Ex-trabalhadora da fábrica de fogos que explodiu em Santo Antônio de Jesus (BA), Rosângela Santos Rocha, a Rosa, não estava na fábrica do ‘Vardo dos Fogos’ em 11 de dezembro de 1998 por um acaso do destino. A despeito de ter escapado da tragédia, que ela chama de “chacina”, Rosa perdeu três irmãs na explosão: Fabiana, Adriana e Mônica. Há anos, é uma das lideranças do Movimento 11 de Dezembro, grupo criado com o objetivo de lutar por justiça. Nesta entrevista, concedida em 1 de dezembro de 2020, poucos dias antes do aniversário da explosão, ela traz seu relato pessoal sobre a tragédia, aborda as condições de trabalho e o desenrolar do Caso Empregados da Fábrica de Fogos, dentro e fora do Brasil.

Movimento 11 de Dezembro persiste na luta por justiça há 22 anos - Foto: Tino Alves

Você chegou a trabalhar na fábrica?

Eu trabalhava lá, também. Mas eu tinha aula, e quando aconteceu [a explosão], eu estava no terceiro semestre do curso de magistério. Por questão de nota, eu fui selecionada para ensinar na alfabetização de jovens e adultos (EJA) à noite. Pelo fato da confraternização ser em dezembro, no dia 11 eu e minhas amigas que trabalhavam na escola, fomos contar os materiais para fazer a festa à noite, para os alunos. Por isso eu não fui naquele dia.

Hoje em dia, você trabalha como professora?

Eu sou assistente social, pedagoga e especialista em coordenação pedagógica. Sou concursada no município.

Como eram as condições de trabalho na fábrica?

Eram as mais precárias possíveis. O local onde nós trabalhávamos tinha várias tendas, umas bem próximas das outras, e muitas pessoas trabalhando. Era coberto por uma lona preta. Quando o sol estava muito quente, a gente tinha que jogar água naquela lona, para não ter incêndio. Aí tinha umas mesas, e na mesma mesa trabalhavam várias pessoas.

Nós não tínhamos horário de almoço. Quando o almoço chegava, as pessoas comiam ali mesmo, e ali mesmo continuavam o trabalho. Não tinha aquele descanso que todo trabalhador tem. Não existia a questão do direito trabalhista, nunca assinamos carteira. As pessoas que mais davam trabalho [que mais produziam] eram as que permaneciam, aquelas que não davam, iam sendo trocadas.

Ou seja, a família, dona dessa fábrica de fogos e de muitas outras que ainda existem aqui, visa apenas o lucro. Eles enriqueceram às custas dessas pessoas. Era boi solto no espaço onde o povo trabalhava. Eram galpões que tinham, com muita pólvora branca, muito material explosivo acumulado. A situação de trabalho era totalmente precária, mesmo. Não tinha banheiro, as pessoas tinham que fazer suas necessidades atrás da lona ou de algum galpão. Essa era a vida que essas pessoas levavam.

Você falou que a família Prazeres Bastos tinha outras fábricas de fogos. Eles continuam tendo hoje em dia?

Tem sim. Continua trabalhando com fogos. Só que de maneira muito oculta, escondida. Às vezes, eles dão para as pessoas produzirem dentro das suas próprias casas. Lá na Costa Rica, na audiência pública, no meu testemunho contra o Estado brasileiro, eu deixei bem claro isso. Eles continuam fornecendo esse material para que as pessoas trabalhem dentro de casa, de forma muito sigilosa, porque se descobrirem, eles tomam o material. Às vezes explode, tem idoso, tem criança, precisa ir para o hospital, com queimaduras.

Nós falamos lá na Costa Rica, cadê o Ministério Público, o Exército? Precisam ter um papel mais atuante nessas questões. Eu não sei agora, com essa sentença da Corte, [como vai ser], porque ela ordena o Brasil a fiscalizar melhor as fábricas de fogos, que as pessoas venham a ter a vestimenta correta, venham a ter um trabalho digno, com salário, direitos trabalhistas e boas condições de trabalho. Tudo isso está na sentença.

Uma coisa que a sentença fala é que a cidade de Santo Antônio era bastante pobre. Como é a situação na região?

Hoje, até que mais não. Mas, anos atrás, existia e ainda existem comunidades carentes. E as pessoas que faleceram, moravam nessas comunidades. A comunidade do bairro Irmã Dulce e do bairro São Paulo. São comunidades que são discriminadas pelo comércio. Comunidades onde moram muitas pessoas negras, que não conseguem completar o estudo, porque tem que trabalhar para ajudar a família, engravida cedo. Tem todas essas questões.

