Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil
Ficha Técnica
Vítimas: 62 membros da Guerrilha do Araguaia, 44 familiares diretos e 27 familiares não diretos
Peticionários e/ou Representantes: Cejil e Human Rights Watch/Americas, além da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Instituto de Estudos da Violência do Estado, a senhora Angela Harkavy (irmã de um desaparecido) e o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ)
Juízes: Diego García-Sayán, Presidente; Leonardo A. Franco, Vice-Presidente; Manuel E. Ventura Robles, Juiz; Margarette May Macaulay, Juíza; Rhadys Abreu Blondet, Juíza; Alberto Pérez Pérez, Juiz; Eduardo Vio Grossi, Juiz, e Roberto de Figueiredo Caldas, Juiz ad hoc
Cronologia
7 de agosto de 1995
Petição
6 de março de 2001
Relatório de Admissibilidade
31 de outubro de 2008
Relatório de Mérito
26 de março de 2009
Submissão pela CIDH
24 de novembro de 2010
Sentença
Leia entrevista do Réu Brasil com Victória Grabois, familiar de desaparecidos e fundadora do GTNM/RJ
Resumo
Quinto caso brasileiro analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a sentença do Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil data de 24 de novembro de 2010.
Na segunda metade da década de 1960 e no início da seguinte, durante a ditadura civil-militar brasileira, militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) instalaram-se ao longo do rio Araguaia, na divisa dos estados do Pará, Maranhão e do atual Tocantins, à época Goiás, formando a “Guerrilha do Araguaia”. O grupo político objetivava armar um exército popular por meio da mobilização dos camponeses, com o fim de montar uma guerrilha rural na região e derrubar o regime militar vigente. Entre 1972 e 1974, militares das Forças Armadas do Brasil dizimaram a Guerrilha do Araguaia, promovendo tortura, desaparecimento forçado e execução extrajudicial de ao menos algumas dezenas de militantes e camponeses da região.
Após o final do regime militar e da consequente restauração da democracia no país, várias iniciativas estatais promoveram algum tipo de reconhecimento dos crimes ocorridos durante o período ditatorial, incluindo os referentes à Guerrilha do Araguaia. A despeito disso, a impunidade dos responsáveis pelas torturas, desaparecimentos forçados e execução extrajudicial de integrantes da Guerrilha do Araguaia se manteve. A não responsabilização foi reiteradamente embasada na Lei de Anistia brasileira, cujo a vigência e constitucionalidade do parágrafo que protege os militares foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As ações judiciais movidas com o objetivo de identificar restos mortais das vítimas e publicizar informações sobre as incursões militares contra a Guerrilha também não resultaram em avanços significativos no esclarecimento dos crimes.
Em 7 de agosto de 1995, Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Human Rights Watch/Americas entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as violações sofridas pelas vítimas da Guerrilha do Araguaia e seus familiares. Posteriormente, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Instituto de Estudos da Violência do Estado, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) e Angela Harkavy, irmã de um desaparecido, entraram como co-peticionários. Questionado, o Estado brasileiro alegou não esgotamento dos recursos internos. Após quase seis anos, a CIDH produziu relatório de admissibilidade da petição, em março de 2001.
Após uma série de pedidos de prorrogação de prazo de ambas as partes, a Comissão produziu relatório de mérito em outubro de 2008, considerando o Brasil responsável por uma série de violações de direitos humanos, em detrimento dos membros da Guerrilha do Araguaia e seus familiares. O órgão fez uma série de recomendações ao Estado brasileiro, que chegou a apresentar relatórios de cumprimento parcial. A despeito disso, a CIDH não considerou a implementação satisfatória e remeteu o caso à Corte IDH em março de 2009. Como parte dos acontecimentos relacionados à Guerrilha do Araguaia ocorreram antes do reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil, a submissão se refere aos fatos que ocorreram após esse marco temporal, bem como a violações continuadas, que persistiam após o reconhecimento.
A Corte Interamericana admitiu parcialmente uma das exceções preliminares interpostas pelo Estado e negou as outras duas, dando prosseguimento ao julgamento. Na mesma sentença, condenou o Brasil pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais, à liberdade de pensamento e de expressão e à proteção judicial, em relação com a obrigação de respeitar e garantir os direitos, e o dever de adotar disposições de direito interno, previstos na Convenção Americana. Parte das violações refere-se aos membros da Guerrilha, parte a seus familiares. O Tribunal também decidiu que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana” e “carecem de efeitos jurídicos”
A Corte determinou uma série de medidas de reparação, que incluem a publicação da sentença e o pagamento de indenização, custas e gastos. Também determinou outras medidas de reabilitação, satisfação e não repetição, incluindo: oferecimento de tratamento médico e psicológico; esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas; capacitação em direitos humanos das Forças Armadas; tipificação do delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos; e busca, sistematização e publicação de informações sobre a Guerrilha. O Tribunal também determinou a investigação penal dos fatos do presente caso e a responsabilização pelos delitos, não podendo o Estado “aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga”.
