito fora feita de forma diferente do exposto pela Comissão, ou que, nesse caso, a publicação tivesse sido feita de forma contrária ao disposto pela Convenção”.
Na segunda exceção preliminar, o país alegou incompetência ratione materiae a respeito das supostas violações do direito ao trabalho. Para o Estado, a Corte não seria competente para analisar essa alegada violação porque os direitos econômicos, sociais e culturais [previstos no artigo 26 da Convenção Americana] não poderiam ser submetidos ao regime de petições individuais.
A Corte reafirmou seu entendimento de sentenças anteriores, no sentido de que o Tribunal tem competência “para conhecer e resolver controvérsias relativas ao artigo 26 da Convenção Americana como parte integrante dos direitos enumerados em seu texto”. Além disso, a decisão aponta que “as considerações relacionadas à possível ocorrência dessas violações devem ser examinadas no mérito deste assunto”. Com base nisso, a exceção foi julgada improcedente.
Na terceira exceção, o Estado alegou falta de esgotamento dos recursos internos. Para o Brasil, os recursos idôneos no âmbito interno deveriam ter sido esgotados na época da apresentação da petição, em dezembro de 2001, ou ao menos antes do Estado ser notificado para apresentar suas primeiras observações sobre a demanda, o que não teria acontecido no presente caso. A defesa também argumentou que nenhuma das exceções à necessidade de esgotamento dos recursos internos era aplicável no caso.
A Corte destacou que o Estado apresentou a exceção preliminar de falta de esgotamento de recursos internos no momento processual oportuno, durante o procedimento de admissibilidade junto à CIDH. A decisão aponta, porém, que em audiência pública realizada, em outubro de 2006, a agente do Estado mudou a posição inicial do país e informou que o Brasil não iria questionar a admissibilidade da demanda. Para os juízes, essa declaração demonstra que “o Estado não só deixou de alegar a falta de esgotamento de recursos internos ou de apresentar outra objeção à admissibilidade do caso, mas declarou expressamente que não questionaria sua admissibilidade”.
Em sua decisão, o Tribunal apontou que, “segundo a prática internacional e conforme sua jurisprudência, quando uma parte em litígio adota uma atitude determinada que redunda em prejuízo próprio ou em benefício da parte contrária, não pode, em virtude do princípio de estoppel, assumir outra conduta que seja contraditória com a primeira”. Com base nisso, a exceção foi negada.
Consideração prévia
Também em suas exceções preliminares, o Estado alegou suposta “incompetência ratione personae a respeito das supostas vítimas não identificadas ou não adequadamente representadas”. A Corte considerou que a alegação não caracterizava-se como exceção preliminar, e a examinou como “consideração prévia”. Nessa alegação, o Estado apresentou uma série de objeções em relação às pessoas identificadas como supostas vítimas pelos representantes e pela Comissão.
Em sua decisão, a Corte relembrou que o artigo 35.2 de seu regulamento “estabelece que, quando se justifique que não foi possível identificar algumas supostas vítimas por se tratar de violações em massa ou coletivas, este Tribunal decidirá se as considera como tais”. Considerando as características do caso da Fábrica de Fogos, incluindo o tempo transcorrido e a condição de exclusão e vulnerabilidade das vítimas, a Corte considerou que o artigo 35.2 era aplicável.
O Estado apresentou objeção sobre uma das pessoas que foi identificada como falecida na explosão e que não foi mencionada pela Comissão em seu relatório. O Tribunal julgou improcedente a alegação, por se tratar de um caso de duplicidade nos registros. Além disso, após revisar os documentos juntados ao processo, os juízes concluíram que eram 60 as vítimas falecidas na explosão e seis as sobreviventes – a CIDH havia apresentado lista com 70 pessoas ao todo, sendo 64 mortos.
O Brasil também apresentou objeção quanto à inclusão de alguns familiares das vítimas da explosão que não constavam do relatório da Comissão ou que não haviam concedido procuração para os representantes. A Corte também a negou, aplicando a exceção do artigo 35.2 de seu regulamento, com base nas características do caso.
O Estado apresentou objeção quanto a 26 familiares apresentados sem que se tenha comprovado ou alegado em que medida seus direitos foram violados. A Corte considerou que a alegação “se refere à prova do eventual dano do direito à integridade sofrida pelos familiares das supostas vítimas”, estabelecendo que a questão fosse avaliada no mérito e não como uma questão preliminar.
A outra objeção estatal, referente à inclusão, no escrito de solicitações e argumentos e provas dos representantes, de duas procurações de pessoas que não figuravam em nenhuma das listas de supostas vítimas oferecidas pela Comissão ou pelos representantes, foi aceita pela Corte, que decidiu não considerá-las como vítimas.
Por fim, após corrigir algumas inconsistências, o Tribunal estabeleceu 100 pessoas como familiares dos mortos ou sobreviventes da explosão da fábrica de fogos e, portanto, supostas vítimas do caso em questão.
Supostas violações analisadas pela Corte
Artigos 4.1, 5.1 e 19, em relação com o artigo 1.1
Tanto a Comissão Interamericana quanto os representantes das vítimas destacaram que, de acordo com a legislação brasileira, a autorização e a fiscalização de atividades ligadas a explosivos cabia ao Estado, que concedera permissão para o funcionamento da fábrica em questão e tinha conhecimento do contexto generalizado de atividades perigosas com fogos de artifício na região.
Em seus escritos, a CIDH e os representantes apontaram que, a despeito desse conhecimento, o Estado não realizou nenhuma inspeção ou fiscalização durante os três anos transcorridos entre a concessão da autorização e a explosão da fábrica. Para ambos, a tolerância e aquiescência do Brasil com o ocorrido caracterizaria responsabilidade estatal pelo descumprimento do dever de respeito e garantia dos direitos à vida e à integridade pessoal, em relação às obrigações estabelecidas no artigo 1.1 e também no 19 da Convenção Americana, já que existia ali uma das piores formas de trabalho infantil.
Adicionalmente, os representantes destacaram que as vítimas sobreviventes sofreram graves danos a sua integridade física e psicológica, por conta das lesões e sequelas causadas pelas queimaduras e pela perda de seus entes queridos, sendo esse sofrimento agravado pela total ausência de assistência médica, psiquiátrica e psicológica.
