Ficha Técnica

Vítimas: Clarice Herzog (esposa), Zora Herzog (mãe), Ivo Herzog e André Herzog (filhos)
Peticionários e/ou Representantes: Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FidDH), Centro Santos Dias, da Arquidiocese de São Paulo e Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo
Juízes: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Presidente; Eduardo Vio Grossi, Vice-Presidente; Humberto Antonio Sierra Porto, Juiz; Elizabeth Odio Benito, Juíza; Eugenio Raúl Zaffaroni, Juiz; e L. Patricio Pazmiño Freire, Juiz;

Cronologia

Na CIDH

10 de julho de 2009

Petição

8 de novembro de 2012

Relatório de Admissibilidade

28 de outubro de 2015

Relatório de Mérito

Na Corte

22 de abril de 2016

Submissão pela CIDH

15 de março de 2018

Sentença

Supervisão do cumprimento

Leia entrevista do Réu Brasil com Ivo Herzog, filho de Vlado


Resumo

Nono caso brasileiro analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a sentença do Caso Herzog versus Brasil data de 15 de março de 2018.

Em meados dos anos 1970, o regime militar promovia ofensiva contra supostos membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O jornalista Vladimir Herzog, então diretor do Departamento de Jornalismo da TV Cultura, foi apontado como militante do PCB. Vlado, como era conhecido, apresentou-se para depor na sede do DOI-CODI, em São Paulo, na manhã de 25 de outubro de 1975. Lá, foi detido, interrogado, torturado e acabou morto, no mesmo dia. A ditadura, recusando-se a admitir o assassinato, forjou um suicídio, legitimado por perícia técnica fraudulenta. A evidente fraude na versão oficial, explicitada pelas fotos divulgadas, provocou grande comoção em vários setores da sociedade brasileira.

A forte reação, porém, não foi o suficiente para o regime admitir a fraude, e o inquérito policial militar (IPM) instaurado reiterou a versão oficial. A despeito de algumas decisões favoráveis à família de Vladimir Herzog, nenhum dos envolvidos nunca foi responsabilizado no decorrer das décadas seguintes, principalmente por conta da aplicação da Lei de Anistia, cujo a vigência e constitucionalidade do parágrafo que protege os militares foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Em julho de 2009, o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil/Brasil), a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), o Centro Santo Dias da Arquidiocese de São Paulo e o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as violações sofridas por Herzog e seus familiares. O Brasil questionou a competência temporal da Comissão, negou ter sido omisso em relação aos fatos denunciados e questionou o esgotamento dos recursos internos. Em novembro de 2012, porém, a CIDH rechaçou a argumentação brasileira, produzindo relatório de admissibilidade da petição.

Após várias prorrogações de prazo, a Comissão produziu relatório de mérito em outubro de 2015, considerando o Brasil responsável por uma série de violações de direitos humanos, em detrimento de Herzog e seus familiares. O órgão fez uma série de recomendações ao Estado brasileiro, estabelecendo um prazo para o cumprimento. Após o Brasil apresentar relatório, a CIDH considerou que a implementação não era satisfatória e remeteu o caso à Corte IDH, em abril de 2016. Considerando a data de reconhecimento da competência do Tribunal pelo Brasil (dezembro de 1998), a Comissão submeteu à Corte “as ações e omissões estatais” que ocorreram ou continuaram ocorrendo após esse marco temporal.

A Corte Interamericana admitiu parcialmente três das exceções preliminares interpostas pelo Estado, relacionadas à competência temporal, e negou as outras seis, dando prosseguimento ao julgamento. Na mesma sentença, condenou o Brasil pela violação dos direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial, bem como do direito a conhecer a verdade, em relação com a obrigação de respeitar e garantir os direitos e o dever de adotar disposições de direito interno, previstos na Convenção Americana. Também considerou ter havido violação dos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Foram consideradas vítimas de tais violações de direitos humanos Clarice (esposa), Zora (mãe), Ivo e André Herzog (filhos).

A Corte determinou uma série de medidas de reparação, que incluem a publicação da sentença e o pagamento de indenização, custas e gastos. Também determinou a realização de ato simbólico de reconhecimento da responsabilidade e a adoção de medidas para garantir que os crimes contra a humanidade sejam considerados imprescritíveis. Além disso, o Tribunal determinou que o Brasil reiniciasse a investigação e o processo penal cabíveis para determinar as responsabilidades pela tortura e morte de Herzog. Na decisão, a Corte ressaltou que não poderia ser aplicada a Lei de Anistia ou qualquer excludente de responsabilidade em benefício dos autores.

O Brasil efetivou apenas uma parte das publicações da sentença ordenadas e ainda não pagou a indenização devida aos familiares de Vlado. As custas e gastos, em contrapartida, foram pagos. O ato simbólico não foi realizado e não foram adotadas medidas para garantir a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. Paralelamente a isso, em março de 2020, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou denúncia contra seis pessoas pela morte de Herzog. A Justiça Federal de São Paulo, porém, rejeitou a denúncia, mediante a aplicação da Lei de Anistia e de outros excludentes de responsabilidade, contrariando a sentença da Corte. O MPF recorreu e aguarda decisão.

O procedimento de supervisão do cumprimento da sentença, que ainda não teve nenhum relatório publicado pela Corte, segue em aberto.

Vlado com os dois filhos, Ivo e André - Foto: Acervo Instituto Vladimir Herzog

Contexto

Vladimir Herzog nasceu em 27 de maio de 1937, na antiga Iugoslávia, atual Croácia, com o nome Vlado Herzog. Ele chegou ao Brasil em 1946, aos seis anos, junto com seus pais, Zigmund e Zora. Naturalizou-se brasileiro e estudou filosofia na Universidade de São Paulo (USP), iniciando a carreira de jornalista em 1959, no jornal “O Estado de São Paulo”, onde foi repórter, redator e chefe de reportagem.

Vlado, como era conhecido, casou-se com Clarice Ribeiro Chaves em fevereiro de 1964. Em 1965, o casal foi morar em Londres, onde Herzog trabalhou como produtor e locutor da BBC. Lá, permaneceram por cerca de dois anos e tiveram seus dois filhos, André e Ivo. Em 1968, voltaram ao Brasil, e Vlado trabalhou por quase cinco anos como editor cultural da revista “Visão”. Logo após, o jornalista passou a ocupar o cargo de secretário do programa “Hora da Notícia”, da TV Cultura, e, em seguida, assumiu como diretor do Departamento de Jornalismo do canal. Herzog também foi professor de jornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

A ditadura civil-militar brasileira teve início em março de 1964, pouco tempo após Vlado casar-se com Clarice, a partir de golpe que tirou o presidente João Goulart (PTB) do poder. O regime teve sua fase mais extremada durante o mandato de Emílio Garrastazu Médici (1969-74), nos meses após ser baixado o Ato Institucional Número 5 (AI-5). Em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 suspendeu uma série de garantias constitucionais e impulsionou ofensiva do regime militar contra os grupos armados de oposição.

Quando Ernesto Geisel assumiu como presidente, em março de 1974, anunciava-se um projeto de distensão “lenta, gradual e segura”. Nos três primeiros anos, porém, os interrogatórios mediante tortura e a eliminação de opositores prosseguiam como rotina, com especial ênfase no desaparecimento de presos políticos.

Pouco antes do início do governo Geisel, que perdurou até março de 1979, as forças de segurança enxergaram um aparente crescimento do Partido Comunista Brasileiro (PCB), visto como uma ameaça, e decidiram neutralizá-lo. A “Operação Radar” foi iniciada em 1973 e conduzida pelo Centro de Informação do Exército (CIE), em conjunto com o Departamento de Operações Internas do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército.

A ofensiva da operação ocorreu entre março de 1974 e janeiro de 1976, período em que dirigentes do “partidão”, como era conhecida a agremiação, assim como jornalistas da “Voz Operária”, veículo editado pelo órgão central do partido, passaram a ser sequestrados, detidos, torturados e, inclusive, mortos por agentes estatais. Durante esses pouco menos de dois anos, foram detidos pela Operação Radar 679 membros do PCB, e pelo menos 11 dirigentes do partido foram mortos.

O “ataque final” contra o PCB em São Paulo começou em setembro de 1975, quando o militante José Montenegro de Lima foi detido, torturado e morto pelo regime, que nos dias seguintes deteve dezenas de pessoas. Nesse mesmo período, o DOI/CODI de São Paulo intensificou ações de repressão contra jornalistas. Em 24 de outubro daquele ano, 11 jornalistas estavam detidos no local.

Na mesma noite, dois agentes da repressão foram até à TV Cultura e intimaram Vladimir Herzog, que era suspeito de integrar o PCB, a acompanhá-los até a sede do DOI/CODI, para prestar declaração testemunhal. Após intervenção da direção da emissora, os agentes aceitaram que Herzog depusesse “voluntariamente” na manhã seguinte.

Às oito horas da manhã de sábado, 25 de outubro de 1975, Herzog apresentou-se na sede do organismo. No DOI/CODI, foi detido, interrogado e torturado. Na tarde daquele sábado, Vladimir Herzog foi assassinado, aos 38 anos, pelos agentes do DOI/CODI que o mantinham detido no local.

De acordo com a versão oficial do Comando do II Exército, porém, Vlado teria sido encontrado morto, “enforcado tendo para tanto utilizado uma tira de pano”. O comunicado afirmava que Herzog tinha sido convidado a depor após ser citado como militante do PCB, tendo inclusive confessado sua participação no partido. A versão oficial também afirmou que uma perícia técnica havia confirmado a morte por suicídio.

A morte de Vlado provocou grande comoção nacional. A evidente farsa na versão de suicídio, explicitada pelas fotos de Herzog enforcado em uma posição absolutamente irrealista, fez com que o repúdio não partisse somente de segmentos restritos, como vinha ocorrendo até então, mas atingisse a sociedade civil como um todo. Em ato de grande simbolismo, o rabino Henry Sobel recusou-se a enterrar Vlado na área destinada aos suicidas do cemitério judaico, rejeitando publicamente a versão oficial do regime militar.