O Brasil pagou a maior parte das indenizações e efetivou a publicação da sentença nos espaços determinados pela Corte. A Lei de Anistia, porém, continuou servindo como argumento para magistrados negarem instauração de processo penal ou a responsabilização dos agentes da repressão, a despeito de esforços do Ministério Público Federal nesse sentido. As iniciativas de busca de restos mortais, bem como de sistematização e publicação de informações sobre a Guerrilha foram enfraquecidas durante o governo Bolsonaro. As demais medidas de reabilitação, satisfação e não repetição foram pouco ou nada cumpridas pelo Estado brasileiro.
O procedimento de supervisão do cumprimento da sentença segue em aberto, mais de 10 anos após a decisão. O único relatório de supervisão da sentença publicado pela Corte data de outubro de 2014.
Contexto
A ditadura civil-militar brasileira teve início em 1964, com o golpe que tirou o presidente João Goulart (PTB) do poder. Tão logo nasceu o regime, nasceu também a resistência a esse. Em especial nos primeiros anos pós-golpe, uma série de movimentos armados surgiram com o objetivo de derrubar o governo militar brasileiro.
Um desses movimentos foi fundado por membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), uma dissidência do “Partidão” – como era conhecido o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1966, militantes do PCdoB formaram a “Guerrilha do Araguaia”, na região amazônica brasileira, ao longo do rio homônimo, na divisa dos estados do Pará, Maranhão e do atual Tocantins, à época Goiás. Parte deles havia passado por treinamento político-militar na China comunista – era justamente a Grande Marcha, ocorrida no país asiático em apoio a Mao Tsé-tung, a inspiração dos guerrilheiros.
O grupo, majoritariamente formado por jovens ex-estudantes universitários, objetivava armar um exército popular por meio da mobilização dos camponeses, com o fim de montar uma guerrilha rural na região e derrubar o regime militar vigente. Ao longo do final da década de 1960 e início da seguinte, os membros da Guerrilha do Araguaia se estabeleceram na região, aproximando-se gradualmente da população local e desenvolvendo técnicas de sobrevivência na mata. O grupo, que teve cerca de 70 integrantes, conseguiu angariar apoio de parte dos camponeses do Araguaia, mas nunca chegou a realizar ataques diretos contra a ditadura brasileira.
Paralelamente a isso, nos meses após ser baixado o Ato Institucional Número 5 (AI-5), que suspendeu uma série de garantias constitucionais em 13 de dezembro de 1968, o regime militar iniciou ofensiva contra os grupos armados de oposição. Ao longo do mandato de Emílio Garrastazu Médici (1969-74), ocorreu a fase mais extremada da ditadura brasileira.
Durante esse período, entre o final de 1971 e o início de 1972, o regime conseguiu prender e torturar dois jovens militantes da Guerrilha que haviam deixado a região. Em abril de 1972, a partir das informações obtidas, o Exército preparou uma primeira ofensiva contra o grupo armado. Nessa primeira campanha, a ordem era de deter os prisioneiros e de “sepultar os mortos inimigos na selva, depois de sua identificação”, sendo estes “fotografados e identificados por oficiais de informação e depois enterrados em lugares diferentes na selva”, de acordo com informações do livro “Direito à Memória e à Verdade”.
A despeito do contingente militar ser significativamente maior que o de guerrilheiros, a “Operação Papagaio” não conseguiu eliminar a Guerrilha. Alguns camponeses e militantes, como o depois deputado federal José Genoíno (PT), foram presos. Outros, foram mortos na selva, mas o regime também sofreu baixas e, em outubro, recuou.
No ano seguinte, quando as forças militares voltaram ao Araguaia, a ordem já era de eliminar os capturados. Ao longo de 1973 e 1974, nas operações “Sucuri” e “Marajoara” o regime promoveu detenções arbitrárias, tortura e o desaparecimento de cerca de 60 guerrilheiros e também de alguns camponeses da região.
No final de 1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia. Alguns poucos conseguiram fugir, mas a maioria foi morta e teve seus corpos atirados nos rios da região ou desenterrados e queimados pelas forças militares, que retornaram ao local em 1975 para apagar os rastros do massacre, na “Operação Limpeza”. À época, o regime impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos e proibiu a imprensa de falar a respeito. O Exército simplesmente negava a existência do movimento.
A ditadura civil-militar deixou um legado de violência no país. Segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, cerca de 50 mil pessoas teriam sido detidas somente nos primeiros meses da ditadura; cerca de 20 mil presos foram submetidos a torturas; há 354 mortos e desaparecidos políticos; 130 pessoas foram expulsas do país; 4.862 pessoas tiveram seus mandatos e direitos políticos suspensos, e centenas de camponeses foram assassinados.
O processo de reabertura democrática no Brasil foi marcado pela promulgação pelo regime militar da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, que promoveu anistia “ampla, geral e irrestrita” a todos que haviam cometido “crimes políticos ou conexos” entre setembro de 1961 e agosto de 1979. Se, por um lado, a Lei de Anistia permitiu o retorno de muitos exilados políticos da oposição, por outro serviu para garantir até hoje a impunidade dos agentes repressores da ditadura. Em função dela, o Estado deixou de levar a cabo uma investigação penal com o objetivo de julgar e sancionar os responsáveis pelos desaparecimentos relacionados à Guerrilha do Araguaia.