Em sua defesa, o Estado argumentou que não poderia ser considerado responsável pelas violações apontadas por não ter sido comprovado que tenha havido consentimento consciente dos agentes estatais para a produção do ato ilícito. Para o Brasil, a exigência de licença foi devidamente cumprida e o Exército e os outros órgãos de inspeção não foram notificados sobre a ocorrência de ilegalidades na fábrica.
Também alegou ter cumprido as obrigações relativas à proteção do direito à vida pela disponibilização de recursos internos às vítimas, apontando que alguns deles tiveram decisões preliminares ou definitivas. Para o Estado, a Corte atuaria como quarta instância ao não reconhecer que a responsabilidade primária da proteção dos direitos humanos foi exercida de forma regular pelo Brasil.
Na sentença, a Corte relembrou que a obrigação de garantia de direitos “se projeta para além da relação entre os agentes estatais e as pessoas submetidas a sua jurisdição, e abarca o dever de prevenir, na esfera privada, que terceiros violem os bens jurídicos protegidos". Apesar disso, o Tribunal destacou que isso não significa que o Estado é responsável por qualquer violação de direitos humanos cometida por particulares sob sua jurisdição, sendo necessário analisar as características do caso em questão.
Quanto à fabricação de fogos de artifício, a Corte foi ao encontro do apontado pela CIDH e pelos representantes, no sentido de que os Estados “têm o dever de regulamentar, supervisionar e fiscalizar a prática de atividades perigosas, que impliquem riscos significativos para a vida e a integridade das pessoas submetidas a sua jurisdição, como medida para proteger e preservar esses direitos”.
A sentença destaca a legislação brasileira quanto às atividades perigosas no momento da explosão, apontando que as empresas deveriam ser registradas, e autoridades nacionais, estaduais e municipais, em especial o então Ministério do Exército, as Secretarias de Segurança Pública, a Polícia Civil e os governos municipais, deveriam fiscalizar as atividades. De acordo com o entendimento do Tribunal, “o nível de supervisão e fiscalização sobre essa atividade devia ser o mais alto possível, levando em conta os riscos que o exercício de uma atividade desse grau de periculosidade implicava”.
Com base nisso, a Corte estabeleceu que, no momento dos fatos, o Brasil “havia cumprido sua obrigação de regulamentação da atividade e dispunha de legislação que reconhecia que a fabricação de fogos de artifício era uma atividade perigosa”. Além disso, a decisão destaca que a fábrica do “Vardo dos Fogos” tinha licença e seu funcionamento, embora irregular, não era clandestino. Portanto, o Estado tinha conhecimento da atividade que se realizava no local e “tinha a obrigação clara e exigível de supervisionar e fiscalizar seu funcionamento”.
A despeito dessa obrigação, a Corte destacou que o Estado não realizou qualquer ação de controle ou fiscalização antes da explosão. Pelo contrário, o Brasil chegou a admitir que “falhou ao fiscalizar”, durante audiência perante a Comissão Interamericana. No mesmo sentido, decisões internas no âmbito de ação civil e trabalhista reconheceram a responsabilidade estatal ao descumprir seu dever de fiscalização.
Em síntese, a Corte constatou que, ao não fiscalizar a fábrica, o Brasil “permitiu que os procedimentos necessários à fabricação dos fogos de artifício ocorressem à margem das normas mínimas exigidas na legislação interna”, o que ocasionou na explosão da fábrica de fogos.
Para o Tribunal, a conduta omissa do Estado “propiciou a violação dos direitos à vida das 60 pessoas que perderam a vida em consequência direta da explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, e do direito à integridade pessoal das seis pessoas que sobreviveram”. Devido à presença de crianças entre as pessoas falecidas e também entre as sobreviventes, a Corte também constatou violação do artigo 19 da Convenção Americana.
A decisão destaca as sequelas físicas e psicológicas dos seis sobreviventes, que não só perderam companheiras de trabalho e, em alguns casos, familiares, como sofreram graves queimaduras e outras doenças, e não tiveram atenção adequada aos danos sofridos.
Com base nisso, a Corte concluiu que “o Brasil é responsável pela violação dos artigos 4.1 e 19 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo das 60 pessoas falecidas, entre as quais se encontravam 20 crianças”, e também “dos artigos 5.1 e 19 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo das seis pessoas sobreviventes, três das quais eram crianças”.
Artigos 19, 24 e 26, em relação com o artigo 1.1
A Comissão Interamericana destacou o direito ao trabalho em condições dignas e com salário justo como conferidor de dignidade, a partir da Carta da OEA, da Declaração Americana e do Protocolo de San Salvador. Para a CIDH, o direito ao trabalho constitui uma das normas econômicas e sociais mencionadas no artigo 26 da Convenção Americana e, portanto, os Estados devem zelar por seu desenvolvimento progressivo e implementar medidas para torná-lo efetivo.
O órgão apontou um nexo claro entre o descumprimento das obrigações do Estado e a situação de pobreza das vítimas, assim como a falta de opções de emprego na região. Também salientou que a Convenção estabelece as crianças como titulares de direitos, destacando que as condições de pobreza expõe a um risco maior de violações de direitos humanos, o que, no caso de menores de idade, os expõe ao trabalho informal e às piores formas de trabalho infantil.
Considerando isso, a Comissão apontou que o Estado violou o direito ao trabalho, em relação às obrigações estabelecidas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção, bem como do artigo 19, no caso das crianças. Além disso, considerou o Estado responsável pela violação do princípio de igualdade e não discriminação, estabelecido nos artigos 24 e 1.1 da Convenção.
Ratificando os apontamentos da CIDH, os representantes das vítimas acrescentaram que o Brasil possuía, na data da explosão, normas que garantiam uma série de direitos ao trabalhador e que os protegiam de atividades perigosas, mas destacaram que essas normas não foram e nem são devidamente implementadas. Em seus escritos, apontaram que a situação de desigualdade, precarização laboral, risco e ausência de fiscalização permanecia presente na cidade de Santo Antônio de Jesus. Além disso, acrescentaram que a Convenção sobre os Direitos das Criança estabelece que os Estados são obrigados a protegê-las e delas cuidar tanto antes como depois de seu nascimento.
