Após a morte de Damião Ximenes Lopes, foi sua irmã quem tomou a frente na luta por justiça: primeiro, ela buscou a justiça e organizações brasileiras; depois, escreveu de próprio punho uma petição perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Nesta entrevista, feita em 1 de dezembro de 2020, Irene Ximenes Lopes relembra toda a trajetória do Caso Ximenes Lopes, fala do impacto da morte do irmão e da importância da sentença da Corte Interamericana.

Irene lutou por justiça após a morte do irmão - Foto: Valdir Almeida/G1

Na época, como você recebeu a notícia da morte do seu irmão?

Foi terrível. A gente não esperava uma morte. Até porque não é comum, não é natural ter morte, porque a doença mental não mata. Não existe óbito por doença mental. Se a pessoa morreu lá, houve uma negligência médica, houve maus tratos. Alguma coisa errada foi, morte natural não pode ter sido. E meu irmão fisicamente era saudável.

Quando a gente recebeu essa notícia... antes disso, a minha mãe já tinha feito uma visita para ele, e ela viu que ele tinha sofrido, tinha sido espancado, tinha sinais visíveis de censura. Ela me deu essa notícia, ela me falou. Aí quando foi de tarde e a gente recebeu a notícia de que ele morreu, eu supus que ele não tinha morrido de morte [natural], morreu do espancamento que ele sofreu.

E a partir daí que eu comecei a tomar providências. O pessoal ficou muito chocado. Eu também fiquei, mas eu tive ainda atitude de pedir para o corpo ser mandado para fazer uma biópsia, para gente ter um laudo diagnosticando a morte. Porque lá eles deram como se ele tivesse morrido de parada cardiorrespiratória. E ele não tinha nenhum problema de saúde para ter uma parada cardiorrespiratória. A batalha começou a partir daí.

Depois disso deram um laudo dizendo que tinha sido morte sem causa, mas citaram algumas coisas que ficou evidente que tinha tido tortura, como os punhos dilacerados, porque ele foi amarrado, a parte do olho dele que estava com hematoma. Tinha sinais visíveis de que realmente teve tortura. Aí com esses dados a gente entrou na justiça.

Foi você mesma que fez a petição inicial, certo?

Foi. Eu formulei a denúncia. A partir daí, começaram a me pedir documentos para verificar a procedência. Aí a Comissão Interamericana acatou, encaminhou para as sessões ordinárias, e depois a própria Comissão encaminhou para a Corte. Mas no início fui eu.

Por que você decidiu fazer essa denúncia?

Na época, eu estava procurando a justiça interna do nosso país. Estava fazendo denúncias, tanto na área de saúde, na área de direitos humanos, justiça. E todo mundo me desestimulava, falavam que 'não, aqui não funciona'... Aquela história de todo mundo falar mal da justiça brasileira, que nada funciona.

Esses casos de hospital, como o caso do meu irmão, eram casos que sempre ficavam no anonimato. Nunca ninguém teve sucesso em conseguir provar que a pessoa morreu de maus tratos, então era algo muito difícil. Eu vi como algo que era impossível de eu ter algum sucesso aqui. Por isso eu fui denunciar na OEA [Organização dos Estados Americanos].

Como você soube da possibilidade de recorrer à OEA?

Eu pesquisei na internet. Naquela época, a internet não era tão acessível como é agora. Mas pelo fato da gente ter um escritório de contabilidade, já tínhamos internet. E era num tempo ainda em que a internet era por telefone, tanto que eu fazia minhas pesquisas de madrugada, porque depois de 0h era mais barato. Um acesso era como se fosse uma ligação interurbana.

Então eu fazia essas pesquisas, procurando, até que eu encontrei a OEA. Aí eu vi que o Brasil integrava a OEA. Eu fiz [denúncias] para muitos outros órgãos, também, mas nem todos deram resposta.

E depois de fazer a petição você passou a contar com o auxílio da Justiça Global?

A Justiça Global entrou mais tarde. No início eu contei com a ajuda da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará. Na época, o deputado João Alfredo, ele me deu apoio. Também a coordenadora do CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] do Ceará, a doutora Lídia. Algumas pessoas relacionadas a direitos humanos, à luta antimanicomial, me deram esse apoio.