Mais de 15 anos depois, em 4 de dezembro de 1995, o Brasil sancionou a Lei 9.140, conhecida como Lei dos Desaparecidos Políticos. A norma reconheceu como mortas “as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979”, bem como reconheceu a responsabilidade estatal pelas mortes ocorridas durante esse período. Das 136 pessoas listadas na lei, 61 delas desapareceram no contexto da Guerrilha do Araguaia.
O dispositivo promoveu o pagamento de indenizações para os familiares das vítimas, de acordo com a expectativa de vida que os desaparecidos ainda teriam na época da presumida morte. Até a sentença da Corte Interamericana, familiares de 58 desaparecidos já haviam recebido um montante total superior a R$ 6,5 milhões em indenizações, em valores da época.
Além disso, a Lei determinou a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, com a função de reconhecer pessoas mortas ou desaparecidas no contexto do regime militar, emitir pareceres sobre indenizações e envidar esforços na busca de restos mortais.
Em seu livro-relatório “Direito à Memória e à Verdade”, a Comissão dedicou um capítulo inteiro aos fatos da Guerrilha do Araguaia e acrescentou três vítimas em relação às que já haviam sido reconhecidas pela Lei 9.140/95: Antônio Ferreira Pinto e Pedro Matias de Oliveira (também conhecido como Pedro Carretel), que desapareceram durante o período; e Antônio Araújo Veloso, que morreu quatro anos depois, em decorrência das torturas sofridas. Veloso é o único que não figura entre as vítimas no caso perante a Corte Interamericana.
O relatório destaca o Brasil como “único país do Cone Sul” que não trilhou procedimentos penais para “examinar as violações de Direitos Humanos ocorridas em seu período ditatorial, mesmo tendo oficializado, com a Lei nº 9.140/95, o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e pelos desaparecimentos denunciados”.
Entre 1980 e 2006, foram realizadas 13 expedições de busca à região do Araguaia. As iniciativas partiram dos familiares das vítimas, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério Público e da Comissão Interministerial, criada via decreto pelo governo federal em 2003.
Nas buscas empreendidas por familiares, foram identificados os restos mortais de Maria Lúcia Petit da Silva e de Bérgson Gurjão Farias, em 1996 e 2009, respectivamente. Além disso, um familiar de Lourival Moura Paulino informou que seu corpo foi identificado no cemitério de Marabá, em 2008. Em outubro de 2001, com o apoio da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, uma missão do Ministério Público Federal (MPF) encontrou oito restos mortais, que ainda não haviam sido identificados até a sentença da Corte Interamericana. A maioria das expedições dos diferentes órgãos, porém, não obtiveram sucesso em encontrar restos mortais.
Em setembro de 2006, o Brasil deu início a projeto de criação de um banco de DNA, com o objetivo de recolher amostras de sangue dos familiares e criar um perfil genético de cada desaparecido. Até a sentença da Corte, haviam sido recolhidas 142 amostras de familiares de 108 desaparecidos políticos, parte deles da Guerrilha do Araguaia.
Em 18 de junho de 2009, o Brasil também concedeu os benefícios de anistia política a 44 camponeses da região do Araguaia, incluindo o pagamento de pensão vitalícia. Na ocasião, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, apresentou pedido de perdão formal em nome do Estado.
Trâmite no Brasil (até a sentença da Corte)
Ação Ordinária
Com a reabertura democrática brasileira, 22 familiares de 25 dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia ingressaram com uma ação civil contra o Estado, na Justiça Federal do Distrito Federal (DF), em fevereiro de 1982. Na Ação Ordinária nº 82.00.24682-5, os familiares solicitaram que fosse determinado o paradeiro das vítimas desaparecidas, de modo que pudessem emitir certificados de óbito e sepultar dignamente os restos mortais.
A ação foi julgada extinta sem julgamento do mérito em março de 1989, sob o fundamento de que o pedido seria jurídica e materialmente impossível, e que a solicitação dos autores da ação já havia sido contemplada pela Lei de Anistia. Após recurso de apelação por parte dos familiares, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) reverteu a sentença, em outubro de 1993.
A partir disso, a União passou a interpor uma série de recursos, todos eles rechaçados pelos tribunais competentes. Em abril de 1999, o Estado, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), chegou a apresentar um escrito afirmando que a Ação Ordinária não se justificava, já que as pretensões dos autores haviam sido atendidas com o reconhecimento das mortes e a emissão de certificados de óbito, com base na Lei dos Desaparecidos Políticos. Além disso, o Estado alegou que a prestação que permanecia pendente, a localização das sepulturas, era materialmente impossível.
Em junho de 2003, a Primeira Vara Federal enfim analisou o mérito do caso e julgou procedente a ação. Entre outras medidas, a decisão ordenou a desclassificação e apresentação de toda a informação relativa às operações militares relacionadas à Guerrilha do Araguaia e que se informasse sobre o local de sepultamento dos desaparecidos. A partir disso, seguiu-se nova rodada de recursos movidos pelo Estado contra a decisão, mas nenhum deles capaz de reverter o mérito. Em outubro de 2007, a decisão transitou em julgado, sendo a execução da sentença ordenada em março de 2009.