Em sua defesa, o Estado alegou ter estrutura jurídica efetiva para a proteção dos direitos sociais, destinada à redução das desigualdades, e afirmou cumprir de forma fiel o dever progressivo de garantia desses direitos. Em seus escritos, o Brasil apontou uma série de iniciativas, como o Bolsa Família e os programas de erradicação do trabalho infantil (PETI) e de erradicação do trabalho escravo, bem como ações tomadas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para implementação das diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos.
Quanto à violação do direito do trabalho, o Estado argumentou que esse não seria diretamente protegido pelo Sistema Interamericano. Além disso, afirmou dispor de ampla estrutura de proteção aos direitos dos trabalhadores, inclusive quanto às atividades perigosas, e que cumpriu seu dever de desenvolvimento progressivo desse direito. Além disso, alegou não ter ficado demonstrado o nexo causal ou a previsibilidade do risco real que representaria a fábrica para atribuir responsabilidade ao Estado por atos de particulares.
Em sua decisão, a Corte Interamericana reforçou a obrigação estatal de regulamentar, supervisionar e fiscalizar as condições de segurança no trabalho, evocando os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, que afirmam que em “cumprimento do seu dever de proteger, os Estados devem: a) Fazer cumprir as leis que tenham por objeto ou por efeito fazer as empresas respeitarem os direitos humanos e, periodicamente, avaliar a adequação dessas leis e suprir eventuais lacunas”.
O Tribunal também destacou que a Constituição e a normativa interna brasileira estabeleciam proibição absoluta do trabalho de menores de 18 anos em atividades perigosas, mas que era fato notório que na fábrica de fogos trabalhavam crianças, em alguns casos desde os seis anos. Considerando isso, a Corte ressaltou que o Estado tinha a obrigação de tomar as medidas necessárias para prevenir eventuais violações dos direitos das crianças.
A sentença destaca que “o problema jurídico suscitado pelos representantes se relaciona à alegada responsabilidade internacional do Estado pela falta de fiscalização que ocasionou a violação do direito a condições equitativas e satisfatórias que garantam a segurança, a saúde e a higiene no trabalho, entendido como um direito protegido pelo artigo 26 da Convenção Americana”.
Na decisão, os juízes rememoram jurisprudência estabelecida no Caso Poblete Vilches e outros Vs. Chile, em que decidiu-se que a Convenção incorporou a seu catálogo de direitos protegidos os denominados direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Considerando isso, a Corte apontou a necessidade de se pronunciar sobre o direito a condições de trabalho equitativas e satisfatórias como componente do direito ao trabalho.
Segundo o Tribunal, o artigo 26 da Convenção “faz referência às normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura constantes da Carta da OEA”. A partir da análise do que é estabelecido pela Carta quanto ao trabalho, a Corte considerou que “existe uma referência com suficiente grau de especificidade ao direito a condições de trabalho equitativas e satisfatórias para se deduzir sua existência e reconhecimento implícito na Carta da OEA”. Sendo assim, estabeleceu que “o direito a condições equitativas e satisfatórias que garantam a segurança, a saúde e a higiene no trabalho é um direito protegido pelo artigo 26 da Convenção”.
A decisão ressalta a prática constante do Tribunal de “ao determinar a compatibilidade das ações e omissões do Estado ou de suas normas com a própria Convenção ou outros tratados a respeito dos quais tem competência, [interpretar] as obrigações e direitos deles constantes à luz de outros tratados e normas pertinentes”. Assim, seguindo esse comportamento, a Corte buscou referências em instrumentos relevantes do corpus iuris internacional para analisar o alcance do direito a condições de trabalho que garantam a segurança, a saúde e a higiene do trabalhador no contexto do presente caso.
A sentença destaca o artigo 45.b da Carta da OEA, que dispõe que o trabalho deverá ser exercido em condições que assegurem a vida e saúde do trabalhador. No mesmo sentido, evoca o artigo XIV da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que “identificar o direito a condições de trabalho equitativas e satisfatórias ao salientar que toda pessoa tem direito ‘ao trabalho em condições dignas’”.
A decisão dá destaque ao artigo 7 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o “Protocolo de San Salvador”, que dispõe que os Estados partes reconhecem que o direito ao trabalho “pressupõe que toda pessoa goze do mesmo em condições justas, equitativas e satisfatórias, para o que esses Estados garantirão em sua legislação, de maneira particular: […] a segurança e higiene no trabalho”. Os juízes também evocaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
Em relação à Organização Internacional do Trabalho (OIT), a sentença destaca seu ato constitutivo, que indica que “é urgente melhorar [as] condições [de trabalho] no que se refere, por exemplo, à […] proteção dos trabalhadores contra as moléstias graves ou profissionais e os acidentes do trabalho, à proteção das crianças, dos adolescentes e das mulheres”. Além disso, a decisão aponta o entendimento expresso em duas convenções da OIT, a nº 81, de 1947, sobre a inspeção do trabalho, e a nº 155, de 1981, sobre segurança e saúde dos trabalhadores.
A Corte também evocou entendimentos do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU nas observações gerais nº 14, sobre o direito ao gozo do mais alto nível possível de saúde; nº 18, sobre o direito ao trabalho; e nº 23, sobre o direito a condições de trabalho equitativas e satisfatórias, sendo que a última sustenta que esse se trata de um direito reconhecido pelo Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Para o Tribunal, além de “amplamente reconhecido no corpus iuris internacional”, o direito a condições equitativas e satisfatórias de trabalho também aparece nas Constituições e legislações dos países que reconhecem a competência da Corte, incluindo do Estado brasileiro.
No entendimento dos juízes, “a natureza e o alcance das obrigações que decorrem da proteção das condições de trabalho que garantam a segurança, a saúde e a higiene do trabalhador incluem aspectos de exigibilidade imediata, bem como aspectos que apresentam caráter progressivo”.
Quanto à primeira obrigação – a que se refere o presente caso –, “os Estados devem garantir que esse direito seja exercido sem discriminação, além de adotar medidas eficazes para sua plena realização”. Já em relação à segunda, “significa que cabe aos Estados Partes a obrigação concreta e constante de avançar o mais expedita e eficazmente possível para a plena efetividade desse direito”. Além disso, “impõe-se a obrigação de não regressividade frente à realização dos direitos alcançados”.