Nos dias seguintes ao assassinato, sucederam-se várias greves estimuladas pelo sindicato de jornalistas e por estudantes e professores universitários. Seis dias depois da morte de Vlado, em 31 de outubro, a Catedral da Sé (SP) recebeu um culto ecumênico inter-religioso, celebrado pelo rabino Sobel, pelo pastor protestante James Wright e pelos católicos Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Hélder Câmara. Milhares de pessoas se aglomeraram dentro e fora do templo religioso, a despeito da tentativa da repressão de impedir o ato, na primeira grande manifestação pública contra o regime desde o AI-5.

A ditadura civil-militar deixou um legado de violência no país. Segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, cerca de 50 mil pessoas teriam sido detidas somente nos primeiros meses da ditadura; cerca de 20 mil presos foram submetidos a torturas; há 354 mortos e desaparecidos políticos; 130 pessoas foram expulsas do país; 4.862 pessoas tiveram seus mandatos e direitos políticos suspensos, e centenas de camponeses foram assassinados.

O processo de reabertura democrática no Brasil foi marcado pela promulgação pelo regime militar da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, que promoveu anistia “ampla, geral e irrestrita” a todos que haviam cometido “crimes políticos ou conexos” entre setembro de 1961 e agosto de 1979. Se, por um lado, a Lei de Anistia permitiu o retorno de muitos exilados políticos da oposição, por outro serviu para garantir até hoje a impunidade dos agentes repressores da ditadura, inclusive quanto ao assassinato de Vladimir Herzog.

Missa de sétimo dia de Vlado reuniu milhares de pessoas na Catedral da Sé - Foto: Agência O Globo/Acervo SJSP

Trâmite no Brasil (até a sentença da Corte)

Graças à reação pública à morte de Vlado, o II Exército determinou, em 30 de outubro de 1975, que fosse iniciado inquérito policial militar (IPM) para apurar “as circunstâncias do suicídio do jornalista”, presidido pelo General de Brigada Fernando Guimarães Cerqueira Lima. No âmbito da investigação, o oficial Motoho Chiota, que redigiu o relatório de criminalística, concluiu que a disposição do cadáver correspondia a um “quadro típico de suicídio por enforcamento”. Na mesma linha, como era a praxe do regime militar, os médicos legistas Arildo Viana e Harry Shibata apresentaram laudo de necropsia confirmando o suicídio.

O inquérito foi concluído e arquivado, reiterando a versão oficial da ditadura de que Vlado teria se suicidado mediante enforcamento. O atestado de óbito de Herzog foi emitido em 9 de dezembro daquele ano, tendo “asfixia mecânica por enforcamento” como causa mortis. Em 12 de fevereiro do ano seguinte, a Justiça Militar confirmou o arquivamento da investigação.

Contrariada com a farsa do regime militar, a família de Herzog apresentou ação declaratória perante a Justiça Federal de São Paulo em 19 de abril de 1976, com objetivo de que fosse declarada a responsabilidade da União pela detenção arbitrária, tortura e morte de Vlado. Dois anos depois, durante audiência de instrução, o médico legista Harry Shibata, que assinou o laudo de necropsia de Herzog, afirmou nunca ter visto seu corpo. Na mesma ocasião, o jornalista Paulo Markun declarou que seus depoimentos no âmbito do IPM haviam sido manipulados, e o também jornalista Rodolfo Konder, que estava preso à época da morte de Herzog, declarou ter ouvido os gritos de Vlado enquanto era torturado no DOI/CODI.

Em 27 de outubro de 1978, em uma rara decisão contra o regime militar, o jovem juiz federal Márcio José de Moraes proferiu sentença declarando que Herzog havia morrido de causas não naturais, salientando que não havia razão para que o jornalista tivesse com ele um cinto, já que vestia um macacão. Na decisão, também apontou a ilegalidade da detenção de Vlado, bem como deu destaque aos testemunhos de Konder e também de George Duque Estrada, que estavam presos no DOI-CODI, quanto à tortura sofrida por Herzog.

O juiz afirmou que o relatório complementar do Exército não tinha valor por ter sido elaborado com base em relatório de necropsia comprovadamente falso. Observou que os depoimentos colhidos pela investigação militar não se repetiram durante o julgamento e, portanto, não tinham valor probatório. Moraes concluiu que houve crime de abuso de autoridade e de tortura contra Vladimir Herzog e os demais presos políticos detidos no DOI/CODI na ocasião, remetendo o expediente ao Procurador da Justiça Militar.

A União interpôs recurso de apelação contra a decisão em novembro de 1978. Em 1983, o Tribunal Federal de Recursos declarou obrigação da União de indenizar os danos decorrentes da morte de Herzog, apontando que essa deveria ser reclamada por meio de ação de indenização. A decisão motivou novo recurso por parte da União, que foi negado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região em maio de 1994. A decisão se tornou definitiva em setembro de 1995.

No início de 1992, a Revista IstoÉ publicou entrevista com Pedro Antonio Mira Grancieri, conhecido como “Capitão Ramiro”, em que ele afirmou ter sido o único responsável pelo interrogatório de Vladimir Herzog. Por conta da publicação, o então deputado federal Hélio Bicudo (PT-SP) solicitou ao Ministério Público (MP) que investigasse a participação de Capitão Ramiro na morte de Vlado. Em 4 de maio daquele ano, o MP solicitou a abertura de inquérito policial.

Meses depois, em julho, Mira Grancieri entrou com pedido de habeas corpus, alegando que os fatos já tinham sido analisados pelo inquérito militar arquivado; afirmando que a justiça ordinária não tinha competência para o caso; e suscitando a Lei de Anistia como impedimento para a investigação. Em 13 de outubro, a 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu o habeas corpus e encerrou a investigação em cumprimento à Lei de Anistia.

O Procurador-Geral de São Paulo apelou da decisão em janeiro de 1993, destacando que inquéritos policiais não podiam ser paralisados por meio de habeas corpus, mas o recurso foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em agosto daquele ano. O tribunal apontou que não haviam sido cumpridos requisitos formais processuais e confirmou a decisão de primeira instância.

Em 4 de dezembro de 1995, o Brasil sancionou a Lei 9.140, conhecida como Lei dos Desaparecidos Políticos, em que reconheceu sua responsabilidade pelo assassinato de opositores políticos no período entre setembro de 1961 e agosto de 1979. A lei também determinou a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). A Comissão tinha a função de reconhecer pessoas mortas ou desaparecidas no contexto do regime militar, emitir pareceres sobre indenizações e envidar esforços na busca de restos mortais.

Com base na lei, a viúva de Vlado, Clarice Herzog, solicitou o reconhecimento de que seu marido havia sido torturado e assassinado na sede do DOI/CODI em São Paulo. A moção foi aprovada em abril de 1996, e Clarice recebeu, em 1997, indenização de R$ 100 mil.

Em seu livro-relatório “Direito à Memória e à Verdade”, publicado uma década depois, em 2007, a CEDMP destaca o Brasil como “único país do Cone Sul” que não trilhou procedimentos penais para “examinar as violações de Direitos Humanos ocorridas em seu período ditatorial, mesmo tendo oficializado, com a Lei nº 9.140/95, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e pelos desaparecimentos denunciados”.

A partir do relatório, em 21 de novembro de 2007, o advogado Fábio Konder Comparato solicitou ao Ministério Público Federal (MPF) que investigasse os abusos e atos criminosos cometidos por agentes do regime militar contra opositores políticos, por entender que o marco jurídico da época atribuía ao Estado a obrigação de investigar e punir os crimes contra a humanidade que tivessem sido cometidos.

A solicitação de Comparato foi inicialmente analisada por membros do MPF sem prerrogativa penal. Em março de 2008, os procuradores Marlon Alberto Weichert e Eugenia Augusta Gonzaga solicitaram que o procedimento fosse encaminhado a um membro do órgão com atribuições penais, pedindo expressamente que os crimes contra Vladimir Herzog fossem investigados e apontando a decisão da Justiça Estadual de 1992 como nula.

Em 12 de setembro do mesmo ano, o procurador Fábio Elizeu Gaspar emitiu despacho fundamentado, solicitando ao Tribunal Federal o arquivamento do inquérito. Gaspar reconheceu que o assassinato de Herzog reunia as características dos crimes contra a humanidade, mas considerou que não havia no Brasil tipificação penal que assim o caracterizasse.

O procurador considerou que a Lei de Anistia não era aplicável ao caso, e que a anistia tampouco extinguia a punibilidade do crime cometido. Gaspar, porém, concluiu que não era possível levar adiante a investigação penal, por já existir coisa julgada material – a decisão favorável do STJ ao habeas corpus, em 1993 – e pela pretensão punitiva já estar prescrita. Para o membro do MPF, a Convenção Americana, ratificada pelo Brasil em 1992, não estabelecia claramente “nenhuma hipótese de imprescritibilidade para o passado”. Por fim, o procurador apontou que não havia incompatibilidade entre a decisão interna e as obrigações internacionais do país, por se tratarem de dois sistemas distintos.

A juíza federal Paula Mantovani Avelino acolheu os argumentos do MPF, apontando que “havendo coisa julgada material, está irremediavelmente extinta a punibilidade do delito, o que, por si só, impediria a instauração de novo procedimento para investigação dos mesmos fatos”. A magistrada também afirmou que a tortura e a morte de Vladimir Herzog não poderiam ser considerados crimes contra a humanidade, pois não havia essa tipificação penal no momento dos fatos. Afirmando que “tanto o homicídio como o genocídio, bem como a tortura […] não são infrações imprescritíveis frente à Constituição e demais normas do ordenamento em vigor”, Avelino arquivou o processo em 9 de janeiro de 2009.

Pouco antes disso, em maio de 2008, o MPF apresentou Ação Civil Pública (ACP) contra a União e contra os ex-comandantes do DOI/CODI de São Paulo, Audir Santos Maciel e Carlos Alberto Brilhante Ustra. A ação ressaltava a possibilidade de que o Brasil sofresse sanções de cortes internacionais ao justificar o arquivamento de investigações e outros processos que se referem aos crimes cometidos na ditadura, sob a alegação de que tais delitos prescreveram ou não são passíveis de punição em virtude da Lei da Anistia.

A ACP objetivava que o Exército brasileiro fosse obrigado a tornar pública toda a informação que tivesse com respeito às atividades desenvolvidas no DOI/CODI do II Exército, entre 1970 e 1985. Buscava que fosse declarada a omissão da União em promover as medidas necessárias para a reparação de danos que apoiou o pagamento das indenizações previstas na Lei dos Desaparecidos Políticos. Também pretendia que os ex-comandantes fossem responsabilizados e condenados a diversas reparações e à perda de funções públicas.