Para cumprir o determinado, mediante o Decreto nº 567 do Ministério da Defesa, o Estado constituiu, em abril de 2009, o Grupo de Trabalho Tocantins, com a finalidade de “coordenar e executar (...) as atividades necessárias para a localização, recolhimento e identificação dos corpos dos guerrilheiros e militares mortos no episódio”. Foi também criado um Comitê Interinstitucional para supervisionar os trabalhos.
No âmbito desse processo, a AGU apresentou, entre outros documentos, relatório elaborado pelo Ministério da Defesa, intitulado “Informações sobre a Guerrilha do Araguaia”. Nele, constam cerca de 21 mil páginas de documentos dos arquivos do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), incluindo documentos dos três serviços secretos das Forças Armadas. De acordo com o Estado, esse material constituía toda a documentação disponível no âmbito da União.
Ação Civil Pública
Em 2001, a partir da solicitação de familiares, as Procuradorias da Repúblicas de Pará, São Paulo e Distrito Federal iniciaram inquéritos civis públicos com a finalidade de compilar informações sobre a Guerrilha do Araguaia, apresentando em janeiro do ano seguinte um relatório parcial. Como consequência, o Ministério Público Federal (MPF) interpôs a Ação Civil Pública nº 2001.39.01.000810-5 contra a União, com o propósito de fazer cessar a influência, através de assistência social, das Forças Armadas sobre os habitantes da região do Araguaia, bem como obter da União todos os documentos que contivessem informação sobre as ações militares de combate à Guerrilha.
Em 19 de dezembro de 2005, a Primeira Vara Federal declarou parcialmente procedente a ação e o Estado iniciou uma série de recursos para reverter a decisão. A última movimentação do processo antes da sentença da Corte Interamericana ocorreu em dezembro de 2009. Na ocasião, a União solicitou que fosse declarada perda do objeto da ação, que já teria sido atendido pela Ação Ordinária nº 82.00.24682-5.
Notificação Judicial
Também em dezembro de 2005, o Ministério Público Federal e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Instituto de Estudos da Violência do Estado apresentaram petição de Notificação Judicial ao presidente e vice-presidente da República e a funcionários do alto escalão do governo e das Forças Armadas. Na petição, eles solicitaram a desclassificação de informações que interessassem aos familiares de mortos e desaparecidos políticos para fins de conhecer a verdade e de localizar os restos mortais de seus entes queridos, bem como para possibilitar ao MPF o acesso a seu conteúdo.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Na ADPF 153, a OAB questionou a validade de parágrafo do artigo 1º da Lei de Anistia, que considera como conexos e igualmente perdoados os crimes de “qualquer natureza”. O objetivo era que a Suprema Corte anulasse o perdão dado aos representantes do Estado acusados de praticar atos de violência – como tortura, homicídio e desaparecimento forçado – contra opositores políticos durante o regime militar. Meses antes da sentença da Corte, em 29 de abril de 2010, o STF declarou a improcedência da Arguição movida pela OAB, reafirmando a vigência da Lei de Anistia e a constitucionalidade da interpretação do parágrafo em questão. O placar da decisão foi de sete votos a dois.
Na Comissão
O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Human Rights Watch/Americas entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 7 de agosto de 1995. Posteriormente, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Instituto de Estudos da Violência do Estado, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) e Angela Harkavy, irmã de um desaparecido, entraram como co-peticionários.
No documento, as organizações denunciaram o Brasil pela violação dos direitos à vida (artigo 4), às garantias judiciais (artigo 8), à liberdade de consciência e religião (artigo 12), à liberdade de pensamento e de expressão (artigo 13) e à proteção judicial (artigo 25), conjuntamente com o descumprimento do artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) da Convenção Americana. Além disso, apontaram violação aos direitos humanos previstos nos artigos I (direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa), XXV (direito de proteção contra prisão arbitrária) e XXVI (direito a processo regular) da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.
O caso foi encaminhado ao governo brasileiro em 12 de dezembro de 1995, para que fosse apresentada contestação. Em junho do ano seguinte, o Brasil apresentou sua resposta, alegando que não haviam sido esgotados os recursos internos disponíveis. Além disso, afirmou que, devido à adoção da Lei dos Desaparecidos Políticos do Brasil (Lei 9.140/1995), a petição não tinha mais objeto, visto que já havia ocorrido reparação das violações alegadas, assim como o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos fatos. Após uma série de audiências e envio de comentários e documentos pelas partes, a Comissão Interamericana admitiu a petição em relatório de admissibilidade produzido em 6 de março de 2001, rejeitando a argumentação brasileira.
Ao longo dos anos seguintes, houve uma série de pedidos de prorrogação de prazos por parte dos representantes dos familiares das vítimas e do Estado brasileiro. A CIDH aprovou relatório de mérito mais de sete anos após admitir a petição, em 31 de outubro de 2008, durante seu 133º Período Ordinário de Sessões.
A Comissão considerou uma série de violações por parte do Brasil, por diferentes motivos.