Em suma, a Corte concluiu que “esse direito implica que o trabalhador possa realizar seu trabalho em condições adequadas de segurança, higiene e saúde, que previnam acidentes de trabalho, o que é especialmente relevante quando se trata de atividades que implicam riscos significativos para a vida e a integridade das pessoas”.
De maneira mais específica, partindo da legislação brasileira, prevista na Constituição, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e em outras normativas, esse direito “implica a adoção de medidas de prevenção e redução de riscos inerentes ao trabalho e de acidentes de trabalho; a obrigação de proporcionar equipamentos de proteção adequados frente aos riscos decorrentes do trabalho; a caracterização, a cargo das autoridades de trabalho, da insalubridade e da insegurança no trabalho; e a obrigação de fiscalizar essas condições, também a cargo das autoridades de trabalho”.
A despeito da obrigação do Estado brasileiro de garantir condições de trabalho equitativas e satisfatórias, a Corte destacou que as empregadas da fábrica do “Vardo dos Fogos” trabalhavam em condições de “precariedade, insalubridade e insegurança”, em locais que “não reuniam os mais mínimos padrões de segurança para a realização de uma atividade de risco, e que não apresentavam condições que permitissem evitar ou prevenir acidentes de trabalho”. Além disso, elas “nunca receberam instrução alguma sobre medidas de segurança, nem elementos de proteção para a realização do trabalho”.
O Tribunal apontou que tudo isso ocorreu “sem que o Estado exercesse qualquer atividade de supervisão ou fiscalização” ou “empreendesse alguma ação voltada para a prevenção de acidentes, embora a atividade desenvolvida na fábrica fosse caracterizada pela legislação interna como especialmente perigosa”.
Com base nisso, a Corte estabeleceu que “o Estado violou o direito a condições equitativas e satisfatórias de trabalho, na medida em que falhou em seu dever de prevenir acidentes de trabalho”, dever ainda mais relevante diante da dimensão dos fatos do presente caso. Apesar de ter cumprido seu dever de regulamentar a atividade, a decisão aponta que o Estado “falhou no exercício do controle e da fiscalização das condições de trabalho, como medida necessária para a prevenção de acidentes”, resultando em violação do artigo 26 da Convenção Americana.
No que diz respeito ao trabalho de menores de idade na fábrica de fogos, a Corte relembrou que a Convenção Americana dispõe, em seu artigo 19, “que as crianças têm direito a medidas de proteção especiais” e que esse mandato “impacta a interpretação dos demais direitos reconhecidos na Convenção, inclusive o direito ao trabalho”.
Em sua decisão, o Tribunal recorreu à Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que em seu artigo 32 dispõe o direito da criança de ser protegida da exploração econômica e de trabalhos perigosos que possam interferir em sua educação ou afetar sua saúde ou desenvolvimento.
Para a Corte, esse entendimento coincide com o exposto na Constituição brasileira, que em seu artigo 7 proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de menores de 18 anos, bem como o trabalho de menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, o que é reforçado pela CLT. Além disso, a decisão ressalta que o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe qualquer trabalho para crianças menores de 14 anos e também veda o trabalho perigoso, insalubre ou penoso a adolescentes.
Com base no disposto na CDC e na legislação brasileira, a Corte entendeu que o Brasil “descumpriu o mandato constante do artigo 19 da Convenção Americana, em relação ao artigo 26 do mesmo instrumento, a respeito das crianças que falecerem na explosão da fábrica de fogos, bem como daquelas que sobreviveram à explosão, ao não adotar as medidas de proteção que sua condição de criança impunha, e permitir que crianças, a partir de 11 anos de idade estivessem trabalhando no momento da explosão”.
Em seguida, o Tribunal passou a analisar a alegada violação da proibição da discriminação. Na decisão, a Corte destacou que “na atual etapa de evolução do Direito Internacional, o princípio fundamental de igualdade e não discriminação ingressou no domínio do jus cogens e permeia todo o ordenamento jurídico”, sendo que sobre esse princípio reside “a ordem pública nacional e internacional”.
A sentença lembra que a obrigação geral estabelecida no artigo 1.1 da Convenção “se refere ao dever do Estado de respeitar e garantir ‘sem discriminação’ os direitos constantes da Convenção”. O artigo 24, por sua vez, “protege o direito a ‘igual proteção da lei’”. Em suma, enquanto o artigo 1.1 “garante que todos os direitos convencionais sejam assegurados sem discriminação”, o artigo 24 “ordena que não se dispensem tratamentos desiguais nas leis internas de cada Estado, ou em sua aplicação”.
Para a Corte, o presente caso deveia ser analisado à luz de ambos os artigos, já que “os argumentos da Comissão e dos representantes se centram tanto na alegada discriminação sofrida pelas supostas vítimas, por sua condição de mulheres e afrodescendentes, quanto por sua situação de pobreza, bem como pela falta de adoção de medidas de ação positiva para garantir seus direitos convencionais”.
O Tribunal relembrou seu entendimento em ocasião anterior, no sentido que os Estados são obrigados “a adotar medidas positivas para reverter ou alterar situações discriminatórias existentes em suas sociedades, em prejuízo de determinado grupo de pessoas”. Ademais, “isso significa o dever especial de proteção que o Estado deve exercer com respeito a atuações e práticas de terceiros que, sob sua tolerância ou aquiescência, criem, mantenham ou favoreçam as situações discriminatórias”.
Quanto ao caso concreto, a Corte destacou que as vítimas eram pessoas que, “em razão da discriminação estrutural por sua condição de pobreza, não podiam ter acesso a outra fonte de renda e tinham de se expor ao aceitar um trabalho em condições de vulnerabilidade”, que as expôs aos fatos que as vitimaram. Considerando isso, a decisão aponta que “o fato de que uma atividade econômica especialmente perigosa tenha se instalado na área está relacionado à pobreza e à marginalização da população que ali residia e reside”.
Adicionalmente, o Tribunal apontou uma “intersecção de fatores de discriminação”, com a confluência de “diferentes desvantagens estruturais que impactaram sua vitimização”. Entre elas, estão o fato de várias das vítimas serem mulheres e afrodescendentes. Além disso, algumas estavam grávidas, algumas eram meninas, e algumas eram meninas e estavam grávidas.
