Ivo Herzog tinha apenas nove anos quando seu pai foi torturado e assassinado por agentes do regime militar brasileiro, no DOI/CODI paulista, em 25 de outubro de 1975. Filho mais velho de Vlado, Ivo é presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog, uma das principais entidades de defesa da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão no país. Nesta entrevista, concedida em 8 de dezembro de 2020, Ivo fala do desenrolar do Caso Herzog dentro e fora do país e aborda o cenário para os direitos humanos no Brasil nos dias de hoje.

De acordo com Ivo Herzog, Estado ainda não cumpriu praticamente nenhuma determinação da Corte IDH - Foto: Instituto Vladimir Herzog

De que forma você avalia o comportamento do Estado e da justiça brasileira até a sentença da Corte? Por que vocês buscaram a justiça internacional?

O Estado brasileiro sempre se negou a investigar o caso do meu pai, levar para a justiça. Importante notar que, na primeira sentença do caso Herzog, de 1978, do juiz Marcio de Moraes, ao final da sentença, ele ordena que seja investigado o crime. Transitou em julgado, aquela coisa toda, e essa ordem judicial nunca foi cumprida. A gente está falando de uma ordem anterior até à própria Lei da Anistia.

Depois disso, houve várias tentativas e o Estado sempre usou a Lei da Anistia como desculpa para não investigar e, depois, decurso de prazo. Então a gente teve que ir para a Corte Interamericana.

Desde que saiu a sentença, o Estado brasileiro vem se negando também a cumprir.

Durante o caso perante a Corte Interamericana, de que forma o Estado brasileiro, a AGU [Advocacia Geral da União] atuou?

Foi muito ruim. Eles tentaram demonstrar sobre a Lei da Anistia, e tentaram argumentar que existiam políticas públicas de reparação, inclusive em relação à própria família. Tem, inclusive, o depoimento da minha mãe lá na Corte, e a gente vê que foi uma postura muito cruel do Estado.

Foi muito ruim, foi um processo muito desgastante. Porque o que a família sempre pediu foi a busca da justiça, que fosse investigado o crime e que as pessoas envolvidas nesse crime fossem trazidas à justiça. Não interessa qualquer outra coisa que tenha sido feita. Nada foi feito nesse sentido pelo Estado, do ponto de vista de investigação.

O que representou e qual a importância da sentença e desse reconhecimento, pelo menos internacional?

Tem uma importância muito grande porque o Estado foi condenado por crime de lesa-humanidade. Esse tipo de crime, conforme [o entendimento do] direito internacional são crimes imprescritíveis e inanistiáveis. São crimes comparados a grandes guerras, extermínios, genocídios.

A denúncia que foi apresentada pelo MPF depois da sentença da Corte também foi rejeitada pela justiça brasileira. De que forma você recebeu essa decisão? Você enxerga alguma perspectiva de mudança no entendimento que vem sendo usado para barrar o processo?

Uma coisa que a gente sempre fez foi observar a formação do Supremo Tribunal Federal, quem são esses juízes. Se a gente tem uma corte mais progressista ou mais conservadora. Porque, um dos pontos que tem que acontecer, é voltar para o debate do STF a interpretação da Lei da Anistia brasileira. A gente não acha que tem que mudar essa lei, tem que rever a interpretação do STF. A interpretação está bloqueando que se investigue os agentes do Estado. É uma interpretação muito distorcida.

No momento atual, a gente vê um cenário muito desfavorável para que isso aconteça. Pelo governo que nós temos, e até mesmo pela própria formação dessa corte. Agora, o que eu vejo muito é que, da maneira que tem se feito, entre aspas, "justiça" no Brasil, a gente vê que as coisas não estão funcionando. Tem uma série de questões mal resolvidas. Então, ou o Estado começa a pensar de uma maneira um pouco diferente, começa a mudar um pouco a forma de agir, reconhecendo os erros do passado, ou fica difícil a gente imaginar uma evolução como sociedade.

Uma das coisas que a Corte estabelece nas suas sentenças, e lendo algumas entrevistas suas, você já mencionou, é em relação às medidas de não repetição. Você acredita que as medidas de não repetição, tomadas pelo Brasil, antes e depois desse processo, são de algumas formas suficientes? Evitam que casos de alguma forma semelhantes ao do seu pai se repitam?