Quanto à aplicação da Lei de Anistia, considerou que houve violação dos direitos às garantias (8.1) e à proteção judicial (25), em relação com a obrigação de respeitar e garantir (1.1) e de adotar disposições de direito interno (2), previstos na Convenção Americana; e ao direito à justiça (XVIII) da Declaração Americana, todos referentes aos desaparecidos e aos seus familiares. Também em relação a estes, considerou que houve violação dos artigos 8.1 e 25 da Convenção, em conexão com o artigo 1.1, e do artigo XVIII da Declaração, por conta da ineficácia das ações judiciais interpostas.
Em relação unicamente às vítimas desaparecidas, considerou que houve violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica (3), à vida (4), à integridade pessoal (5) e à liberdade pessoal (7), em conexão com o artigo 1.1 da Convenção; e dos direitos à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa (artigo I), ao reconhecimento da personalidade jurídica e dos direitos civis (artigo XVII), de proteção contra prisão arbitrária (XXV) e de processo regular (XXVI), previstos na Declaração.
Por fim, em relação aos familiares das vítimas, também considerou que houve violação do direito à integridade pessoal (5), em conexão com o artigo 1.1 da Convenção, do direito à liberdade de pensamento e de expressão (13), em conexão com o artigo 2; e dos direitos à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa (artigo I) da Declaração.
Considerando as violações, a CIDH estabeleceu uma série de recomendações ao Estado brasileiro. Em primeiro lugar, recomendou a adoção de medidas a fim de garantir que a Lei de Anistia “não continu[asse] representando um obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos humanos que constituam crimes contra a humanidade”. Também solicitou que o Brasil estabelecesse a responsabilidade penal pelo desaparecimento forçado das vítimas da Guerrilha do Araguaia, e que publicasse os resultados da investigação, levando em conta que “tais crimes contra a humanidade são insuscetíveis de anistia e imprescritíveis”.
A Comissão recomendou a realização de ações e modificações legais “a fim de sistematizar e publicar todos os documentos relacionados com as operações militares contra a Guerrilha” e que o Estado fortalecesse, com recursos financeiros e logísticos, esforços na busca e sepultura das vítimas não encontradas. Solicitou também a implementação de programa de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas, com ênfase em instrumentos internacionais de direitos humanos. Além disso, recomendou a tipificação interna do crime de desaparecimento forçado.
Por fim, recomendou a outorgação de reparação aos familiares, que incluísse “tratamento físico e psicológico, assim como a celebração de atos de importância simbólica que garantam a não repetição dos delitos cometidos no presente caso e o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelo desaparecimento das vítimas e o sofrimento de seus familiares”.
Após algumas prorrogações de prazo, o Brasil apresentou relatórios de cumprimento parcial das recomendações. A CIDH não considerou a implementação satisfatória e, atendendo o pedido dos representantes, remeteu o caso à Corte Interamericana.
Na Corte
A Comissão Interamericana remeteu o caso à Corte em 26 de março de 2009. Para a CIDH, o caso representava “uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e a execução extrajudicial, e a resultante obrigação dos Estados de fazer a sociedade conhecer a verdade, e investigar, processar e sancionar as graves violações de direitos humanos”. Além disso, o órgão também considerou relevante destacar o “valor histórico” do caso, à época o único perante o sistema interamericano referente à ditadura militar brasileira, o que possibilitava à Corte afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia e das leis sobre sigilo de documentos com a Convenção Americana, “a fim de reparar as vítimas e promover a consolidação do estado democrático de direito no Brasil, garantindo o direito à verdade de toda a sociedade brasileira sobre fatos tão graves”.
Considerando a jurisprudência da Corte Interamericana e a data de ratificação da Convenção Americana pelo Brasil, a demanda da CIDH não inclui as violações ligadas à Declaração Americana, tampouco aos fatos e violações que ocorreram antes da entrada em vigência da Convenção, apesar disso constar no relatório de mérito da Comissão. São exceção a esse marco temporal as violações de caráter continuado, que persistiram após o reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil, em dezembro de 1998.
Em sua demanda, a CIDH solicitou que a Corte considerasse que o Brasil violou os artigos 3, 4, 5, 7, 8, 13 e 25 da Convenção, em conjunto com as obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2. Além disso, demandou que o país fosse considerado responsável internacionalmente pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento de membros do PCB e de moradores da região; porque, em virtude da Lei de Anistia, não se levou a cabo investigação penal para julgar e sancionar os responsáveis pelos crimes supracitados e pela execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva; porque os recursos judiciais de natureza civil não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos e de Maria acesso à informação sobre os acontecimentos, e porque medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram esse acesso; e porque o desaparecimento das vítimas e a execução de Maria Lúcia Petit, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação, afetaram prejudicialmente a integridade pessoal de seus familiares.
Com base nisso, a Comissão solicitou que o Estado fosse ordenado a adotar as mesmas medidas recomendadas pela CIDH em seu relatório de mérito de 31 de outubro de 2008.
Em seu escrito de solicitações, argumentos e provas, os representantes dos familiares das vítimas solicitaram que o Brasil fosse condenado pela violação dos artigos 3, 4, 5, 7, 8, 13 e 25, da Convenção, em conjunto com as obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2, assim como o fez a Comissão. Além disso, evocaram a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, que o Brasil ratificou em 1989. Para os representantes, o Estado violou os direitos previstos nos artigos 1, 2, 6 e 8 deste tratado.