Hoje, depois da explosão, aquelas crianças que ficaram órfãs cresceram, já tem [pelo menos] 22 anos. Elas vêm buscando o mercado de trabalho, e muitas delas, hoje, graças a Deus, já têm seu emprego. Hoje, a cara das comunidades já mudou. Ninguém que morreu, nenhum dos familiares dos que faleceram têm coragem de voltar a trabalhar [com fogos] mais, porque foi uma verdadeira chacina. Um assassinato mesmo, de 64 pessoas, e mais os sobreviventes.

Naquela época, as pessoas não acharam apoio do município, nem do estado e nem do governo federal. Ficaram com feridas abertas no corpo, precisaram fazer enxertos, cirurgias, com marcas no corpo, sem poder sair no sol. E nós batalhamos muito pela questão de cirurgias, buscando a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, buscando a Sesab [Secretaria da Saúde do Estado da Bahia], o governador, o prefeito, mas nunca obtivemos êxito.

De que forma o Estado e a justiça brasileira se comportaram nos anos após a explosão? Por que vocês resolveram buscar a justiça internacional?

Após a explosão, os familiares se reuniram e formaram o Movimento 11 de Dezembro. A partir daí, nós começamos a luta por justiça, com muitos parceiros, como a Rede Social de Justiça, nossa advogada, a Justiça Global, que é quem acompanhou esse processo, do primeiro até hoje, lutando para que essa audiência acontecesse. E vários outros parceiros, muitos deputados [ligados aos] direitos humanos, parceiros aqui da cidade, do Rio de Janeiro, de São Paulo. O Movimento é conhecido de forma nacional e internacional, pela gravidade da situação.

A nossa primeira decepção foi com os processos trabalhistas. Era causa ganha e teve uma juíza que entrou, o nome dela é Esmeralda [Simões Martinez], hoje ela está aposentada. E ela pegou aqueles processos que eram causa ganha e começou a riscar e arquivar todos esses processos. Ali começou a luta, por esse processo.

No processo cível, o processo da família Bastos, que o Ministério Público determinou que eles pagassem indenização por danos morais aos familiares. Só que tudo isso demorou muito para começar a ter êxito, foram muitas caminhadas, muitas audiências. O centro administrativo, a gente já conhece de lado a lado. A gente quando não ia para [motivos de] saúde, a gente ia para o Ministério Público Federal, ia para a Procuradoria. Ou seja, é um movimento de muita luta e resistência.

Como foi o desenrolar do processo no âmbito da Comissão Interamericana?

Em 2006, esse caso parou em Washington [na Comissão Interamericana], através de uma denúncia da própria Justiça Global, junto com os deputados Yulo [Oiticica] e Nelson Pelegrino, e foram chamadas pessoas do Movimento, que na época minha mãe era presidente. Lá, o Brasil entrou em um acordo, que quando chegasse aqui no Brasil, eles iriam cumprir tudo que foi acordado lá nos Estados Unidos, nessa reunião. Amparar as vítimas na questão da reparação, de julgar, condenar e prender os responsáveis, de ver novas possibilidades que não fosse fábrica de fogos para trabalhar.

Nós nos cansamos muito, porque ao voltar para o Brasil, criou-se um grupo de trabalho. Eu participava desse grupo de trabalho em Salvador, com mais três pessoas do movimento e representantes da prefeitura aqui e do Estado. O que nós percebíamos é que a cada 15 dias, eles mandavam um representante diferente e nunca conseguia se firmar a questão de uma política pública voltada para tudo isso que houve nesse acordo lá [na Comissão Interamericana]. Até que, em 2010, nós decidimos que não aceitaríamos mais esse acordo, até porque não estava sendo cumprido. Nem pelo município, nem pelo estado [da Bahia] e nem pela União. Foi um verdadeiro descaso com os familiares.

O júri [do processo penal] ia acontecer aqui em Santo Antônio, já tinha data e tudo. Só que por conta da influência que essa família tem aqui, a própria justiça determinou que fosse transferido. [Foi determinado] que viesse acontecer em Salvador, no Fórum Ruy Barbosa. Porque lá, a cidade de Salvador conhece a causa, mas não conhecia a família Bastos. Aqui dentro, em Santo Antônio, eles eram [conhecidos], então era um júri muito arriscado a ser favorável a eles.