A respeito dessas ‘desvantagens estruturais’, a Corte enumerou uma série de apontamentos, de diferentes organismos internacionais, acerca da gravidade da situação enfrentada por mulheres, negros e crianças no Brasil. Entre os órgãos citados pelo Tribunal estão o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, o Comitê dos Direitos da Criança e o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, todos ligados às Nações Unidas.
Em síntese, a Corte Interamericana constatou que as vítimas se encontravam em situação de pobreza estrutural, eram, em sua maioria, mulheres e meninas afrodescendentes, sendo que quatro delas estavam grávidas. Para o Tribunal, “a confluência desses fatores tornou possível que uma fábrica como a que se descreve[u] nesse processo tenha podido se instalar e funcionar na região, e que as mulheres e crianças supostas vítimas se tenham visto compelidas a nela trabalhar”.
A decisão destaca que a condição de vulnerabilidade das vítimas “acentuava os deveres de respeito e garantia a cargo do Estado”. O Tribunal também apontou que uma das dimensões abordadas no artigo 24 da Convenção é a material, no sentido de que “o direito à igualdade implica a obrigação de adotar medidas para garantir que essa igualdade seja real e efetiva ou seja, de corrigir as desigualdades existentes, promover a inclusão e a participação dos grupos historicamente marginalizados e garantir às pessoas ou grupos em desvantagem o gozo efetivo de seus direitos”.
No presente caso, apesar do Estado ter conhecimento da situação de especial vulnerabilidade das vítimas, a Corte constatou que não houve adoção de medida que pudesse ser avaliada “como forma de enfrentar ou de buscar reverter a situação de pobreza e marginalização estrutural das trabalhadoras da fábrica de fogos, com atenção aos fatores de discriminação que confluíam no caso concreto”.
A despeito do Estado salientar que dispõe de estrutura jurídica para a redução das desigualdades e apontar políticas públicas com esse objetivo em Santo Antônio de Jesus, os juízes consideraram que “o Estado não provou que a situação de discriminação estrutural a que são submetidas as mulheres que se dedicam à fabricação de fogos de artifício tenha mudado”.
Para o Tribunal, ao não fiscalizar “as condições de higiene, saúde e segurança do trabalho na fábrica, nem a atividade de fabricação de fogos de artifício para, especialmente, evitar acidentes de trabalho”, o Brasil “não só deixou de garantir o direito a condições equitativas e satisfatórias de trabalho das supostas vítimas, mas também contribuiu para agravar as condições de discriminação estrutural em que se encontravam”.
Em suma, a Corte concluiu que, o Estado brasileiro não garantiu o direito a condições de trabalho equitativas e satisfatórias, sem discriminação, nem tampouco o direito à igualdade, previstos nos artigos 24 e 26, em relação ao artigo 1.1 da Convenção, resultando em violação desses artigos, em prejuízo das 60 vítimas falecidas e das seis sobreviventes. Além disso, quanto às 20 crianças mortas e às três sobreviventes, também houve violação do artigo 19.
Artigos 8.1 e 25.1, em relação com o artigo 1.1
Para a Comissão Interamericana, o Estado descumpriu seu dever de investigar os fatos com a devida diligência e em prazo razoável. O órgão evocou o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que estabeleceu o dever estatal de oferecer meios adequados de reparação às pessoas prejudicadas e de garantir a responsabilização das empresas.
Em relação ao processo penal, a CIDH apontou que a demora na tramitação não se caracterizou como justificável e que, passados mais de 20 anos da explosão, as condenações não eram definitivas, sendo que, no caso de Osvaldo Prazeres, foi aplicada a prescrição. Além disso, o órgão também apontou que não houve nenhuma investigação a respeito da responsabilidade das autoridades que descumpriram seu dever de fiscalização, mantendo-se a impunidade quanto a isso.
Em relação ao processo civil contra entes estatais e a empresa, a Comissão destacou que apenas um processo teve decisão definitiva, e a maioria dos beneficiários do pedido de antecipação de tutela não foram efetivamente beneficiados, pela demora no início do pagamento. Quanto ao processo civil contra Osvaldo, Mário e Julieta Bastos, salientou que o acordo indenizatório não se refere à responsabilidade do Estado, mas ao dano ocasionado aos particulares. Além disso, destacou que duas das vítimas afirmaram em seus depoimentos perante a Corte que se sentiram compelidas a assinar o acordo, e que tampouco o Estado prestou informação quanto ao pagamento integral dos montantes.
No que diz respeito aos processos trabalhistas, a CIDH apontou que mais de 20 anos transcorreram sem que a execução das sentenças fosse finalizada e que não foram tomadas as medidas possíveis para tal. Assim, o órgão considerou que a única decisão definitiva acabou sendo, na prática, ilusória.
Os representantes das vítimas coincidiram com os argumentos expressados pela Comissão. Além disso, apontaram violação estatal do direito à verdade e à reparação, tanto pelo atraso excessivo na ação penal e no julgamento dos processos, quanto pela interposição sucessiva de recursos judiciais. Adicionalmente, apontaram que, no processo civil promovido pela Promotoria local junto a algumas vítimas, ainda não houve pagamento integral do que foi acordado.
Em sua defesa, o Estado repetiu argumentação utilizada em processos contenciosos anteriores junto à Corte Interamericana, afirmando que não pode ser condenado pela violação do artigo 8.1 porque esse artigo protege as pessoas que estejam sendo processadas, e não os demandantes. Nos outros casos, o Tribunal rechaçou esse entendimento.
O Brasil também negou violação dos artigos 8 e 25 da Convenção, afirmando ter impulsionado os recursos adequados e eficazes para a proteção dos direitos, seguindo o processo regulamentar na jurisdição interna. Além disso, o Estado fez apontamentos sobre os vários processos relacionados à explosão da fábrica de fogos.
A respeito do procedimento administrativo, o Brasil destacou que esse foi iniciado de ofício e resultou na aplicação das sanções respectivas, inclusive com o cancelamento da licença de funcionamento da empresa. Quanto ao processo penal, afirmou que a interposição de recursos não apresentou nenhuma irregularidade ou demora injustificada atribuível ao Estado, mas que faz parte do contraditório.