Por sua especificidade, o caso se destaca por uma série de pedidos amicus curiae, especialmente relacionados à análise de possível incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira com a Convenção Americana, mas também em relação ao direito à verdade e ao acesso à informação. Ao todo, foram oito escritos, de dezenas de pessoas e instituições. Além disso, a Corte Interamericana recebeu depoimentos de inúmeros familiares das vítimas, em especial durante a audiência pública promovida pelo órgão.
Exceções Preliminares
Na fase de contestação do processo, o Estado brasileiro interpôs três exceções preliminares – recurso utilizado para evitar total ou parcialmente o julgamento de mérito pelo Tribunal. Durante a audiência pública, acrescentou mais uma. Todas elas foram julgadas juntamente com o mérito.
Em primeiro lugar, o Brasil alegou incompetência temporal do Tribunal, considerando que as detenções arbitrárias, atos de tortura e execuções extrajudiciais ocorreram antes do reconhecimento da competência da Corte pelo país.
Em sua decisão, o órgão interamericano destacou que o caráter contínuo ou permanente do desaparecimento forçado de pessoas foi reconhecido reiteradamente pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, e que ele se inicia “com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino”, e permanece “até quando não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos”. Com base nisso, os juízes acataram parcialmente a exceção, excluindo da sua análise a alegada execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva, cujos restos mortais foram identificados em 1996.
Além disso, a Corte afirmou poder analisar os fatos que ocorreram ou persistiram após o reconhecimento da competência pelo Brasil, como as questões relacionadas à falta de investigação, falta de efetividade de recursos e restrições ao acesso à informação.
Na segunda exceção preliminar, o Estado alegou falta de interesse processual, destacando o pouco tempo entre a sua apresentação de relatório parcial de cumprimento das recomendações e o envio do caso à Corte pela CIDH – três dias. Além disso, o país listou uma série de iniciativas, como a promulgação da Lei dos Desaparecidos Políticos do Brasil, reparações econômicas a famílias de vítimas, publicação de livros, realização de atos de natureza simbólica e campanhas para ajudar na localização dos desaparecidos, entre outras. Na argumentação, brasileira, as medidas já adotadas, somadas às que estavam em implementação atenderiam na íntegra os pedidos da Comissão e dos representantes.
A Corte rejeitou a alegação brasileira, destacando que “não se evidencia um erro ou a inobservância das normas convencionais ou regulamentares que regem o envio do caso pela Comissão a esta Corte, mas uma mera discrepância de critérios relativamente a essa ação”. Além disso, a decisão aponta que “as ações que o Estado afirma que adotou para reparar as supostas violações (...) ou evitar sua repetição, podem ser relevantes para a análise da Corte sobre o mérito do caso e, eventualmente, para as possíveis reparações que se ordenem, mas não têm efeito sobre o exercício da competência da Corte para dele conhecer”.
Em sua terceira exceção, o Brasil alegou falta de esgotamento dos recursos internos, afirmando que a Comissão “deixou de avaliar adequadamente” essa questão. O país listou uma série de processos que encontravam-se em aberto, incluindo uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação ordinária e uma ação civil pública, entre outros.
A Corte considerou parte das alegações brasileiras extemporâneas, já que não foram apresentadas durante a fase de admissibilidade do caso na Comissão. Também considerou que a atuação da CIDH não foi inadequada quando da admissibilidade. Por fim, considerou que a argumentação brasileira em relação à ação ordinária versava sobre o mérito do caso. Com base nisso, negou a exceção preliminar interposta pelo Brasil.
Na quarta exceção preliminar, incluída posteriormente à contestação da demanda, o Brasil fez menção à decisão do STF em relação à ADPF que tentava derrubar a Lei de Anistia – o Supremo declarou a ação improcedente em 29 de abril de 2010. Para a defesa brasileira, a Corte Interamericana funcionaria como “tribunal de quarta instância” se revisasse uma decisão da mais alta corte brasileira.
O Tribunal interamericano considerou que a demanda apresentada pela CIDH não pretendia revisar a sentença do Supremo Tribunal Federal, mas que se estabelecesse “se o Estado violou determinadas obrigações internacionais dispostas em diversos preceitos da Convenção”. Os juízes ressaltaram que o órgão tem competência para “examinar os respectivos processos internos, inclusive, eventualmente, as decisões de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade com a Convenção Americana” e que, no caso em questão, não se solicitava à Corte “a realização de um exame da Lei de Anistia com relação à Constituição Nacional do Estado” e sim um “um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção”. Com base nisso, a Corte rejeitou a exceção.
Supostas violações analisadas pela Corte
Artigos 3, 4, 5 e 7, em relação com artigo 1.1
Em seus escritos, a Comissão Interamericana valorou o reconhecimento pelo Brasil de sua responsabilidade pelos desaparecimentos forçados e o pagamento de indenizações, mas destacou que os familiares dos desaparecidos continuavam sem informações mínimas sobre os fatos ocorridos e sobre o paradeiro de seus entes queridos, mesmo quase 40 anos após o início dos fatos.