Dois anos depois, em 5 de maio de 2010, a 8ª Vara Federal de São Paulo declarou a ação improcedente, argumentando falta de idoneidade do recurso. A decisão considerou que ação interposta pelo MPF não podia ter como efeito a imposição de obrigações “de fazer”, nem tampouco de produzir efeitos típicos e próprios do habeas data. O tribunal suscitou a Lei de Anistia e a determinação do STF no julgamento da ADPF que questionava a constitucionalidade da lei. O MPF apresentou recurso de apelação contra a decisão, que não havia sido julgado até a sentença da Corte Interamericana.

Paralelamente a isso, em 24 de setembro de 2012, o juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou que passasse a constar no atestado de óbito que a morte de Vladimir Herzog "decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército - SP (Doi-Codi)". A família de Herzog recebeu o novo atestado em cerimônia realizada na USP em março de 2013. A determinação veio a partir de solicitação de retificação da causa mortis de Vlado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Instituída em 2011, com a finalidade de “examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos praticadas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988”, a CNV funcionou entre maio de 2012 e dezembro de 2014. Em setembro de 2014, a equipe de peritos da Comissão realizou exame pericial das fotografias do corpo de Vladimir Herzog, concluindo que as marcas em seu pescoço e tórax eram próprias de uma morte por asfixia mecânica e não por enforcamento autoinfligido. O relatório final da CNV afirmou que não havia dúvida de que Herzog havia sido detido ilegalmente, torturado e assassinado por agentes do Estado no DOI/CODI/SP, em 25 de outubro de 1975.

Lei de Anistia e ADPFs

Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Na ADPF 153, a OAB questionou a validade de parágrafo do artigo 1º da Lei de Anistia, que considera como conexos e igualmente perdoados os crimes de “qualquer natureza”. O objetivo era que a Suprema Corte anulasse o perdão dado aos representantes do Estado acusados de praticar atos graves de violência durante o regime militar.

Em 29 de abril de 2010, o STF declarou a improcedência da Arguição movida pela OAB, reafirmando a vigência da Lei de Anistia e a constitucionalidade da interpretação do parágrafo em questão. O placar da decisão foi de sete votos a dois. Após a decisão do Supremo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com recurso de embargos de declaração, que ainda está pendente de julgamento.

Em 24 de novembro de 2010, em sua sentença sobre o Caso Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana apontou que “dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos”. O Tribunal determinou que essas disposições “não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.

A despeito da sentença da Corte, porém, a Lei de Anistia e a interpretação dada pelo Supremo continuam sendo um empecilho para a responsabilização dos culpados pelas violações da ditadura militar. Em maio de 2014, o Psol protocolou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 320, com o objetivo de que o STF considere que a Lei da Anistia não se aplica aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos. Além disso, também tem a pretensão de que seja determinado que a normativa não se aplica aos autores de crimes continuados ou permanentes.

A ADPF, que evoca a condenação do Brasil perante à Corte Interamericana no caso da Guerrilha do Araguaia, recebeu, ainda em 2014, parecer parcialmente favorável do então Procurador-Geral da República (PGR), Rodrigo Janot. A ação, sob relatoria do ministro Luiz Fux, está parada no Supremo Tribunal Federal e a previsão é de que seu mérito seja julgado conjuntamente com os embargos de declaração da ADPF 153.

Rabino Henry Sobel se recusou a enterrar Herzog na ala destinada aos suicídas do cemitério judaico - Foto: Acervo Instituto Vladimir Herzog

Na Comissão

O Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil/Brasil), a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), o Centro Santo Dias da Arquidiocese de São Paulo e o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 10 de julho de 2009. Os peticionários apontaram o Estado como internacionalmente responsável pela detenção arbitrária, tortura e morte de Vladimir Herzog e pela contínua impunidade dos fatos, em virtude da aplicação da Lei de Anistia.

No documento, as organizações denunciam o Brasil pela violação dos direitos à integridade pessoal (artigo 5), às garantias (artigo 8) e proteção judiciais (artigo 25), em relação às obrigações gerais de respeitar os direitos e de adotar disposições de direito interno, previstas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana. Também apontam violação dos direitos à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa (artigo I), à justiça (artigo XVIII), de proteção contra prisão arbitrária (artigo XXV) e a processo regular (artigo XXVI), previstos na Declaração Americana. Por fim, apontam violação dos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (CIPST, na sigla em espanhol).

Posteriormente, os peticionários também apontaram violações do direito à liberdade de pensamento e de expressão, previsto no artigo 13 da Convenção, e dos direitos previstos nos artigos IV (de liberdade de investigação, opinião, expressão e difusão), VII (de proteção à maternidade e à infância), XXI (de reunião) e XXII (de associação) da Declaração Americana.

A petição foi encaminhada ao governo brasileiro em 27 de março de 2012, para que fosse apresentada contestação. O Estado alegou não ter havido omissão a respeito dos fatos denunciados, sustentou que a Comissão não teria competência temporal para examinar as supostas violações, e argumentou que a petição teria sido apresentada extemporaneamente. A CIDH rechaçou a argumentação brasileira e produziu relatório de admissibilidade em 8 de novembro de 2012, apenas rejeitando a alegação dos peticionários sobre possível violação do artigo XXVI da Declaração Americana. Poucos dias depois, o órgão abriu a possibilidade de solução amistosa, que chegou a ser aventada pelo Estado, mas que não foi levada adiante por desinteresse dos peticionários.

Após uma série de concessões de prazos para ambas as partes, a Comissão Interamericana produziu relatório de mérito durante seu 156º Período Ordinário de Sessões, em 28 de outubro de 2015. Para a CIDH, o Brasil violou os direitos consagrados nos artigos 5.1, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em conexão com as obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2. Além disso, também considerou que o Estado violou os artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e os direitos previstos nos artigos I, IV, VII, XVIII, XXII e XXV da Declaração Americana.

O órgão recomendou que o Brasil determinasse, na jurisdição comum, “a responsabilidade criminal pela prisão arbitrária, tortura e assassinato de Vladimir Herzog”, com o objetivo de “identificar os responsáveis por tais violações e puni-los penalmente”, devendo publicar os resultados da investigação. A CIDH enfatizou que o Estado deveria “considerar que tais crimes de lesa-humanidade são inanistiáveis e imprescritíveis”.

A Comissão também recomendou que o país adotasse “medidas necessárias para garantir que a Lei Nº 6.683/79 (Lei de Anistia) e outras disposições do direito penal” não continuassem “representando um obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos humanos, a exemplo do presente caso”.

Recomendou que fosse outorgada reparação aos familiares de Vladimir Herzog, incluindo tratamento físico e psicológico, e “a celebração de atos de importância simbólica que garantam a não repetição dos crimes cometidos no presente caso e o reconhecimento da responsabilidade do Estado pela prisão arbitrária, tortura e assassinato de Vladimir Herzog, e pela dor de seus familiares”. Por fim, recomendou que o Estado reparasse adequadamente as violações de direitos humanos declaradas no relatório, tanto material quanto moralmente.

O país foi notificado da decisão em 22 de dezembro de 2015, quando foi concedido um prazo de dois meses para apresentar informações sobre o cumprimento das recomendações. O Estado reiterou informações apresentadas durante a etapa de mérito e acrescentou uma proposta de indenização pecuniária. A Comissão considerou que o país não havia prestado informações sobre a reabertura da investigação do caso e que o cumprimento das recomendações não havia sido satisfatório, e resolveu submeter o caso à Corte Interamericana.

Na Corte

A Comissão Interamericana remeteu o caso à Corte em 22 de abril de 2016. Para a CIDH, além da necessidade de obtenção de justiça, o caso permitiria que “a Corte ampli[asse] e consolid[asse] sua jurisprudência sobre o alcance e conteúdo das obrigações estatais em matéria de investigação e reparação de graves violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado durante as ditaduras militares”. O Tribunal também poderia “reafirmar sua jurisprudência sobre a incompatibilidade com a Convenção Americana da aplicação da Lei da Anistia e de figuras legais como a prescrição e coisa julgada em casos como o presente”. Por fim, a Comissão destacou que a Corte poderia “analisar e pronunciar-se sobre os obstáculos de diversa índole que, na prática, impediram até agora a implementação oportuna e efetiva dos padrões interamericanos sobre estas matérias no contexto brasileiro”.

Em sua demanda, a CIDH solicitou que o Tribunal declarasse a responsabilidade internacional do Brasil pelas violações constantes do relatório de mérito de 2015, e que ordenasse ao Estado o cumprimento das mesmas recomendações incluídas no relatório.

Considerando a data de reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil, em 10 de dezembro de 1998, a CIDH submeteu ao Tribunal especificamente “as ações e omissões estatais” que ocorreram ou continuaram ocorrendo após esse marco temporal: as violações à Convenção Americana e à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura decorrentes da atuação estatal no âmbito do inquérito arquivado em janeiro de 2009, e que “foi motivado pela aplicação da Lei de Anistia bem como das figuras de prescrição e coisa julgada”; a atuação estatal no âmbito da ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal; o dano à integridade pessoal dos familiares de Herzog pela “impunidade e denegação de justiça” descritas no relatório de mérito.

Em seu escrito de solicitações, argumentos e provas, os representantes das vítimas coincidiram com os apontamentos da Comissão e acrescentaram outras alegações. Uma delas é a de que o Estado violou o direito à integridade pessoal (artigo 5) e à liberdade de expressão (artigo 13), em relação com a obrigação de respeitar os direitos (artigo 1.1) e os direitos às garantias (artigo 8) e à proteção judicial (artigo 25) da Convenção, assim como os artigos 1, 6 e 8 da CIPST, em prejuízo do próprio Vladimir Herzog, pela não investigação da tortura contra a sua pessoa eté então. Os representantes também alegaram que o Estado violou o direito à verdade, estabelecido nos artigos 5, 8, 13 (liberdade de pensamento e de expressão) e 25, em conjunto com o artigo 1.1, em detrimento dos familiares, pela falsa versão de suicídio e denegação de informações.

As vítimas também solicitaram a utilização do Fundo de Assistência Jurídica às Vítimas da Corte Interamericana, autorizado pela presidência do órgão, que contemplou gastos de transporte aéreo, hospedagem, alimentação e serviços notariais de depoimentos de vítimas, peritos e testemunhas.