Aí depois, a Justiça Global foi entrar no caso, quando já estava na Comissão, e aí uma pessoa da Justiça Global tomou conhecimento [do caso] e me pediu para fazer uma peça para adicionar, e eu gostei da ideia. Depois eu vi que eles estavam bastante interessados, e aí pedi para me representarem juridicamente. Aí foi melhor, porque eu estava lá sozinha, trabalhando com a Comissão Interamericana. Quando a Justiça Global entrou, aí eu já passei para uma representação jurídica que facilitou mais, melhorou bastante.

Você mencionou a justiça brasileira. Como ela se comportou? Avançou em alguma coisa?

Não, não. Aqui não. Nem quando a Comissão Interamericana comunicava, pedia um posicionamento ao governo brasileiro, ele sempre tratou com o maior descaso, nunca levou a sério. Eu acho que aqui nas instâncias estaduais, no município de Sobral, ainda não tinha tomado repercussão o caso.

A Comissão encaminhou para a Corte exatamente por isso. Eles pediram várias vezes, eles aprovaram [relatório] e pediram um posicionamento do Estado brasileiro, e o Estado nunca dava. Aí quando eles viram que o Brasil realmente não se interessava, não dava resposta, foi por isso que o caso foi encaminhado para a Corte. Aí foi quando o Brasil começou a responder, teve audiência e tudo.

Na sentença da Corte diz que você perdeu o emprego, que sua mãe teve problemas de saúde. Qual foi o impacto na vida de vocês?

Sim. Muitos problemas. Eu tinha uma bebezinha na época, de seis meses, tive que viajar. Porque não foi fácil, né, para conseguir participar de tudo, de audiências, de reuniões de direitos humanos que me chamaram, e eu tinha que colaborar, que participar. Por conta da repercussão que tomou, por chegar onde chegou, eu tive que fazer várias viagens, e isso me sacrificou. Deixei minha filha sozinha pra viajar. Não foi fácil não, foi uma luta muito grande.

Também afetou a saúde de vocês?

Eu tive um desgaste emocional muito grande. Minha mãe... uma mãe perder um filho da forma que perdeu, a saúde já fica abalada. E no meu caso nem foi só por ter perdido [o irmão]. Eu me sacrifiquei muito nessas viagens, lutando, em situações estressantes. Não foi fácil de forma alguma. Mas se acontecesse de novo, teria que fazer tudo de novo. Não poderia deixar um crime dessa dimensão impune.

Quanto tempo demorou para o caso avançar?

Demorou. Ele faleceu em 4 de outubro de 1999 e a sentença só foi sair em 2007, quando houve a condenação. Foram sete anos de luta.

Qual a importância da sentença e o reconhecimento da violação que o seu irmão e a sua família sofreram?

Eu não me dou 100% por satisfeita. Com a sentença em si, eu fiquei satisfeita, mas não com o cumprimento. O Estado brasileiro não cumpriu toda a sentença. Ele cumpriu a parte que deveria publicar a sentença em veículo de comunicação. Pediram uma indenização, que eles passaram para nós. Mas a parte de reforma no sistema psiquiátrico, não houve. Houve, mas não na dimensão que deveria e que o país necessita.

Eu fiquei mais satisfeita com Sobral, porque a Casa de Repouso Guararapes, o hospital onde meu irmão morreu, foi fechada, o SUS descredenciou. E credenciou um outro hospital que tinha um sistema de saúde melhor, com vigilância. Na enfermaria tem câmera de vigilância, para o paciente ser bem acompanhado. Nesse ponto aí, eu fiquei satisfeita. Você vê que valeu a pena. Faz parte da minha luta. Mas a gente vê ainda, que muitos hospitais no Brasil todo, que os pacientes sofrem maus tratos. Não houve ainda uma mudança significativa no país.

Uma das determinações era a continuidade dos processo judiciais, mas o processo penal acabou sendo arquivado, certo?