No que tange aos recursos civis, argumentou que seguiram seu curso regulamentar e foram adequados e efetivos para o atendimento das pretensões das vítimas. A respeito do processo civil promovido pela Promotoria, ressaltou que houve acordo e apontou que o cumprimento desse e de novo acordo homologado em março de 2019 vêm contando com atuação estatal, o que permitiu sua execução na totalidade, com a expedição de ordens judiciais de pagamento às vítimas.
Quanto à outra ação civil, ressaltou a concessão da tutela antecipada e o desmembramento do processo, afirmando não haver irregularidades, ações ou omissões que tenham causado demoras injustificadas. A respeito dos processos trabalhistas, atribuiu à conduta dos demandantes e à insuficiência de provas a negativa de algumas demandas. Quanto às ações que tiveram sentença proferida, o Estado rechaçou a argumentação dos representantes e afirmou que agiu de forma diligente na busca de bens para a execução. Por fim, a defesa brasileira alegou que as vítimas não questionaram a tramitação dos processos judiciais no âmbito interno.
Em sua decisão, a Corte reforçou seu entendimento consolidado quanto à inter-relação entre os artigos 8, 25 e 1.1 da Convenção Americana, no sentido que “os recursos judiciais efetivos devem ser instruídos em conformidade com as regras do devido processo legal, de acordo com a obrigação geral, a cargo dos Estados de garantir o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção a toda pessoa que se encontre sob sua jurisdição”.
Quanto à devida diligência, parte relevante dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, a sentença aponta que “a investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis e buscar a determinação da verdade e a persecução, captura, julgamento e eventual punição de todos os responsáveis intelectuais e materiais pelos fatos”.
Já quanto ao prazo razoável, o Tribunal destacou que “deve ser apreciado em relação à duração total do procedimento que se desenvolve, desde o primeiro ato processual até que se profira a sentença definitiva, incluindo-se os recursos que possam eventualmente ser apresentados”. Além disso, a decisão aponta que “o direito de acesso à justiça implica que a solução da controvérsia ocorra em tempo razoável, já que uma demora prolongada pode chegar a constituir, por si mesma, uma violação das garantias judiciais”.
Passando para o caso concreto, a Corte analisou as alegadas violações dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial a respeito de cada tipo de processo interno, subdivididos entre processos penais, civis, trabalhistas e administrativos. Quanto a esse último, iniciado em dezembro de 1998 e finalizado em junho do ano seguinte, com o cancelamento definitivo do registro da empresa, os juízes consideram que “o Estado conseguiu demonstrar que agiu com a devida diligência e em prazo razoável”.
A respeito do processo penal, que após quase 22 anos ainda não tem uma decisão definitiva, a sentença destaca que o caso não tinha grande complexidade, já que as vítimas e possíveis responsáveis, bem como as circunstâncias e causas da explosão, estavam identificadas. O Tribunal também constatou que não houve atividade processual dos interessados que possa ter contribuído para o atraso do processo e que a “demora excessiva e a impunidade” agravaram a situação das vítimas, “especialmente em razão da condição de extrema vulnerabilidade pela situação de pobreza e discriminação estrutural em que se encontravam”.
Para a Corte, o principal fator para o não cumprimento do prazo razoável no desenvolvimento do processo penal foi a conduta das autoridades, que não atuaram com a devida diligência. Como exemplos desse entendimento, a decisão cita a demora no julgamento dos recursos judiciais e cometimento de uma série de outros equívocos, incluindo a falta de intimação dos defensores dos réus, que culminou na anulação da sentença em segunda instância. Com base nisso, o Tribunal considerou que “o Estado não demonstrou que tenha existido uma justificativa aceitável para os longos períodos sem que houvesse ações por parte das autoridades judiciais e para a demora prolongada do processo penal”.
Quanto à primeira ação civil, movida contra o Brasil, a Bahia, a cidade de Santo Antônio de Jesus e a empresa de Mário Prazeres Bastos, a decisão aponta que o Estado descumpriu a garantia do prazo razoável. Para a Corte, não havia grande complexidade, tampouco havia elementos nos autos para avaliar a atividade processual dos interessados. Adicionalmente, houve atraso injustificado no desmembramento dos processos, no proferimento das sentenças de primeira instância e na apreciação dos recursos interpostos. Além disso, a falta de indenização teve impacto significativo nas vítimas e seus familiares, que “não dispunham de meios econômicos suficientes para pagar os custos dos tratamentos médicos e psicológicos necessários”.
O Tribunal também considerou que o Estado não agiu com a devida diligência, já que houve demora excessiva em várias das fases processuais, sem que se tenha apresentado justificativa para tal. Além disso, a ausência de solução definitiva e da execução das decisões judiciais, mais de 20 anos após o início da ação civil principal, também demonstram falta de diligência estatal, na visão da Corte.
No que diz respeito à segunda ação civil, relacionada ao processo penal, a Corte considerou não dispor “de elementos probatórios suficientes para avaliar o cumprimento ou descumprimento do dever de devida diligência”. Em relação à tramitação do processo em prazo razoável, o Tribunal fez as mesmas considerações da primeira ação civil quanto à complexidade, a atividade processual dos interessados e os impactos da falta de indenização nas vítimas. No que tange à conduta das autoridades judiciais, a decisão aponta que essas “não garantiram os meios, nem tomaram as medidas destinadas a conseguir a reparação adequada em tempo razoável”.
A respeito dos processos trabalhistas, a Corte Interamericana teceu as mesmas considerações feitas nas duas ações civis quanto à complexidade, a atividade processual dos interessados e os impactos da falta de indenização nas vítimas. Igualmente, considerou a conduta das autoridades judiciais insuficiente, “na medida em que dispunham dos elementos para ter reconhecido o papel de Osvaldo Prazeres Bastos na fábrica e, portanto, ter ordenado o embargo de seus bens anos antes”.
Considerando isso, a decisão destaca que “o Estado não garantiu que os processos trabalhistas fossem conduzidos em um prazo razoável, especialmente no que diz respeito à execução das sentenças”, e também não atuou com a devida diligência.
Por fim, o Tribunal ressaltou que, mais de 21 anos após a explosão, “nenhuma pessoa foi efetivamente punida nem tampouco foram adequadamente reparadas as vítimas da explosão ou seus familiares”. Para a Corte, isso demonstrava que não foi garantida proteção judicial efetiva, já que, a despeito de ter sido permitido o uso de recursos judiciais previstos legalmente, esses recursos ou não tiveram decisão definitiva, ou tiveram decisão favorável, mas não foram executados, de maneira injustificada.