No âmbito do caso, foram apresentados cinco escritos de amicus curiae, por parte de organizações nacionais e também estrangeiras.

Herzog era diretor da TV Cultura quando foi torturado e morto por agentes da ditadura militar - Foto: Arquivo Instituto Vladimir Herzog

Exceções Preliminares

Na fase de contestação do processo, o Estado brasileiro interpôs nove exceções preliminares – recurso utilizado para evitar o julgamento de mérito pelo Tribunal de parte ou da totalidade da demanda. Todas essas foram julgadas juntamente com o mérito.

Em três das exceções preliminares, o Brasil alegou diferentes incompetências ratione temporis, referentes aos fatos anteriores à adesão do país à Convenção Americana; ao reconhecimento da competência da Corte; e também à entrada em vigor da CIPST para o Estado brasileiro, afirmando que o Tribunal não poderia analisar violações ocorridas antes desses marcos temporais. Especificamente sobre o reconhecimento da competência da Corte, a defesa alegou que os processos iniciados anteriormente a esse marco temporal, mesmo que ainda estivessem em curso, não poderiam gerar responsabilidade internacional, já que os fatos que gerariam essa responsabilidade ocorreram antes do reconhecimento da competência.

A alegação foi considerada parcialmente fundamentada pela Corte, que estabeleceu 10 de dezembro de 1998, data do reconhecimento da competência pelo Brasil, como marco temporal para análise das violações, tanto as relacionadas à Convenção Americana, quanto as relacionadas à CIPST. O Tribunal também ressaltou sua jurisprudência, que estabelece “competência para examinar e se pronunciar sobre possíveis violações de direitos humanos a respeito de um processo de investigação ocorrido posteriormente à data de reconhecimento de competência do Tribunal, ainda que esse processo tenha tido início antes do reconhecimento da competência contenciosa”.

Na quarta exceção preliminar, o Estado alegou incompetência ratione materiae quanto às supostas violações de artigos da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortutura, afirmando que não reconheceu a competência da Corte para analisar as supostas violações da CIPST. Argumentação semelhante foi apontada pelo Brasil no Caso Favela Nova Brasília.

Tal como o fez no caso supracitado, o Tribunal rejeitou a alegação brasileira. A decisão destaca a aplicação anterior da CIPST em mais de 40 casos contenciosos e a Corte reiterou “sua jurisprudência constante, no sentido de que é competente para interpretar e aplicar a Convenção contra a Tortura e declarar a responsabilidade de um Estado que tenha dado seu consentimento para obrigar-se por essa Convenção e tenha aceito, além disso, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.

A quinta exceção preliminar brasileira apontou suposta falta de esgotamento prévio de recursos internos. O Estado destacou a existência de recursos internos disponíveis para declarar as violações alegadas e para obter as reparações respectivas, os quais não foram esgotados pelas supostas vítimas. Também apontou não ter conhecimento de que a família de Herzog tenha solicitado um habeas data e ressaltou que a investigação criminal e o julgamento perante o foro ordinário não são os únicos recursos que devem ser considerados.

Na decisão, a Corte destacou que o momento oportuno para essa alegação é antes da análise de admissibilidade da petição pela Comissão Interamericana. O Tribunal considerou que “o Estado apresentou alegações diferentes na etapa de admissibilidade perante a Comissão e na exceção preliminar perante a Corte”, e que “em sua primeira comunicação à Comissão, o Estado não opôs essa exceção, motivo por que sua apresentação ao Tribunal é extemporânea”. Com base nisso, rejeitou a alegação.

Em sua sexta exceção preliminar, o Brasil ressaltou que a Convenção Americana dispõe que uma petição deve ser apresentada à Comissão seis meses depois do esgotamento dos recursos internos, ou em prazo razoável. Para a defesa, a data de apresentação da petição, em 2009, não respeitou essa disposição, e a Corte deveria proceder ao controle de legalidade da atuação da Comissão, no que diz respeito à admissibilidade do caso.

Na sentença, o Tribunal destacou que não há controvérsia entre as partes quanto “a inexistência de recursos disponíveis para as vítimas, em virtude da Lei de Anistia” e que, portanto, o prazo de seis meses é inaplicável, devendo-se avaliar se a petição foi apresentada em prazo razoável.

A Corte destacou que a motivação da petição foi a impunidade quanto à morte e à tortura de Vladimir Herzog, e que os peticionários tinham expectativa de que o Estado remediasse essa situação a partir do retorno da democracia e, em especial, a partir da apresentação do relatório final da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, que foi expedido em 2007. Além disso, também destacou o arquivamento, em 2009, de processo que visava investigar atos criminosos contra opositores políticos do regime militar, e que poderia ter contribuído para a eliminação da impunidade. Com base nisso, considerou que a petição foi apresentada em prazo razoável, negando a exceção preliminar brasileira.

Na sétima exceção preliminar, o Estado alegou incompetência ratione materiae da Corte para revisar decisões internas sobre possíveis violações dos artigos 8 e 25, afirmando que o órgão assumiria o papel das autoridades nacionais e atuaria como se fosse um tribunal de recursos.

Na decisão, os juízes apontaram que “nem a Comissão nem os representantes solicitaram a revisão de decisões internas relacionadas com avaliação de provas, dos fatos ou da aplicação do direito interno” e que “é objeto de estudo de mérito analisar, em conformidade com a Convenção Americana e o Direito Internacional, as alegações sobre se os processos judiciais internos foram idôneos e eficazes, e se os recursos tramitaram e foram solucionados devidamente”. Além disso, o Tribunal afirmou que também era objeto do mérito analisar “se o pagamento feito a título de reparação de danos materiais foi suficiente e se houve atos e omissões que violaram garantias de acesso à justiça que poderiam ter gerado responsabilidade internacional ao Estado”. Com base nisso, a alegação foi declarada improcedente.

A oitava exceção preliminar brasileira apontou que a Comissão Interamericana teria publicado seu Relatório de Mérito antes da submissão do caso à Corte, o que violaria os artigos 50 e 51 da Convenção Americana. Alegação idêntica foi feita pelo país nos casos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, Favela Nova Brasília e Povo Xucuru.

Em sua sentença, a Corte rememorou as decisões tomadas nos casos anteriores e negou a exceção, apontando que “a afirmação do Tribunal nos casos citados se aplica também ao presente, pois o Estado tampouco demonstrou que a publicação do Relatório de Mérito tenha sido feita de forma contrária ao exposto pela Comissão ou contrariando o estabelecido na Convenção Americana”.

Em sua nona e última exceção preliminar, o Estado apontou suposta incompetência ratione materiae da Corte para analisar fatos diferentes daqueles submetidos pela Comissão. Para o Brasil, os representantes não podem propor fatos novos diferentes dos apresentados pela CIDH em seu relatório de mérito, o que teria ocorrido nas alegações de ocultação dos arquivos militares e a negativa de acesso a esses documentos. Além disso, a defesa brasileira apontou não haver, no relatório da Comissão, menção à suposta violação do direito à verdade nem à ação civil pública.

A Corte negou a alegação por não considerá-la uma exceção preliminar, e sim uma questão de mérito. O Tribunal destacou que, no presente caso, “a informação remetida pelos representantes tem relação com o alegado acobertamento institucional a que se refere a Comissão em seu Relatório de Mérito”. Além disso, apontou que “ainda que a Comissão não tenha estabelecido uma violação do direito à verdade, a ação civil pública está incluída no quadro fático do Relatório de Mérito”.

Supostas violações analisadas pela Corte

Artigos 8.1 e 25.1, em relação com os artigos 1.1 e 2 da Convenção; artigos 1, 6 e 8 da CIPST

Em seus escritos, tanto a Comissão quanto os representantes das vítimas destacaram que a detenção, tortura e assassinato de Vladimir Heroz ocorreram em um contexto de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar, com um padrão sistemático de repressão contra o Partido Comunista Brasileiro; para os representantes, em especial, constituíram crime contra a humanidade. Também recordaram que, em casos de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, o Estado tem a obrigação de iniciar investigação de ofício e com a devida diligência, dever que persiste nos casos ocorridos antes do reconhecimento da competência da Corte.

Particularmente, a CIDH reconheceu as ações do Estado brasileiro para o esclarecimento da verdade histórica quanto ao caso de Vlado, mas ressaltou que essas não substituem a obrigação do Estado de assegurar as responsabilidades individuais ou estatais. Apontou também que a aplicação da Lei de Anistia no caso de Herzog impediram uma eventual punição dos responsáveis, o que vai de encontro com as obrigações internacionais do Brasil decorrentes do Direito Internacional, ressaltando a incompatibilidade entre a lei e a Convenção Americana.

Com base nisso, a Comissão concluiu que a falta de investigação dos fatos, assim como a ausência de julgamento e punição dos responsáveis, consistiu em violação dos artigos 8.1 e 25.1, em relação com as obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção, bem como dos artigos 1, 6 e 8 da CIPST, em detrimento da esposa, dos filhos e da mãe de Vlado.

Os representantes também destacaram o papel da Lei de Anistia na manutenção da impunidade quanto à morte de Vladimir Herzog. Salientaram que a sentença da Corte no Caso da Guerrilha do Araguaia, que estabeleceu que a norma não pode representar um obstáculo para a investigação e punição dos responsáveis por graves violações de direitos humanos, também se aplica a outros casos de graves violações.

Em seus escritos, questionaram a aplicação, pelo Estado, do instrumento da prescrição. Para eles, a proibição e a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade alcançaram o status de norma imperativa jus cogens, e a prática de tortura e de crimes contra humanidade já era reconhecida como violatória do Direito Internacional quando da morte de Vlado, independentemente de ratificação ou não de tratados e demais instrumentos. Os representantes também enfatizaram a demora no julgamento em segunda instância da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal como particularmente grave.

Para os representantes, o Estado descumpriu o dever de garantir o direito à liberdade de expressão em virtude da ausência de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelas violações sofridas por Vlado, bem como descumpriu o dever de investigar e punir a tortura. Também consideraram que o Estado descumpriu deveres ao aplicar a Lei de Anistia, a prescrição e outras disposições de direito interno que impediram o avanço das investigações. Com base nisso, solicitaram que o Brasil fosse considerado responsável pela violação dos artigos 5, 8, 13 e 25, bem como das obrigações contidas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana, em prejuízo de Vladimir Herzog. Também apontaram violação dos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Americana para Prevenir e Punir a Tortura.