Bom, não tem sido, porque tem acontecido. Você tem o Amarildo, você tem a Marielle, que agora está completando 1000 dias do assassinato. A gente continua tendo crimes cometidos por agentes do Estado, talvez num formato um pouco diferente. Mas ainda existe toda uma blindagem desses agentes, para que eles não sejam levados à justiça. Para que seus crimes não sejam investigados. A gente tem a polícia matando milhares de pessoas todos os anos no Brasil e poucos policiais são levados a julgamento.

O resultado disso tudo é a construção de uma cultura de violência, que se manifesta de diferentes maneiras. Esse crime, que as pessoas estão colocando como um crime racista, que aconteceu no Carrefour, além de ser racista, é um crime que só acontece numa sociedade que tem uma cultura de violência. Como você pode imaginar dois seguranças espancando uma pessoa, e as pessoas simplesmente olhando, com muita pouca indignação?

A pergunta que a gente tem que se fazer é o que precisa mudar para que a gente comece a mudar essa cultura de violência e comece a viver em um mundo mais pacífico. Onde a gente não tenha que ter medo de morrer na mão daquelas pessoas que deveriam nos proteger.

Como você avalia o processo de Memória, Verdade e Justiça no Brasil? Ele foi, de alguma forma, suficiente?

Eu acho que foi um processo muito tímido. O Brasil, diferente de outros países da América Latina, não teve um momento de ruptura com o regime que existia antes. Houve a famosa transição lenta e gradual, onde muitos acordos foram feitos. Em função disso, nunca se passou a limpo a verdadeira história daquele período.

E vários governos democraticamente eleitos não quiseram mexer nesse passado. Ficaram com essa história de que tem que se virar a página da história. Eu acho também que tem que virar, mas primeiro a gente precisa escrever essa página. Precisa ter expressa a história, e aí vamos virar a página e andar para frente. Mas a gente tem que saber o que aconteceu no passado para que esses mesmos erros não se repitam, como vem se repetindo sistematicamente.

A gente tem poucos monumentos de memória no Brasil, museus, monumentos que relembrem as pessoas que morreram naquela época, sobre os crimes que aconteceram, são muito raros. E mesmo os livros de história tratam de maneira muito superficial esse período da nossa história. Não só esse período, como outros períodos trágicos.

Se você pegar todo o processo da escravidão no Brasil, até a libertação dos escravos, a gente conhece muito pouco. Conhece a tal da princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea e acabou a escravidão. E não é isso. São duzentos anos de lutas sociais, que a gente não conhece. Se a gente não conhece essa história, fica também muito difícil da gente entender políticas de reparação com relação à população negra, ou à população indígena. Ficam parecendo coisas desconexas.

Na realidade, existe uma conexão com essa história, mas dentro da sua pergunta, essa história não tem sido bem preservada, não tem sido bem contada.

Na sentença, além da investigação, a Corte também fala de outras medidas de reparação, como o ato público, a publicação da sentença e o pagamento de indenização. Alguma dessas medidas já foi cumprida pelo Estado?

Não. Nada da atual sentença foi cumprida.

Alguma negociação ou perspectiva de cumprimento?

Não. O Estado permanece calado. A gente está reportando [para a Corte], mas está nessa situação.

Uma última questão: como você enxerga o cenário para os direitos humanos no Brasil hoje, e quais as perspectivas para os próximos anos?

A única coisa boa que tem no cenário atual de direitos humanos hoje, é que as perspectivas para o futuro são muito boas. A situação está tão ruim que é difícil piorar, a tendência é realmente melhorar. Mas a situação atual é muito ruim. A gente vê, agora mesmo, a pauta do dia é a questão da vacina, fica essa briga política enquanto as pessoas estão morrendo.

A perspectiva, para mim... É que o mundo nos surpreende às vezes, né, mas acho que está difícil surpreender. Acho que a tendência é realmente, não a curto prazo, mas nas próximas eleições, a gente criar um cenário... Eu tenho a esperança de que, assim como nos Estados Unidos está havendo uma mudança de agenda, a gente também consiga trazer isso para o Brasil nas eleições daqui dois anos.