Com base nisso, os juízes consideraram que “o Estado é responsável pela violação do direito à proteção judicial, disposto no artigo 25 da Convenção Americana, assim como do dever de devida diligência e da garantia judicial ao prazo razoável, previstas no artigo 8.1 da Convenção, ambos em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento”. A violação ocorreu em prejuízo das seis vítimas sobreviventes e de 100 familiares das vítimas fatais.
Artigo 5.1, em relação com o artigo 1.1 (familiares)
Tanto a Comissão quanto os representantes apontaram que os familiares das vítimas de certas violações podem ser considerados vítimas, em consequência dos danos a sua integridade física e moral. Para ambos, as mortes ocorridas na fábrica de fogos foram uma fonte de sofrimento para as famílias das vítimas diretas, o que foi amplificado pela falta de justiça.
Os apontamentos do Estado quanto a essa alegação foram feitos inicialmente em suas exceções preliminares. O Brasil questionou a inclusão de alguns familiares como supostas vítimas, por considerar que não ficou comprovado ou não se alegou de forma específica em que medida seus direitos foram afetados. Também apontou jurisprudência do caso da Guerrilha do Araguaia, em que o Tribunal estabeleceu a necessidade de provar os danos à integridade dos familiares indiretos.
Após revisão da Corte, constatou-se que a objeção do Estado, inicialmente de 36 nomes, se referia a 26 pessoas, já que alguns dos nomes estavam repetidos. Considerando que o Brasil não apresentou objeção quanto aos outros familiares constantes na lista apresentada pelos representantes, a Corte considerou provado o prejuízo à integridade pessoal desses. Para o Tribunal, isso ocorreu “na medida em que o ocorrido lhes provocou sofrimentos diretos, por conta das condições em que aconteceram as mortes, que incluíram corpos queimados e mutilados de mulheres adultas, crianças e mulheres e meninas grávidas; e pela impotência diante da atuação das autoridades estatais que tardaram mais de 20 anos em fazer justiça”.
Quanto aos 26 nomes com objeção estatal, especialmente relacionados a irmãos/irmãs das vítimas fatais, os juízes analisaram cada caso individualmente. Para a Corte, não ficou comprovado o dano à integridade pessoal de sete dos familiares apontados pelos representantes. Além disso, duas das pessoas listadas pelos representantes faleceram na explosão e, portanto, não sofreram danos à integridade pessoal na condição de familiares.
Por outro lado, o Tribunal considerou provada a violação da integridade pessoal em relação aos outros 17 familiares que o Estado havia apresentado objeção. Parte da comprovação deveu-se ao fato de que esses nutriam grau de parentesco direto com outras vítimas fatais, e o Brasil não havia feito questionamentos quanto a isso. Outra parte, porque ficou demonstrado o sofrimento por meio de depoimentos dos familiares. Com isso, a Corte concluiu que o Estado “é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, reconhecido no artigo 5.1 da Convenção, em relação ao artigo 1.1, em prejuízo de 100 familiares das pessoas falecidas e sobreviventes da explosão”.
Pontos resolutivos da sentença
Corte decide, por unanimidade:
- Julgar improcedente a exceção preliminar relativa à alegada inadmissibilidade da apresentação do caso em virtude da publicação do Relatório de Admissibilidade e Mérito pela Comissão.
Corte decide, por cinco votos a dois
- Julgar improcedente a exceção preliminar relativa à alegada incompetência ratione materiae a respeito das supostas violações do direito ao trabalho.
Corte decide, por unanimidade:
- Julgar improcedente a exceção preliminar relativa à alegada falta de esgotamento de recursos internos.
Corte declara, por unanimidade:
- O Estado é responsável pela violação dos direitos à vida e da criança, constantes dos artigos 4.1 e 19, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo das sessenta pessoas falecidas na explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, ocorrida em 11 de dezembro de 1998, entre as quais se encontram vinte crianças.
- O Estado é responsável pela violação dos direitos à integridade pessoal e da criança, constantes dos artigos 5.1 e 19, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo dos seis sobreviventes da explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, ocorrida em 11 de dezembro de 1998, entre os quais se encontram três crianças.
Corte declara, por seis votos a um:
- O Estado é responsável pela violação dos direitos da criança, à igual proteção da lei, à proibição de discriminação e ao trabalho, constantes dos artigos 19, 24 e 26, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo das sessenta pessoas falecidas e das seis sobreviventes da explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, ocorrida em 11 de dezembro de 1998, entre as quais se encontram 23 crianças.
Corte declara, por unanimidade:
- O Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, constantes dos artigos 8 e 25, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo dos seis sobreviventes da explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus e de 100 familiares das vítimas da explosão da fábrica de fogos, ocorrida em 11 de dezembro de 1998.
- O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, constante do artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo de 100 familiares das pessoas falecidas e dos sobreviventes da explosão da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, ocorrida em 11 de dezembro de 1998.
Corte dispõe, por unanimidade:
- Esta Sentença constitui, por si mesma, uma forma de reparação.
- O Estado dará continuidade ao processo penal em trâmite para, em um prazo razoável, julgar e, caso pertinente, punir os responsáveis pela explosão da fábrica de fogos.
- O Estado dará continuidade às ações civis de indenização por danos morais e materiais e aos processos trabalhistas ainda em tramitação, para, em um prazo razoável, concluí-los e, caso pertinente, promover a completa execução das sentenças.
- O Estado oferecerá, de forma gratuita e imediata, o tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, quando for o caso, às vítimas do presente caso que o solicitem.
- O Estado providenciará, em um prazo de seis meses, a partir da notificação da presente sentença, as publicações citadas na sentença.
- O Estado produzirá e divulgará material para rádio e televisão, em relação aos fatos do presente caso.
- O Estado realizará um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, em relação aos fatos do presente caso.
- O Estado inspecionará sistemática e periodicamente os locais de produção de fogos de artifício.
- O Estado apresentará um relatório sobre o andamento da tramitação legislativa do Projeto de Lei do Senado Federal do Brasil PLS 7433/2017.