O Estado alegou que as supostas vítimas nunca estiveram na condição de parte em processo judicial relacionado ao caso e que, por isso, sequer existiria a possibilidade do Brasil ter violado os 8.1 da Convenção Americana e 8 da CIPST. A defesa brasileira também afirmou que não ficou comprovada nenhuma violação do direito de defesa das vítimas nos processos internos, mesmo após a produção de provas perante a Corte.

Também destacou que a suposta violação do artigo 25.1 teria ocorrido “somente na condução e conclusão das peças de informação autuadas no Ministério Público Federal em 2008”, e que o arquivamento dessa ação não se deveu à aplicação da Lei de Anistia, mas sim da coisa julgada e da prescrição, diferentemente do que apontou a CIDH. Apontou também que “as normas de jus cogens não estão absolutamente acima de questões procedimentais”.

A defesa ressaltou que o entendimento da Corte de que tem poderes para se manifestar sobre a validade de normas domésticas, especialmente quanto a leis de anistia, só veio em decisão de 2001, muito depois da decisão de arquivar o inquérito sobre o caso Herzog, em 1993. Para o Brasil, as sentenças da Corte são obrigatórias para casos concretos e para partes, não sendo razoável punir o Estado por “obrigação que não existia juridicamente no momento da decisão doméstica”.

O Estado também afirmou discordar do entendimento da Corte de que os crimes são imprescritíveis quando constituem graves violações de direitos humanos, destacando o caráter secundário da jurisdição penal internacional e ressaltando que não existe nenhum tratado que o Brasil tenha firmado que “imponha à persecução penal doméstica, sobre determinado crime, o afastamento de prazos prescricionais”. Para o Estado, a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade está estabelecida na jurisdição penal internacional, mas não há “lastro no Direito Internacional para se estender a imprescritibilidade de tais crimes à jurisdição penal doméstica”.

A defesa brasileira apontou que o crime de tortura só foi tipificado em âmbito interno em 1997, e que uma ação penal baseada nesse tipo só pode ser instaurada a partir dessa data, sob o risco de violar os princípios da legalidade e da irretroatividade. Para o Estado, essa não tipificação da tortura no momento dos fatos ocorridos com Vladimir Herzog também inviabilizaria uma violação do dever de investigar e punir a tortura.

Quanto à alegada violação da Convenção por demora injustificada relacionada à Ação Civil Pública movida pelo MPF, o Brasil apontou que a ação seria inadequada em relação aos fins desejados, sendo que parte das demandas sequer implicariam em direitos garantidos pelo tratado. O Estado também solicitou que a referida ação não fosse analisada pela Corte, por não constar no relatório de admissibilidade da CIDH.

Logo no começo de sua explanação, a Corte faz uma observação central: “as anistias aprovadas no ocaso de algumas das ditaduras sul-americanas da época – como foi o caso brasileiro, no qual a Lei de Anistia antecede o advento da democracia – pretenderam legitimar-se sob a ilusória existência de um conflito armado, cujos supostos vencedores, magnanimamente, encerravam o alegado conflito declarando típicos os crimes cometidos por todos os intervenientes”, diz. E prossegue: “não obstante, infere-se do contexto do presente caso a total ausência de atos bélicos, apresentando-se, no máximo, crimes de motivação política, que deviam ser julgados e punidos conforme o direito, mas que, na realidade, foram reprimidos por meios criminosos e serviram de pretexto para a perseguição de políticos, militantes, sindicalistas, jornalistas, artistas e qualquer pessoa que o regime ditatorial considerasse dissidente ou perigosa para seu poder”.

Na sentença, a Corte enquadrou os crimes contra a humanidade como delitos reconhecidos pelo Direito Internacional, sendo a característica fundamental desses a “ameaça à paz e à segurança da humanidade”, por chocar a consciência. De acordo com o Tribunal, são crimes planejados e que “fazem parte de uma estratégia ou política manifesta contra uma população ou grupo de pessoas”. Além disso, os que cometem são tipicamente agentes estatais que participam de atos repudiáveis contra civis, de maneira sistemática ou generalizada.

Para reforçar esse entendimento, a Corte enumerou exemplos da jurisprudência internacional, citando o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, a Comissão de Direito Internacional, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, o Tribunal Especial para Serra Leoa, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Também citou os tribunais nacionais da Argentina, Colômbia, Peru, Chile e Guatemala.

De acordo com a sentença, a proibição dos crimes contra a humanidade é uma norma imperativa do direito internacional (jus cogens), “o que significa que essa proibição é aceita e reconhecida pela comunidade internacional de Estados em seu conjunto como norma que não admite acordo em contrário e que só pode ser modificada por uma norma ulterior de direito internacional geral que tenha o mesmo caráter”. Para a Corte, a primeira obrigação dos Estados é evitar a ocorrência dessas condutas e, caso elas ocorram, é dever “assegurar que essas condutas sejam processadas penalmente e seus autores punidos, de modo a não deixá-las na impunidade”.

O Tribunal ressaltou que “mesmo quando determinadas condutas consideradas crimes contra a humanidade não estejam tipificadas formalmente no ordenamento jurídico interno, ou que, inclusive, sejam legais na legislação doméstica, isso não exime de responsabilidade a pessoa que cometeu o ato, de acordo com as leis internacionais”. Em síntese, a “inexistência de normas de direito interno que estabeleçam e punam os crimes internacionais não exime, em nenhum caso, seus autores de responsabilidade internacional e o Estado de punir esses crimes”.

Para a Corte, em casos de crimes contra a humanidade os Estados não podem invocar a prescrição, o princípio ne bis in idem, as leis de anistia, tampouco “qualquer disposição análoga ou excludente similar de responsabilidade, para se escusar de seu dever de investigar e punir os responsáveis”.

Na decisão, o Tribunal rememorou caso anteriormente julgado, em que concluiu que, “em 1973, ano da morte do senhor Almonacid Arellano, o cometimento de crimes de lesa humanidade, incluindo o assassinato executado em um contexto de ataque generalizado ou sistemático contra setores da população civil, era violatório de uma norma imperativa do Direito Internacional”. A Corte também destacou que em pouquíssimos casos aplicou a figura de crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou delitos de direito internacional, “dada a excepcionalidade e a gravidade dessa qualificação”.

A decisão suscita a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e Contra a Humanidade, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 26 de novembro de 1968, que tem caráter declarativo, acolhendo “um princípio de direito internacional vigente anteriormente à sua aprovação”. A sentença aponta que, em seu preâmbulo, a Convenção da ONU infere que “a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade surge da falta de limitação temporal nos instrumentos que se referem a seu indiciamento, de tal forma que essa Convenção somente reafirmou princípios e normas de direito internacional preexistentes”. Assim, a Corte entende que os Estados devem aplicar seu conteúdo, ainda que não a tenham ratificado, e essa aplicação deve ocorrer inclusive aos crimes cometidos anteriormente à entrada em vigor da Convenção sobre Imprescritibilidade.

Passando para o caso concreto, o Tribunal ressaltou não haver controvérsia sobre a responsabilidade do Estado pela detenção arbitrária, tortura e assassinato de Vlado por agentes estatais. Restava, porém, controvérsia sobre a “possibilidade de indiciamento dos responsáveis e da aplicação da figura de crimes contra a humanidade em 1975, e figuras como a Lei de Anistia brasileira, a prescrição, o princípio de ne bis in idem e a coisa julgada”.

A sentença aponta que, de acordo com a jurisprudência da Corte e de outros tribunais, a tortura e morte de Herzog são considerados uma grave violação de direitos humanos. Além disso, com base na análise de fatos e contextos relacionados ao regime militar brasileiro, incluindo dezenas de métodos de tortura física e psicológica, citados nominalmente na decisão, o Tribunal estabeleceu que as violações também consistiam em crimes contra a humanidade.

Para os juízes, não restou dúvida de que a detenção, tortura e assassinato de Vladimir Herzog foram cometidos “como parte de um plano de ataque sistemático e generalizado contra a população civil considerada ‘opositora’ à ditadura, em especial, no que diz respeito ao presente caso, jornalistas e supostos membros do Partido Comunista Brasileiro”. A Corte também destacou que a tortura e morte de Vlado “não foi um acidente, mas a consequência de uma máquina de repressão extremamente organizada e estruturada para agir dessa forma e eliminar fisicamente qualquer oposição democrática ou partidária ao regime ditatorial”.

Além de caracterizar os fatos como crimes contra a humanidade, o Tribunal também apontou que, no momento da tortura e morte de Herzog, a proibição desses já tinha status de norma imperativa de direito internacional, o que impunha ao Estado a obrigação de investigar, julgar e punir os responsáveis.

Quanto ao inquérito policial militar aberto pelo II Exército logo após o assassinato de Vladimir Herzog, embora tenha ocorrido antes do reconhecimento da competência da Corte, a sentença faz questão de apontar que a jurisdição militar “não é o foro competente para investigar e, se for o caso, julgar e punir os autores de todas as violações de direitos humanos”, relembrando a jurisprudência do Tribunal sobre o tema. A decisão também aponta que, a partir das conclusões da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, recaía sobre o Estado “o dever de levar a cabo uma investigação pertinente, a fim de estabelecer as responsabilidades individuais cabíveis”.

Para avaliar a conduta estatal, a Corte analisou na sentença “cada um dos excludentes de responsabilidade alegados pelo Brasil para justificar a não investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato de Vladimir Herzog, de modo a estabelecer sua incompatibilidade em relação aos crimes contra a humanidade”.

Quanto à aplicação da prescrição, o Tribunal reforçou a improcedência em casos de graves violações de direitos humanos, inclusive “em casos de tortura, assassinatos cometidos num contexto de violações massivas e sistemáticas de direitos humanos e desaparecimentos forçados, de forma constante e reiterada”.

Para reforçar o caráter de imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, como os que foram cometidos contra Herzog, a Corte citou vasta jurisprudência internacional, como a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, o Estatuto de Roma, o Estabelecimento das Salas Especiais no Camboja e o Estatuto do Tribunal para Timor Leste.