Esse júri aconteceu em Salvador, em outubro de 2010, e eles foram julgados e condenados a regime fechado. Só que teve aquele processo, de advogado recorrer. O advogado deles recorria, o nosso também, e ficava naquele trâmite. Quando completou 20 anos [em 2018], a ministra Rosa Weber [do STF], junto com a Procuradoria-Geral do Estado, decidiram que não tinha mais o que ocorrer e que eles tinham que cumprir essa decisão judicial. Mas os advogados deles foram lá para Brasília, disseram que eles não estavam presentes no momento da decisão [por conta disso, a sentença em segunda instância foi anulada].

E no âmbito da Corte Interamericana?

Em 2019, a Corte [Interamericana] marcou uma audiência muito esperada por todos nós. Eu fui uma das que foram, além da presidente e de uma sobrevivente, com os advogados da Justiça Global que nos acompanham. O Brasil, como disse o embaixador na Costa Rica, estava de forma robusta ali representado. Com advogados da União, com o Exército brasileiro, com representante da Casa Civil.

E assim, muita conversa, de forma muito teórica. Foi uma audiência muito tensa. Nós já participamos de muitas aqui no Brasil, mas a de lá era muito tensa. Nós tivemos que chegar cinco dias antes, para que os advogados participassem de algumas reuniões e passassem algumas orientações pra gente, ainda mais para nós que fomos testemunhas.

Aconteceu essa audiência e ali, apesar de não falarem, nós percebíamos no olhar dos sete juízes a indignação, uma revolta. As perguntas que eles faziam para o Estado, e o Estado não tinha como responder. Eles conheciam muito a teoria, mas a prática, quem conhecia éramos nós. E tudo que foi perguntado por aqueles juízes, nós respondemos, de cabeça erguida e fomos olhados de igual para igual.

Quando eles [o Estado] vinham com alguma questão técnica ou teórica, iam para cima também, faziam perguntas. Chegava um momento em que eles se atrapalhavam, cada hora ia um [responder]. Essa audiência finalizou e ficou faltando a parte escrita, tanto do Brasil, quanto do Movimento 11 de dezembro.

Em outubro, agora, dia 26, nós recebemos essa notícia de uma vitória histórica, de condenação do Brasil, e que a Corte reconheceu que houve sim a questão de responsabilidade do Estado perante a situação. A demora nos processos… Enfim, todos os pontos que a Justiça Global trouxe no processo, conversou com a gente antes, a Corte deu como causa ganha. As indenizações por danos morais, por danos imateriais, por ter criança de 11, 12, 13 anos, trabalhando naquele local. Foi outro tipo de pagamento e indenização também, que a Corte traz. E traz também, a questão da continuidade do processo penal para julgar e, se for o caso punir, os responsáveis pela explosão.

Quando nós estávamos na Costa Rica, nós ficamos sabendo que o processo prescreveu, [em relação ao] seu Osvaldo Prazeres, por conta da idade, e que o advogado fez um documento lá, dizendo que eles [os réus] não poderiam ser presos, porque ele não estava [presente] nessa decisão da ministra Rosa Weber. Acabou que essas pessoas continuam impunes, e agora a Corte pede que se dê continuidade ao processo penal e também das ações cíveis, indenização por danos morais e materiais, e os processos trabalhistas. Os dois em tramitação, ainda. Com um prazo razoável para que se possa resolver.

[A Corte também determinou] o oferecimento de tratamento médico, psicológico e psiquiátrico às vítimas, depois desses 22 anos, sendo que muitas vítimas já morreram, muitas famílias estão com o psicológico abalado, tem depressão, porque foi algo muito terrível. E o Estado nunca olhou, o município, o governo federal nunca [fez nada] para que as famílias fossem acolhidas. Não estavam nem preocupados com isso.

A questão das pessoas que ficaram com sequelas. Tem Vitória que nasceu de cinco meses. Com 22 anos, ela sofre de transtorno mental, precisa de psicólogo e psiquiatra. E agora que nós vamos ver, com os familiares que restam, que tipo de atendimento ainda será viável para eles. Esse atendimento tem que estar voltado para a questão da explosão.

Você falou das sequelas psicológicas. Como você recebeu a notícia na época e de que forma isso afetou a sua vida nos anos seguintes?