- O Estado elaborará e executará um programa de desenvolvimento socioeconômico, em consulta com as vítimas e seus familiares, com o objetivo de promover a inserção de trabalhadoras e trabalhadores dedicados à fabricação de fogos de artifício em outros mercados de trabalho e possibilitar a criação de alternativas econômicas.
- O Estado apresentará um relatório sobre a aplicação das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos.
- O Estado pagará as quantias fixadas na sentença, a título de indenizações por dano material, dano imaterial e custas e gastos.
- O Estado, no prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, apresentará ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento.
- A Corte supervisionará o cumprimento integral desta sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento a seus deveres, conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso tão logo tenha o Estado cumprido cabalmente o disposto.
Os juízes L. Patricio Pazmiño Freire, Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Ricardo Pérez Manrique apresentaram votos individuais concordantes, enquanto os juízes Eduardo Vio Grossi e Humberto Antonio Sierra Porto apresentaram votos individuais parcialmente discordantes. Os votos podem ser lidos ao final da sentença da Corte.
Cumprimento da sentença
Considerando o curto espaço de tempo desde que o Estado brasileiro foi notificado oficialmente da sentença da Corte Interamericana (em outubro/2020), ainda não há avanços significativos no cumprimento das determinações.
A ação civil ex delicto contra Osvaldo Prazeres Bastos, Maria Julieta Fróes Bastos e Mário Fróes Prazeres Bastos segue na fase de execução do acordo homologado em 2019. No segundo semestre de 2020, houve uma série de movimentações no processo judicial, inclusive com solicitação de informação sobre saldo bancário e determinação de transferência do valor.
Não há informações de que os processos originados da ação civil contra o Brasil, a Bahia, a cidade de Santo Antônio de Jesus e a empresa de Mário Prazeres Bastos tenham sido executados após a sentença da Corte. Também não há informações sobre execução das sentenças dos processos trabalhistas.
Em relação à ação penal, a reportagem buscou o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) para saber se havia alguma previsão de novo julgamento. A assessoria do TJ-BA encaminhou nota da 1ª Vara Criminal de Santo Antônio de Jesus:
“O Processo 0000447-05.1999.8.05.0229 - foi recebido do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia em 16/08/2019. Despacho proferido pelo MM Juiz da 1ª Vara Criminal da Comarca de Santo Antônio de Jesus/BA, determinado cumprimento do decreto condenatório. Informo ainda, que por determinação do STJ foram recolhidos os mandados de prisão expedidos em desfavor dos réus, determinando o sobrestamento dos efeitos do acórdão impugnando até o julgamento de mérito do habeas corpus n.o 527.573- BA (2019/0242655-1). O feito encontra-se aguardando o julgamento do habeas corpus mencionado."
O habeas corpus 527.573-BA, ao qual a nota se refere, entretanto, já foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no segundo semestre de 2019. Na ocasião, o tribunal determinou que fosse realizado novo julgamento das apelações no TJ-BA, já que os advogados dos acusados não haviam sido convocados para a sessão de julgamento dos recursos.
Essa informação foi confirmada em contato com a assessoria do STJ, que informou que foi expedido ofício à presidência do TJ-BA, bem como ao Ministério Público, em 30 de setembro de 2019, comunicando o resultado. Segundo a assessoria, a decisão vale para Ana Cláudia Almeida Reis Bastos, Osvaldo Prazeres Bastos, Helenice Froes Bastos Lírio e Adriana Froes Bastos de Cerqueira. O processo transitou em julgado no STJ em 21 de outubro de 2019.
Com base nessa informação, o Réu Brasil buscou novamente o TJ-BA. Até a publicação deste texto, o órgão judiciário da Bahia não esclareceu a informação desencontrada.
Paralelamente a isso, em resposta a um pedido de informação referente ao Caso Ximenes Lopes, o MMFDH manifestou-se sobre o cumprimento das determinações da Corte ligadas a questões de saúde de forma geral:
“A AI/MMFDH [Assessoria Especial de Assuntos Internacionais] iniciou, em novembro último, tratativas com o Ministério da Saúde para uma parceria sistemática voltada ao cumprimento de pontos resolutivos de sentenças da Corte IDH concernentes a questões de saúde, (...).”
Saiba mais
Oficial
- Relatório de admissibilidade e mérito da CIDH
- Carta de submissão da CIDH para a Corte
- Íntegra da sentença
- [Os demais documentos ainda não estão disponíveis no site da Corte IDH]
Outros
- Salve! Santo Antônio (Documentário de Aline Sasahara)
- Fogos, artifícios e dor (Tab/UOL)
- A explosão da fábrica de fogos e o racismo estrutural do Brasil (Correio da Bahia)
- Morte de 64 em fábrica de fogos na BA vai a júri na OEA após 21 anos impune (UOL)
- Parentes de vítimas de explosão de fábrica clandestina que matou 64 pessoas na BA há 20 anos realizam protesto; ninguém foi preso até hoje (G1)
- Explosão em fábrica de fogos mata 20 - 12/12/98 (Folha de S. Paulo)
- Brasil no banco dos réus | Caso da explosão da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus será julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Justiça Global)
- A produção de fogos de artifício no município de Santo Antônio de Jesus/BA: uma análise de sua contribuição para o desenvolvimento local (José Amândio Barbosa Júnior)
- Brincar com fogo, nunca mais (Revista Sebrae)
- 22 anos da explosão da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus (JOTA)
Notas do autor
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As informações apresentadas neste site sobre o Caso da Fábrica de Fogos foram essencialmente extraídas da sentença da Corte Interamericana. Também há informações colhidas no relatório de admissibilidade e mérito da CIDH, no escrito de submissão do caso à Corte e nos processos judiciais ligados ao caso.
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Informações de contexto também foram colhidas nos textos e reportagens listados em “saiba mais”, bem como nos textos e sites linkados.
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As informações sobre o cumprimento da sentença foram colhidas nos processos judiciais ligados ao caso, em contatos com a Justiça Global, representante das vítimas, com as assessorias de STJ e TJ-BA e em entrevista com Rosângela Santos Rocha, do Movimento 11 de Dezembro.
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No trecho em que são apresentados os pontos resolutivos determinados pela Corte, são omitidas referências a parágrafos da sentença e feitas adaptações para melhor entendimento.
Foto em destaque: Reprodução