O Tribunal apontou que esse entendimento foi consolidado pelos comitês responsáveis pela aplicação da Convenção contra a Tortura e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assim como pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Da mesma forma, altos tribunais de Peru, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, México, Paraguai e Uruguai também reafirmaram o princípio de imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e dos crimes de guerra ou genocídio. A Corte relembra que, em vários países das Américas, inclusive, foram incorporadas normas legais ou constitucionais sobre a imprescritibilidade para graves violações de direitos humanos.

Em síntese, a decisão afirma que “para o caso concreto, a aplicação da figura da prescrição como obstáculo para a ação penal seria contrária ao Direito Internacional e, em especial, à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”. A Corte também destacou que “existe suficiente evidência para afirmar que a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade era uma norma consuetudinária do direito internacional plenamente cristalizada no momento dos fatos, assim como na atualidade”.

Quanto ao princípio de ne bis in idem, segundo o qual uma pessoa não pode ser submetida a novo julgamento pelos mesmos fatos, a Corte apontou que a exceção a esse princípio, “assim como no caso da prescrição, decorre do carácter absoluto da proibição dos crimes contra a humanidade e da expectativa de justiça da comunidade internacional”.

Para o Tribunal, “quando se trata de graves e sistemáticas violações dos direitos humanos, a impunidade em que podem permanecer essas condutas em razão da falta de investigação gera um dano particularmente grave aos direitos das vítimas”. A intensidade desse dano, portanto, “não só autoriza, mas exige uma excepcional limitação à garantia de ne bis in idem, a fim de permitir a reabertura dessas investigações quando a decisão que se alega como coisa julgada surge como consequência do descumprimento manifesto e notório dos deveres de investigar e punir seriamente essas graves violações”.

Com base nisso, a Corte considerou que, no presente caso, “a alegada coisa julgada material, em virtude da aplicação da lei de anistia, é, definitivamente, inaplicável”. Para os juízes, a decisão do STJ que encerrou a investigação em 1993 “não foi uma sentença absolutória emitida de acordo com as garantias do devido processo”, já que foi tomada com base em uma norma – a Lei de Anistia – que foi considerada pela Corte como carente de efeitos jurídicos, e também não cumpriu as obrigações decorrentes de crimes contra a humanidade. Assim, “trata-se, portanto, de uma sentença que não surte efeitos jurídicos e que não reverte as considerações jurídicas constantes da presente sentença”.

Da mesma forma, a sentença da Corte também estabelece que a decisão da juíza federal em 2018 “tampouco é uma decisão de mérito, que tenha resultado de um processo judicial respeitoso das garantias judiciais, voltado para a determinação da verdade dos fatos e dos responsáveis pelas violações denunciadas”.

Sobre as leis de anistia, a Corte relembrou sua própria jurisprudência, inclusive no Caso da Guerrilha do Araguaia, apontando que “no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, do qual o Brasil faz parte por decisão soberana, são reiterados os pronunciamentos sobre a incompatibilidade das leis de anistia com as obrigações convencionais dos Estados, quanto se trata de graves violações de direitos humanos”.

Reforçando essa concepção, a Corte citou entendimento expresso pelo Secretário-Geral das Nações Unidas e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Também destacou pronunciamentos de organismos do direito penal internacional sobre a inadmissibilidade das anistias ou normas análogas em casos de graves violações, citando o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, o Tribunal Especial para Serra Leoa, os Acordos das Nações Unidas com a República do Líbano e com o Reino do Camboja e os estatutos que criaram o Tribunal Especial para o Líbano, o Tribunal Especial para Serra Leoa e as Salas Extraordinárias das Cortes do Camboja.

A decisão também ressalta pronunciamentos nesse sentido do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, assim como de diversas cortes superiores do continente americano, como as de Argentina, Chile, Peru, Uruguai, Honduras, El Salvador e Colômbia.

Reiterando seu próprio entendimento em decisões anteriores, a Corte apontou que “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.

Na decisão, o Tribunal destacou a incompatibilidade da aplicação desse tipo de anistia “com a letra e o espírito do Pacto de San José [a Convenção Americana]”, já que infringem diretamente as obrigações de respeitar os direitos e de adotar disposições de direito interno, previstas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana. Também apontou que as leis de anistia afetam os direitos às garantias e à proteção judiciais, consagrados nos artigos 8.1 e 25 da Convenção.

Em síntese, a Corte considerou que a Lei de Anistia brasileira “não pode produzir efeitos jurídicos e ser considerada validamente aplicada pelos tribunais internos” e que, quando da decisão tomada em 1992, em plena vigência da Convenção Americana no país, “os juízes que intervieram na ação de habeas corpus deveriam ter realizado um ‘controle de convencionalidade’ ex officio: entre as normas internas e a Convenção Americana”.

Na decisão, o Tribunal também estabeleceu que, em situações que envolvam crimes de direito internacional ou contra a humanidade, os Estados podem utilizar o princípio de jurisdição universal, considerando a gravidade desses delitos. A partir desse princípio, os países podem julgar graves crimes ainda que eles não tenham ocorrido dentro de seu território.

A sentença aponta que esse entendimento já foi estabelecido por tribunais de países como França, Itália, Espanha e Alemanha, que julgaram causas com base no princípio. Pronunciamentos nesse sentido também foram feitos em tribunais das Américas, em países como México, Argentina, Estados Unidos e Canadá, e o princípio é reconhecido por normas internas de Bolívia, Equador, El Salvador, Panamá, bem como pela Constituição da Argentina. A Corte também destaca que o próprio Brasil já se manifestou favoravelmente à jurisdição universal perante a Assembleia Geral das Nações Unidas.

Para o Tribunal, “ante a prática de crimes contra a humanidade, a comunidade de Estados está facultada a aplicar a jurisdição universal de modo que se torne efetiva a proibição absoluta desses delitos, estabelecida pelo direito internacional”. Como critérios para tal aplicação, a Corte estabeleceu que: o delito em questão deve ser um delito de internacional; o Estado onde se cometeu o crime não pode ter demonstrado “haver envidado esforços na esfera judicial para punir os responsáveis”, ou seu direito interno deve impedir o início desses esforços, a partir de excludentes de responsabilidade; o princípio não deve ser exercido de maneira arbitrária ou que “atenda a interesses alheios à justiça, sobretudo objetivos políticos”.

Na decisão, a Corte também destacou que “a legislação brasileira e sua interpretação por parte relevante do sistema judicial entendem a falta de tipificação expressa em lei como um obstáculo insuperável à investigação e punição dos atos que deram origem ao presente caso”.

O Tribunal rechaçou esse argumento de insegurança jurídica pela aplicação do direito internacional, sem uma norma correspondente interna convalidando essa figura, já que “todas as condutas adotadas contra Vladimir Herzog eram proibidas no ordenamento jurídico brasileiro”. No caso da tortura, a decisão aponta que ela já era prevista por tipos penais como lesões corporais, risco para a vida ou para a saúde de outro, deixar de prestar assistência, maus-tratos e homicídio qualificado, sendo inclusive considerada uma circunstância agravante de outros crimes.

Para a Corte, “é absolutamente irrazoável sugerir que os autores desses crimes não eram conscientes da ilegalidade de suas ações e que, eventualmente, estariam sujeitos à ação da justiça”. A decisão destaca que “ninguém pode alegar que desconhece a antijuridicidade de um homicídio qualificado ou agravado ou da tortura, aduzindo que desconhecia seu carácter de crime contra a humanidade, pois a consciência de ilicitude que basta para a censura da culpabilidade não exige esse conhecimento”.

O Tribunal reforçou que “nunca houve uma expectativa legítima de anistia ou prescrição que desse lugar a uma expectativa legítima de finalidade” no caso em questão, e que a “única expectativa efetivamente existente era o funcionamento do sistema de acobertamento e proteção dos verdugos das forças de segurança”. Para os juízes, essa expectativa “não pode ser considerada legítima” e “suficiente para ignorar uma norma peremptória de direito internacional''.

Assim, a Corte considerou que a alegada falta de tipificação dos crimes contra a humanidade no direito interno “não tem impacto na obrigação de investigar, julgar e punir seus autores”, já que “um crime contra a humanidade não é um tipo penal em si mesmo, mas uma qualificação de condutas criminosas que já eram estabelecidas em todos os ordenamentos jurídicos”.

Em síntese, o Tribunal concluiu que “não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado que encerraram a investigação em 2008 e 2009”. Da mesma forma, “a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia [em 2010], sem considerar as obrigações internacionais do Brasil, decorrentes do direito internacional”.

Com base nisso, a Corte concluiu que, “em razão da falta de investigação, bem como de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vladimir Herzog, cometidos num contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil, o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação aos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em detrimento de Zora, Clarice, André e Ivo Herzog”.

O Tribunal também concluiu que “o Brasil descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, constante do artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo tratado, e aos artigos 1, 6 e 8 da CIPST, em virtude da aplicação da Lei de Anistia No. 6683/79 e de outras excludentes de responsabilidade proibidas pelo direito internacional em casos de crimes contra a humanidade”.

Estado brasileiro sustentou por décadas a versão de que Herzog havia se suicidado, a despeito dos esforços de seus familiares na busca pela verdade - Foto: Acervo Instituto Vladimir Herzog

Artigos 8 e 25 (quanto ao direito de conhecer a verdade)

Em seus escritos, a Comissão Interamericana afirmou não ser necessária a análise em separado e a determinação de violação autônoma dos artigos 4, 5, 7 e 13 da Convenção por um suposto descumprimento do dever de garantir a verdade, já que esse encontra-se protegido pelos artigos 8.1 e 25. A CIDH também reforçou que o direito à verdade não pode ser restringido por instrumentos como anistias, prescrição ou coisa julgada.

Os representantes, por sua vez, apontaram violação pelo Estado do direito à verdade, na medida em que ocultou-se informação relevante sobre o caso e não estabeleceu-se os processos ou mecanismos necessários para esclarecer a verdade. Em seus escritos, propuseram que o direito à verdade seja “entendido como um direito autónomo e independente”, que apesar de não estar expressamente previsto na Convenção, se depreende do conjunto de proteções consagradas nos artigos 1.1, 5, 8, 13 e 25 da Convenção Americana.

Para os representantes, essa violação no presente caso ocorreu pela falsa versão da morte de Herzog, pela sistemática negação de acesso aos documentos militares e pela impunidade como obstáculo para conhecer a verdade. Apesar de reconhecerem a “importância histórica e informativa dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade”, apontaram que essa verdade histórica “não completa ou substitui a obrigação estatal de estabelecer a verdade por meio dos devidos processos judiciais”. Com base nisso, pediram que o Brasil fosse considerado responsável pela violação dos artigos supracitados.