Como eu disse, foi uma chacina. As pessoas foram carregadas de moto, retiradas debaixo das chamas de fogos. A pele do corpo ia caindo, as pessoas queimaram a sobrancelha, o cabelo. Uma irmã minha mesmo, o corpo ficou no lugar, a cabeça queimou, e foi muito difícil para gente reconhecer. E mais difícil ainda, é que essas pessoas tiveram que passar pelo hospital [de Santo Antônio], que na época era a emergência, botaram soro, e era tudo muito grave. Tiveram pessoas que foram em ambulância, outras que foram em caminhões abertos, em [Ford] Pampas, em Kombis.

Ou seja, as cidades vizinhas se comoveram com a situação, e os familiares em estado de choque, chorando muito, passando mal. Teve que abrir nas comunidades, criar tipo um toldo, para os médicos e enfermeiros atenderem esses familiares, porque o hospital não estava dando conta. Nós não sabíamos para onde nossos familiares estavam indo. Alguns foram para Feira de Santana, outros para Salvador, no hospital Roberto Santos, outros ficaram no HGE [Hospital Geral do Estado, em Salvador], houve essa divisão.

E o que mais nos entristeceu, é que ia morrendo alguns por dia. Eram de cinco a dez óbitos. E íamos esperando falecer mais, para que um caminhão fosse para Salvador, com os caixões que a prefeitura cedia. Esses corpos chegavam aqui por volta de uma, duas horas da manhã. Os velórios estavam com muita gente. Muita gente se encontrava da cidade, encontrava os familiares, muitos dopados de medicação.

Eu fui dopada, porque a todo momento eu neguei. Me neguei a aceitar aquilo que estava acontecendo. Quando chegava, era muito choro, tirava dos caminhões e por aqueles vidros ali, as pessoas tinham dez minutos para se despedir dos seus familiares, para os corpos serem levados para o cemitério. Era muita, muita dor que os familiares passaram.

Foi assim até as 64 vítimas [serem enterradas]. Os corpos chegando de 15, de 20, de dez, de cinco corpos. Esperava alguém morrer para trazer em grandes quantidades. Aquilo ali era muito chocante. Foi uma tragédia que abalou o mundo. Eu posso dizer que eu me neguei a acreditar que aquilo estava acontecendo com as minhas irmãs.

A maioria morava aqui onde a gente mora, no bairro Irmã Dulce, o desespero das mães que perderam as filhas, o desespero das filhas que perderam as mães e os desespero dos pais que perdem a esposa e filho de menor. Chegou um momento em que essas pessoas já estavam psicologicamente muito abaladas. Não tinha um psicólogo para fazer uma terapia. Não tinha um psiquiatra com medicação. O tempo foi passando e foi piorando.

Eu, depois de quatro anos, caí na real, a ficha caiu que as minhas irmãs tinham falecido. Eu não tinha coragem de falar com ninguém sobre aquilo, e eu tive que assistir o filme para entender o que aconteceu. O filme que foi o estalo daquela tragédia. E a partir daí, eu passei a ter medo de tudo, comecei a não aceitar perdas. Minhas irmãs [que não faleceram na explosão] já tinham vivido todo aquele momento. Não é que elas não precisavam de um psicólogo, precisavam sim. Mas eu, depois de quatro anos, a ficha caiu e eu comecei a ter muito medo. Foi tirando meu sono, foi vindo muita angústia, um desespero, mesmo.

Como eu conhecia o prefeito [Dr. Euvaldo de Almeida Rosa] aqui de Santo Antônio, ele deu muito apoio na época. Apoio assim, nos caixões, nos enterros, de alimentos para esses familiares, que não conseguiram tão cedo voltar a trabalhar para ter o seu sustento. Cheguei a conversar com ele sobre o que estava acontecendo comigo. Ele ligou para um órgão, um CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], que atende pessoas com distúrbios, com depressão. Pediu à psicóloga de lá que fizesse um acompanhamento.

Só que eu não estava conseguindo dormir. E nesse não conseguir dormir, eu acabei com transtorno de ansiedade. Eu estava muito trêmula. Aí a psicóloga disse que não dava para tratar apenas com terapia, que eu precisava de um psiquiatra. E a visão que eu tinha naquele momento era de que psiquiatra é médico de louco. Eu dizia a ela, a todo momento, que eu não queria tomar remédio. Mas chegou um momento em que eu precisei. Eu comecei a tomar dosagem pequena de medicação controlada, mas passava o efeito muito rápido, e aí foi aumentando a dosagem, aumentando...