A gente ganhou a causa aqui [no processo civil], mas demorou tanto... A sentença também pedia celeridade no processo. Mas demorou tanto, tanto, que quando a gente ganhou a causa aqui, a gente nunca recebeu a indenização [do processo civil interno], porque ele já tinha tirado tudo do nome, tinha vendido tudo. A gente ganhou a causa, mas não tinha nada para receber.
[Em relação ao processo penal,] eles pegaram uma detenção em regime semiaberto, eu não fui verificar se estava sendo cumprido, eu já estava esgotada. [Em 2012, a decisão foi revertida pelo Tribunal de Justiça do Ceará determinou a extinção da punibilidade.]

A sua avaliação é de que a sentença foi boa, mas não foi feita justiça?

Sim. A sentença foi boa sim, mas nessa parte clínica, da saúde mental não foi cumprida. Nem a parte que pedia celeridade nos processos, essa parte não foi cumprida. A sentença foi boa, mas como você sabe, a justiça do nosso país não funciona como deve funcionar. Infelizmente é a nossa realidade.

De uma forma geral, você considera que valeu a pena ter buscado o Sistema Interamericano?

Claro, claro que valeu. Valeu a pena. Pelo menos no tocante ao Estado, ele não ficou impune. Ele foi penalizado, houve uma condenação. O que a gente não teve sucesso foi na justiça interna, nos processos de Sobral, a cidade em que aconteceu o óbito do meu irmão. Na justiça brasileira, não tivemos sucesso, mas lá fora houve. Pelo menos essa parte.

Como eu lhe disse, o hospital fechou, teve pontos bastante favoráveis e que a gente ficou satisfeito. Não foi uma vitória esplêndida, mas valeu a pena ter lutado. E só de ter saído do anonimato… Porque ninguém sabia o que havia lá dentro. Só do hospital ter fechado, foi uma vitória bastante grande, porque quantas pessoas não haviam morrido lá? Pessoas torturadas, abusos sexuais, tudo isso havia lá dentro. Aí fechou, acabou.

Você continuou militando nessa pauta e na luta antimanicomial?

Sim, eu fiquei algum tempo ainda, eu abri um instituto, Instituto Damião Ximenes. Mas eu não levei por muito tempo porque eu não consegui... Eu tinha que ter parcerias, por minha conta eu não tinha como manter. Até onde minhas forças deram, eu mantive o instituto. A gente realizou projetos. Mas chegou um momento que não deu para eu manter sozinha, tinha que ter alguma parceria com outro órgão ou governo, e aí o instituto fechou.

O instituto foi aberto em 2009, durou por três anos, não deu mais para eu suportar as despesas. A gente chegou a desenvolver um projeto com adolescentes, tivemos algumas atividades. Mas sem parcerias não tem como uma ONG se sustentar.

Era um projeto relacionado à saúde mental?

Também. Dava apoio não só a pessoas com deficiência mental, mas a pessoas socialmente vulneráveis. Inclusive um projeto que a gente trabalhou era com menores infratores, socialmente discriminados, que o Ministério Público já tinha tentado de tudo. Recebemos eles, demos cursos para eles saírem das ruas e terem uma ocupação, estávamos trabalhando nesse sentido.

Já na parte de assistência psicológica, ficava mais caro, porque tem que pagar psicólogo, psiquiatra, a gente não tinha como ainda, mas tinha essa pretensão. Só que não deu certo o projeto.

Em resumo, a sua percepção é de que em Sobral as coisas melhoraram, mas que no Brasil como um todo ainda persiste? Casos como o do seu irmão ainda acontecem no Brasil?

Acontecem sim. Já aconteceu, eu tive notícia. Melhorou em Sobral, que foi lá que aconteceu o crime, mas nos outros estados, no Brasil todo, aconteceu depois, ainda acontece. Os pacientes são maltratados. Ainda não tem um tratamento bom [no Brasil]. Sobral ganhou até um prêmio pela saúde, mas porque lá foi onde aconteceu o caso. Mas em outros hospitais, em outros estados, não. [A sentença da Corte] era exatamente para o Estado garantir que isso não se repetisse, mas infelizmente acontece.