Em sua defesa, o Estado alegou que a retificação do atestado de óbito somente em 2013 “não significa que o Estado brasileiro tenha reiterado a versão de suicídio até aquela data”. Apontou também que, na própria resposta do país à Comissão Interamericana sobre a admissão do presente caso, em 2012, reconheceu a responsabilidade pela morte e prisão arbitrária de Herzog.

Quanto à falta de acesso aos arquivos militares, o Brasil afirmou que tais fatos não foram apresentados pela Comissão e, portanto, não deveriam ser analisados pela Corte, consistindo em “acusações genéricas”. O Estado afirmou não ter havido irregularidade na destruição de documentos públicos entre 1964 e 1990, e alegou não ter havido esgotamento dos recursos internos por parte dos peticionários quanto ao acesso aos arquivos. Além disso, também afirmou que, quanto à impunidade como obstáculo para conhecer a verdade, esse direito já está incluído no direito de acesso à justiça.

Na decisão, a Corte foi ao encontro do argumentado pelos representantes no sentido de que o Brasil envidou “diversos esforços para atender ao direito à verdade das vítimas do presente caso e da sociedade em geral”, mas que a despeito disso, “a ‘verdade histórica’ que possa resultar desse tipo de esforço, de nenhuma forma, substitui ou dá por atendida a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, por meio dos processos judiciais penais”.

Para o Tribunal, os processos judiciais têm um papel especialmente significativo por transformar as vítimas de sujeitos passivos “a pessoas que reclamam direitos e participam dos processos ‘nos quais se definem o conteúdo, a aplicação e a força da lei’, ou seja, os processos judiciais trazem consigo um reconhecimento das vítimas como titulares de direitos”.

Rememorando sua jurisprudência estabelecida no Caso da Guerrilha do Araguaia, os juízes destacaram que, em casos de graves violações de direitos humanos, “a decisão de qualificar como secreta a informação, e de impedir que esta seja prestada, jamais pode depender exclusivamente de um órgão estatal a cujos membros se atribui a prática desse ilícito”. Além disso, a decisão também relembra que “toda recusa de prestar informação deve ser motivada e fundamentada, cabendo ao Estado o ônus da prova referente à impossibilidade de revelar a informação e que, diante da dúvida ou do vazio legal, deve primar o direito de acesso à informação”.

Passando ao caso concreto, a Corte apontou que, somente em 2007, o Estado divulgou a verdade extrajudicial dos fatos, a partir da publicação do relatório da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Até então, as instituições estatais, em especial o Exército, sustentavam a versão de suicídio, que já tinha tido a falsidade estabelecida judicialmente em 1978.

O Tribunal também destacou que, somente em 2013, os familiares de Herzog obtiveram retificação da causa mortis em seu atestado de óbito, o que “implica que foram necessários 15 anos desde o reconhecimento da competência contenciosa da Corte para que os familiares do senhor Herzog deixassem de suportar – ainda que formalmente – manifestações do poder público que negavam a verdade dos fatos e, pior ainda, forjavam uma falsidade”.

A decisão destaca observação da Comissão Nacional da Verdade brasileira, que “fez constar que um dos obstáculos à averiguação da verdade foi a recusa do exército em liberar o acesso a seus arquivos, alegando que haviam sido destruídos”. Também aponta que “o Estado não pode eximir-se de suas obrigações positivas de garantir o direito à verdade e o acesso aos arquivos públicos, alegando simplesmente que a informação foi destruída”, devendo envidar esforços substantivos e recursos necessários para “reconstruir a informação que supostamente foi destruída”.

Com base nisso, a Corte considerou que “o Brasil violou o direito das vítimas de conhecer a verdade, pois não esclareceu judicialmente os fatos violatórios do presente caso e não apurou as respectivas responsabilidades individuais em relação à tortura e ao assassinato de Vladimir Herzog, por meio da investigação e do julgamento desses fatos na jurisdição ordinária, em conformidade com os artigos 8 e 25 da Convenção”. Além disso, considerou que “esse direito também foi violado por vários anos dentro da competência da Corte, sem que a versão do suicídio do senhor Herzog fosse aceita oficialmente pelo Estado, somada à recusa do exército de prestar informação e de permitir o acesso aos arquivos militares da época dos fatos”.

Em relação às recusas estatais no âmbito da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal e uma possível violação do artigo 13 da Convenção, apontada pelos representantes, a Corte apontou que “se trata de uma ação que não podia ser interposta pelas vítimas, razão pela qual o Tribunal considera que não pode analisar a garantia do direito dos familiares de buscar e receber informação por meio desse processo judicial”.

Artigo 5.1, em relação com o artigo 1.1

A Comissão Interamericana e os representantes das vítimas coincidiram no sentido de que o Estado violou o direito à integridade psíquica e moral, previsto no artigo 5.1, em conexão com o artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo de Zora, Clarice, Ivo e André Herzog, respectivamente mãe, esposa e filhos de Vlado.

A CIDH apontou que a divulgação de informações falsas sobre as circunstâncias da morte de Vladimir Herzog gerou um impacto particularmente grave na integridade psíquica e moral de seus familiares. Os representantes destacaram que havia um clima de “terror e intimidação gerado pelo contexto sistemático de violações tolerado e impulsionado pelas autoridades do Estado”, acrescentando que Clarice foi ameaçada de morte em diversas ocasiões.

Também apontaram que Zora Herzog faleceu em 2006, “sem ter visto satisfeito seu direito a saber a verdade e obter justiça pela execução de seu filho”, e destacaram falas da viúva e dos filhos de Vladimir Herzog acerca do impacto da luta por memória, verdade e justiça em suas vidas.

O Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pela violação do artigo 5.1 da Convenção Americana, destacando que “a conduta estatal de prisão arbitrária, tortura e morte de Vladimir Herzog impõe aos familiares, inegavelmente, dor severa, a qual não se questiona”. A despeito disso, a defesa destacou diversos esforços estatais com o propósito de reparar os danos sofridos e afirmou que nem a suposta falta de proteção judicial, nem a suposta negação da verdade implicariam em violação do artigo 5.

Em sua decisão, a Corte destacou que, em casos que envolvem graves violações de direitos humanos, incluindo tortura e execução extrajudicial, a Comissão e os representantes “não necessitam provar a violação da integridade pessoal, já que opera uma presunção juris tantum". No presente caso, porém, o Tribunal ressaltou que “não tem competência temporal para decidir sobre a alegada violação à integridade pessoal dos familiares próximos de Vladimir Herzog, por motivo direto de sua tortura e assassinato”, que motivaria essa presunção juris tantum, sendo necessário “analisar a prova testemunhal e pericial apresentada no presente litígio para confirmar o dano alegado”.

Com base no acervo probatório, a Corte Interamericana considerou demonstrado que, “em consequência da falta de verdade, investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vladimir Herzog, os familiares diretos da vítima padeceram um profundo sofrimento e angústia, em detrimento de sua integridade psíquica e moral”. Assim, concluiu que “Estado violou o direito à integridade pessoal, previsto no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo de Zora Herzog, Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog”.

Pontos resolutivos da sentença

Corte decide, por unanimidade:

  1. Declarar improcedentes as exceções preliminares interpostas pelo Estado, relativas à inadmissibilidade do caso na Corte por incompetência ratione materiae quanto a supostas violações da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; à falta de esgotamento prévio de recursos internos; ao descumprimento do prazo para a apresentação da petição à Comissão; à incompetência ratione materiae para revisar decisões internas; à publicação do Relatório de Mérito pela Comissão; e à incompetência ratione materiae para analisar fatos diferentes daqueles submetidos pela Comissão.
  2. Declarar parcialmente procedentes as exceções preliminares interpostas pelo Estado, relativas à incompetência ratione temporis a respeito de fatos anteriores à adesão à Convenção Americana, fatos anteriores à data de reconhecimento da jurisdição da Corte por parte do Estado e fatos anteriores à entrada em vigor da CIPST para o Estado brasileiro.

Corte declara, por unanimidade:

  1. O Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação aos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em prejuízo de Zora, Clarice, André e Ivo Herzog, pela falta de investigação, bem como do julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vladimir Herzog, cometidos em um contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil, bem como pela aplicação da Lei de Anistia No. 6683/79 e de outras excludentes de responsabilidade proibidas pelo Direito Internacional em casos de crimes contra a humanidade.
  2. O Estado é responsável pela violação do direito de conhecer a verdade de Zora Herzog, Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog, em virtude de não haver esclarecido judicialmente os fatos violatórios do presente caso e não ter apurado as responsabilidades individuais respectivas, em relação à tortura e assassinato de Vladimir Herzog, por meio da investigação e do julgamento desses fatos na jurisdição ordinária, em conformidade com os artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento.
  3. O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, previsto no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo de Zora Herzog, Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog.

Corte dispõe, por unanimidade:

  1. Esta Sentença constitui, por si mesma, uma forma de reparação.
  2. O Estado deve reiniciar, com a devida diligência, a investigação e o processo penal cabíveis, pelos fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog, em atenção ao caráter de crime contra a humanidade desses fatos e às respectivas consequências jurídicas para o Direito Internacional. Em especial, o Estado deverá observar as normas e requisitos estabelecidos na sentença.
  3. O Estado deve adotar as medidas mais idôneas, conforme suas instituições, para que se reconheça, sem exceção, a imprescritibilidade das ações emergentes de crimes contra a humanidade e internacionais, em atenção à presente sentença e às normas internacionais na matéria, em conformidade com o disposto na presente sentença.
  4. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional pelos fatos do presente caso, em desagravo à memória de Vladimir Herzog e à falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis por sua tortura e morte. Esse ato deverá ser realizado de acordo com o disposto na sentença.
  5. O Estado deve providenciar as publicações estabelecidas na sentença.
  6. O Estado deve pagar os montantes fixados na presente sentença, a título de danos materiais e imateriais, e de reembolso de custas e gastos.
  7. O Estado deve reembolsar ao Fundo de Assistência Jurídica a Vítimas, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a quantia despendida durante a tramitação do presente caso.
  8. O Estado deve, no prazo de um ano contado a partir da notificação desta sentença, apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento.
  9. A Corte supervisionará o cumprimento integral desta sentença, no exercício de suas atribuições e no cumprimento de seus deveres, conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso, uma vez tenha o Estado cumprido cabalmente o que nela se dispõe.
Familiares e colegas de Vlado receberam atestado de óbito retificado em cerimônia na USP - Foto: Instituto Vladimir Herzog

Cumprimento da sentença

A Corte Interamericana ainda não publicou nenhum relatório de supervisão do cumprimento da sentença do caso Herzog.