E hoje ainda, eu fiz 41 anos, eu tenho depressão ainda, só que eu pude estudar, pude fazer faculdade, fiz o concurso, passei. Eu pude pagar esse tratamento, com medicações que eram muito caras. Remédio para dormir, para permanecer o sono. Medicação para meio mundo de coisa, da parte emocional. Eram muito caros, mas eu comprava, porque eu trabalhava e tinha condições de manter esse tratamento. Esse psiquiatra e essa psicóloga saíram [do SUS], passaram a atender no particular e eu tive que pagar.

Mas esses familiares, 90%, não tinham condições de pagar. Não tiveram acesso a esse atendimento. Alguns que tiveram acesso, não tinham condições de comprar as medicações. Muitos deles tinham época de ficar em surto total, pelo não acompanhamento, uma responsabilidade que ninguém queria ter e até hoje ninguém tem. Foi dada essa sentença. A gente viu o seguinte: foi encerrado o processo que a gente tanto clamou por justiça, e agora começa o processo do cumprimento dessa sentença.

[Eu falei da] minha parte psicológica, mas que eu iniciei um tratamento, que até hoje ainda faço, com o uso de medicações, mas que muitos desses familiares, não tiveram condições de fazer. Aquele 11 de dezembro de 1998 ainda está impregnado na cabeça dessas pessoas. Elas não conseguiram avançar.

As crianças que ficaram órfãs, cresceram sem a mãe, algumas sem o pai, criadas pelo avó, outras criadas por terceiros, elas não tiveram essa preparação, para quando crescessem, que foi da explosão que perderam o pai, a mãe, o irmão, a irmã. Aí também tem a questão psicológica. Foi por isso que a Corte colocou isso como algo muito forte.

O Movimento 11 de Dezembro, além da luta de justiça ao longo de todos esses anos, ele também atuou junto a essas crianças que ficaram órfãs?

É. Essas crianças, um padre, chamado Luis Cannal, que na época era da igreja da comunidade que faleceram mais pessoas, ele tinha muitos amigos na Itália. Esses amigos dele queriam dar dinheiro para esses familiares, para tentar reverter o quadro que naquele momento estava, para cuidar dessas crianças. Os familiares preferiram construir uma creche, que hoje é um símbolo na comunidade, a Creche Escola 11 de Dezembro, onde estudaram as crianças que ficaram órfãs. Ao crescer, iam saindo da creche para outras escolas. Hoje, essa creche atende crianças dessa comunidade Irmã Dulce e das comunidades vizinhas. Lá, essas crianças são muito visitadas por escolas particulares no final do ano, que proporcionam festa, brinquedos.

É um movimento, que em momento algum, apesar de todo o sofrimento, impunidade, se calou. Nunca deixou de ser resistente. Sempre lutou pela vida e pelos direitos humanos. Outras explosões não ocorreram em Santo Antônio de Jesus, porque esses familiares e parceiros que vinham aqui em Santo Antônio, [ficavam] até altas horas da noite, com a Polícia Federal e o Ministério Público, para mostrar onde tinha materiais, para combater.

Quando o Movimento passou a entender que esse não era um papel nosso, e sim do Ministério Público, do Exército, nós recuamos e passamos a ser um símbolo de luta dentro de Santo Antônio de Jesus, dentro do Brasil. Mas reconhecer a responsabilidade deles, que é bom, nunca reconheceram. Ao ponto de ter audiência nos Estados Unidos e [na Costa Rica], e saírem essas determinações.

É tudo que eu sei, já passei um pouco. Eu estou cansada, porque são muitas pessoas ligando durante o dia e isso mexe com a gente, mexe com o nosso psicológico. Eu, além de ser vítima, que perdi três irmãs, faço o papel de parceira e de coordenadora, de estar organizando o 11 de dezembro desse ano, de estar no Fórum com os familiares, para estar cobrando.

Para mim, não é legal quando essa data chega, o Movimento é muito assediado. Muitos familiares já estão idosos e acaba que eu, a presidente, a vice, esses parceiros, temos que estar a todo momento, concedendo entrevistas. Isso mexe com meu emocional. Eu sei que tenho que ser forte, porque daqui até o 11 de dezembro tem muito o que se fazer, mas por hoje eu cansei. [O 11 de dezembro] é uma data em que os familiares, a gente sente como se tivesse acontecido naquele momento, é muito triste.