Os representantes, por sua vez, salientaram que o extermínio da Guerrilha do Araguaia fez parte de um padrão de repressão, perseguição e eliminação sistemática e generalizada da oposição política pelo regime ditatorial, sendo um dos seus episódios mais sangrentos.
Em sua defesa, o Estado basileiro reafirmou sua responsabilidade pelas violações de direitos humanos ocorridas durante o extermínio da Guerrilha do Araguaia, mas destacou uma série de medidas adotadas, como a Lei dos Desaparecidos Políticos e a publicação do relatório “Direito à Memória e à Verdade”, que significariam em si uma reparação.
Com base nisso, a Corte Interamericana considerou que “não há controvérsia quanto aos fatos do desaparecimento forçado dos integrantes da Guerrilha do Araguaia, nem da responsabilidade estatal a esse respeito”. A despeito disso, houve uma diferença entre o número de vítimas reconhecidas pela CIDH (70) e pelo Estado brasileiro (62) – as oito pessoas que diferem eram camponeses da região do Araguaia. Por não ter elementos probatórios suficientes para se pronunciar sobre essas oito vítimas, a Corte estabeleceu um prazo de 24 meses para que se aportasse prova suficiente que permitisse a identificação pelo Brasil.
Dessa forma, o Tribunal estabeleceu como provado que, entre 1972 e 1974, “agentes estatais foram responsáveis pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas” e que “transcorridos mais de 38 anos, contados do início dos desaparecimentos forçados, somente foram identificados os restos mortais de duas delas”.
Em sua decisão, o órgão ressaltou que os atos que constituem desaparecimento forçado têm caráter continuado ou permanente e que “suas consequências acarretam uma pluriofensividade aos direitos das pessoas reconhecidos na Convenção Americana”. Para o Tribunal essa violação permanece “enquanto não se conheça o paradeiro da vítima ou se encontrem seus restos, motivo pelo qual os Estados têm o dever correlato de investigar e, eventualmente, punir os responsáveis, conforme as obrigações decorrentes da Convenção”.
Com base nisso, a Corte considerou o Brasil “responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos, respectivamente, nos artigos 3, 4, 5 e 7, em relação ao artigo 1.1, da Convenção Americana”, em prejuízo de 62 vítimas.
Artigos 8.1 e 25.1, em relação com artigos 1.1 e 2
Aqui, a Corte Interamericana decidiu se a Lei de Anistia brasileira “é ou não compatível com os direitos consagrados nos artigos 1.1, 2, 8.1 e 25 da Convenção Americana ou, dito de outra maneira, se aquela pode manter seus efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, uma vez que o Estado obrigou-se internacionalmente a partir da ratificação da Convenção”.
Em seus escritos, a CIDH recordou que o próprio Brasil alegou que a punição dos responsáveis pelos desaparecimentos forçados e pela execução de Maria Lúcia Petit da Silva estavam impossibilitadas pela Lei de Anistia. Para a Comissão, a partir da interpretação que o Estado estabeleceu da norma, “além da falta de investigação e sanção penal, nem os familiares das vítimas, nem a sociedade brasileira puderam conhecer a verdade sobre o ocorrido”. O órgão ressaltou que “a aplicação de leis de anistia a perpetradores de graves violações de direitos humanos é contrária às obrigações estabelecidas na Convenção e à jurisprudência da Corte Interamericana”.
Os representantes destacaram que a interpretação dada pelo Estado brasileiro da Lei de Anistia, que havia sido referendada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, constitui “o maior obstáculo à garantia do direito de acesso à justiça e do direito à verdade dos familiares dos desaparecidos, o que criou uma situação de total impunidade”. Afirmaram também que a lei brasileira “não foi o resultado de um processo de negociação equilibrada, já que seu conteúdo não contemplou as posições e necessidades reivindicadas por seus destinatários e respectivos familiares” e que “atribuir o consentimento à anistia para os agentes repressores ao lema da campanha e aos familiares dos desaparecidos é deformar a história”. Os representantes também colocaram a prescrição, a falta de tipificação penal do crime de desaparecimento forçado e a intervenção da jurisdição militar como empecilhos.
Em sua defesa, o Brasil solicitou que a Corte reconhecesse as ações empreendidas no âmbito interno e as considerasse suficientes. Além disso, posicionou a aprovação da Lei de Anistia em 1979 como antecedida de um debate político e em um contexto de transição para a democracia e de necessidade de “reconciliação nacional”, para evitar uma perpetuação do clima de desconfiança e rivalidade entre os grupos políticos brasileiros. O Estado rebateu as alegações da CIDH e dos representantes sobre a imprescritibilidade do crime de desaparecimento forçado e evocou o princípio da legalidade, previsto no artigo 9 da Convenção. Também alegou que a anistia brasileira tem como característica distintiva sua “bilateralidade e reciprocidade”, já que teve por objetivo abarcar os dois lados do conflito político-ideológico.