Ponto resolutivo 7 (investigação)

No final de julho de 2018, alguns meses após a sentença, o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo anunciou que estava reabrindo as investigações sobre o assassinato de Vladimir Herzog, em cumprimento à determinação da Corte Interamericana. Em 17 de março de 2020, a procuradora da República em São Paulo Ana Leticia Absy apresentou denúncia contra seis pessoas pelo assassinato de Herzog.

O então chefe de comando da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército, José Barros Paes, e o comandante do DOI-Codi à época, Audir Santos Maciel, foram denunciados por homicídio qualificado. Juntamente com o ex-agente da unidade Altair Casadei, ambos também foram denunciados por fraude processual, por terem alterado a cena do crime.

Os médicos legistas Harry Shibata e Arildo de Toledo foram denunciados por falsidade ideológica, por terem emitido laudos necroscópicos fraudulentos. O promotor de Justiça Militar aposentado Durval Moura Araújo foi denunciado por prevaricação, por ter atuado para a sustentação da versão oficial de que Herzog teria cometido suicídio. Outros agentes da repressão, que não foram identificados durante as investigações, ou já faleceram, foram excluídos da acusação.

Destacando a sentença da Corte Interamericana e sua jurisprudência, a denúncia aponta que os crimes em questão não são passíveis de aplicação de prescrição ou de concessão de anistia, já que “foram comprovadamente cometidas no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência”.

A acusação do MPF também aponta que, de acordo com as normas do direito internacional, as condutas denunciadas “já constituíam, na data de início dos fatos, crimes de lesa-humanidade ou a eles conexos, motivo pelo qual não estão elas protegidos por regras domésticas de anistia e prescrição”.

Contrariando frontalmente a sentença da Corte Interamericana, a denúncia (nº 5001469-57.2020.4.03.6181) foi rejeitada pelo juiz federal Alessandro Diaferia, da 1ª Vara Criminal Federal de São Paulo, em 4 de maio de 2020. Para justificar a negativa, Diaferia afirmou que “em respeito à decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou válida e em vigor a Lei de Anistia, bem como levando-se em conta o lapso prescricional entre a prática dos delitos e o oferecimento da denúncia, é de rigor o reconhecimento da extinção da punibilidade dos acusados”.

Em relação à alegação do MPF de que houve caráter sistemático e generalizado nos ataques cometidos por agentes da ditadura militar contra a população brasileira, o magistrado afirmou que “tal argumento não se sustenta (...) para afastar a extinção da punibilidade dos fatos, ao se caracterizar o fato como crime de lesa-humanidade”. Para justificar seu entendimento, o juiz dá exemplos de ataques generalizados à população que, para ele, têm mais “propriedade”, como os genocídios em Ruanda e na Armênia.

Diaferia também descartou a alegação do MPF de que, de acordo com o direito internacional, os crimes apontados no caso Vladimir Herzog se caracterizam como de lesa-humanidade e são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. O magistrado destacou que a adesão do Brasil à Convenção Americana é posterior aos fatos da denúncia e à promulgação da Lei de Anistia e que, por isso, “não pode a louvável adesão à Convenção Americana retroagir a fim de invalidar uma decisão política soberana recepcionada pela ordem constitucional vigente”.

O juiz federal defendeu que o Brasil deve cumprir as decisões da Corte em todos os casos em que for parte, mas somente a partir do reconhecimento da competência do órgão interamericano, destacando que a morte de Herzog ocorreu 23 anos antes desse reconhecimento. Para Diaferia, sua decisão não se trata de “acobertar atos terríveis cometidos no passado, mas sim de pontuar que a pacificação social se dá, por vezes, a duras penas, nem que para isso haja o custo, elevado, da sensação de ‘impunidade’ àqueles que sofreram na própria carne os desmandos da opressão”.

O magistrado destacou que não há compatibilidade entre o decidido pela Corte Interamericana e a decisão do STF em relação à ADPF 153, que declarou a constitucionalidade da Lei de Anistia, sendo as decisões “frontalmente divergentes e que não se coadunam”. Diaferia apontou que somente o Supremo Tribunal Federal poderia, portanto, rever a própria decisão.

Dois dias depois, a procuradora Ana Leticia Absy recorreu da decisão de primeira instância, solicitando que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) reformasse a sentença e determinasse a continuidade da ação penal. No recurso, o MPF evoca a decisão da Corte Interamericana, apontando que “as condutas imputadas aos denunciados não estão sujeitas às regras de extinção da punibilidade previstas nos incisos II (anistia) e IV (prescrição) do art. 107 do Código Penal”. Também reitera o contexto de ataque sistemático e generalizado em que ocorreu a morte de Herzog – o que a caracteriza como crime de lesa-humanidade – e destaca a inaplicabilidade da Lei de Anistia no caso. O recurso ainda espera julgamento.

O Réu Brasil tentou contato com a procuradora Ana Leticia Absy, por intermédio da assessoria de imprensa do órgão, mas não obteve retorno.

Para o procurador regional Marlon Weichert, membro dos grupos de trabalhos “Memória e Verdade” e “Justiça de Transição" do MPF, a decisão é um descumprimento “explícito e direto” da sentença. “É um desrespeito objetivo da decisão da Corte, do ponto resolutivo da Corte. Isso é, por si só, uma nova violação à Convenção Americana”, apontou em entrevista ao Réu Brasil. Weichert conversou mais amplamente com a reportagem sobre o Caso da Guerrilha do Araguaia, em 2 de dezembro de 2020.

Em entrevista ao site, o filho de Vladimir Herzog, Ivo, também questionou e lamentou a decisão.

Ponto resolutivo 8 (imprescritibilidade de crimes contra a humanidade)

Uma série de projetos apresentados na Câmara prevê a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, como o PL 301/2007 e o PL 6830/2006, além do PL 4038/2008, de autoria do Poder Executivo. No Senado, tramita o PLS 236/2012 (“Novo Código Penal”), de autoria do senador José Sarney (MDB/AP), que estabelece a imprescritibilidade do crime de tortura. Nenhum dos projetos, porém, teve movimentação relevante nos últimos anos, tampouco há perspectiva de aprovação de qualquer um deles.

Ponto resolutivo 9 (ato público)

O ato público em reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado brasileiro não foi realizado até a publicação deste texto. A informação foi confirmada por Ivo Herzog, em entrevista ao Réu Brasil.

Questionado sobre as razões para a não realização do ato, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) ignorou a pergunta, a despeito de ter respondido a outros questionamentos.

Ponto resolutivo 10 (publicações)

O Estado ainda não publicou a íntegra da sentença no Diário Oficial, tampouco publicou o resumo em jornal de grande circulação, a despeito do prazo de seis meses já ter expirado há mais de um ano.

O resumo e a íntegra da sentença estão disponíveis no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), juntamente com outras sentenças anteriores da Corte, mas não é possível saber quando a publicação foi feita. O conteúdo, porém, não foi publicado no site do Exército brasileiro até a publicação deste texto.

O resumo e a íntegra da sentença foram publicados na página de Facebook do MDH pelo menos 37 vezes entre julho de 2018 e de 2019, mas não há nenhuma publicação no Twitter da pasta. Em relação ao Exército, não foi feita nenhuma postagem sobre a sentença da Corte Interamericana até a publicação deste texto.

O Réu Brasil questionou o MMFDH sobre as publicações ainda pendentes, mas a pasta restringiu-se a informar que efetivou as publicações no próprio site e em suas redes sociais, não respondendo ao questionamento.

Ponto resolutivo 11 (indenizações)

Até o momento em que este texto é publicado, o Estado brasileiro não efetivou o pagamento de US$ 20 mil à Clarice Herzog por danos emergentes, tampouco pagou a Clarice, André, Ivo e Zora Herzog os US$ 40 mil (para cada) determinados pela Corte a título de danos imateriais. A sentença do Tribunal não estabeleceu prazo para o pagamento do montante.

O não pagamento foi confirmado por Ivo Herzog, em entrevista ao Réu Brasil.

Questionado sobre as razões para o não pagamento da indenização, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) ignorou a pergunta, a despeito de ter respondido a outros questionamentos.

Em relação ao reembolso de custas e gastos, o Brasil efetuou o pagamento de US$ 25 mil ao Cejil em março de 2019. O valor correspondia, à época, a cerca de R$ 95,7 mil.

Ponto resolutivo 12 (Fundo de Assistência)

O reembolso de US$ 4.260,95 ao Fundo de Assistência Jurídica a Vítimas da Corte Interamericana de Direitos Humanos não foi efetuado pelo Brasil até a publicação deste texto.

Questionado sobre o reembolso do Fundo de Assistência, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) ignorou a pergunta, a despeito de ter respondido a outros questionamentos.


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Notas do autor

  • As informações apresentadas neste site sobre o Caso Herzog foram essencialmente extraídas da sentença da Corte Interamericana. Também há informações colhidas nos relatórios de admissibilidade e de mérito da CIDH, no escrito de submissão do caso à Corte, no escrito de solicitações, argumentos e provas dos representantes, na contestação do Brasil e nos processos judiciais ligados ao caso. Informações de contexto também foram colhidas nos textos e reportagens listados em “saiba mais”, bem como nos textos linkados.

  • As informações sobre o cumprimento da sentença foram colhidas nos processos judiciais ligados ao caso, nos textos e reportagens listadas em “saiba mais” e nos textos e sites linkados. Também foram colhidas informações junto à assessoria de comunicação do MMFDH (em nota de 10 de dezembro de 2020) e em entrevistas com o procurador da República Marlon Weichert e com o filho de Vladimir Herzog, Ivo Herzog.

  • No trecho em que são apresentados os pontos resolutivos determinados pela Corte, são omitidas referências a parágrafos da sentença e feitas adaptações para melhor entendimento.


Foto em destaque: Acervo Instituto Vladimir Herzog