Para a Corte Interamericana, a obrigação de investigar e, se for o caso, julgar e punir, “adquire particular importância ante a gravidade dos crimes cometidos e a natureza dos direitos ofendidos, especialmente em vista de que a proibição do desaparecimento forçado de pessoas e o correspondente dever de investigar e punir os responsáveis há muito alcançaram o caráter de jus cogens.”. Os juízes destacaram que, conforme o Direito Internacional, essa obrigação decorre da obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção Americana: “se o aparato estatal age de modo que essa violação fique impune e não se reestabelece, na medida das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas a sua jurisdição o livre e pleno exercício de seus direitos”.
A decisão do Tribunal destaca que essa obrigação foi afirmada por todos os órgãos dos sistemas internacionais de direitos humanos, citando precedentes do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), do Comitê contra a Tortura da ONU, da antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU, de relatoriais especiais da ONU, da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Comissão Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos.
A Corte Interamericana também ressaltou que “as anistias ou figuras análogas foram um dos obstáculos alegados por alguns Estados para investigar e, quando fosse o caso, punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos”. O Tribunal já se pronunciou sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados em caso relacionados ao Peru e ao Chile, e a Comissão Interamericana já se pronunciou nesse sentido em casos relacionados à Argentina, Chile, El Salvador, Haiti, Peru e Uruguai, além do caso da Guerrilha do Araguaia em si.
A decisão cita precedentes de diversos órgãos das Nações Unidas, incluindo o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, o Relator Especial da ONU sobre a Questão da Impunidade, o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários da ONU e o próprio Secretário-Geral do órgão.
A Corte também destacou que diversos órgãos de proteção de direitos humanos criados por tratados “mantiveram o mesmo critério sobre a proibição das anistias que impeçam a investigação e a punição dos que cometam graves violações dos direitos humanos”. A decisão cita entendimento do Comitê contra a Tortura da ONU nesse sentido, e também do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, que afirmou que as anistias para violações graves de direitos humanos são incompatíveis com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Além disso, o entendimento de inadmissibilidade das leis de anistias aparece em decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos
O Tribunal ressaltou que, também no direito penal internacional, as anistias ou normas análogas foram consideradas inadmissíveis, citando o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, o Tribunal Especial para Serra Leoa e acordos das Nações Unidas com nações como o Líbano e o Camboja.
Por fim, a Corte Interamericana destacou que diversos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio de seus mais altos tribunais de justiça, incorporaram esses parâmetros, “observando de boa-fé suas obrigações internacionais”.
A Corte Suprema de Justiça da Argentina declarou sem efeitos as leis de anistia “que constituíam neste país um obstáculo normativo para a investigação, julgamento e eventual condenação de fatos que implicavam violações dos direitos humanos”. O Tribunal Constitucional do Peru também considerou as leis de anistia em questão nulas e que careciam de efeitos jurídicos.
A Corte Suprema de Justiça do Chile concluiu que as anistias a respeito de desaparecimentos forçados abrangeriam somente um determinado tempo e não todo o lapso de duração do desaparecimento forçado e seus efeitos, considerando também que o “delito de sequestro […] tem o caráter de crime contra a humanidade e, consequentemente, não procede invocar a anistia como causa extintiva da responsabilidade penal”.
A Suprema Corte de Justiça Uruguai considerou ilegítima a Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado, que estabelecia anistia. Por fim, a decisão ressaltou que a Corte Constitucional da Colômbia, em diversos casos, "levou em conta as obrigações internacionais em casos de graves violações de direitos humanos e o dever de evitar a aplicação de disposições internas de anistia”.
Com base na vasta jurisprudência, a Corte Interamericana reiterou o que já havia estabelecido em outras decisões relacionadas a leis de anistia: “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.
Para o Tribunal, a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia brasileira “afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana”. Além disso, “violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção”. Adicionalmente, a Corte considerou que, “ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção”.
Na visão dos juízes, considerando a “manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos”. Dado isso, o Tribunal afirmou que essas disposições “não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.
A decisão da Corte destaca que, ao se tornar parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os órgãos de um Estado “inclusive seus juízes, também estão submetidos [ao tratado], o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos”. O Tribunal também observou que a decisão do Supremo Tribunal Federal que validou a interpretação da Lei de Anistia não considerou as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, “particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2”.
Para a Corte, "a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé”.
Considerando isso, a Corte concluiu que ”devido à interpretação e à aplicação conferidas à Lei de Anistia, a qual carece de efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, (...) o Brasil descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo tratado”. Adicionalmente, o Tribunal concluiu que, “pela falta de investigação dos fatos, bem como da falta de julgamento e punição dos responsáveis, o Estado violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado”, em detrimento de 71 familiares das vítimas.
Na decisão, os juízes assinalaram que 24 familiares das vítimas indicados na demanda faleceram antes do reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil, o que impede o Tribunal de declarar a responsabilidade estatal perante esses. Além disso, destacaram que outros 38 familiares das vítimas faleceram e que não há conclusão sobre suas respectivas datas de falecimento. Com base nisso, determinou que seus familiares ou representantes legais apresentassem à Corte, num prazo de seis meses, documentação que comprovasse que a data de falecimento é posterior a 10 de dezembro de 1998, quando o Brasil reconheceu a competência do órgão.
Sobre o descumprimento dos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura, apontado pelos representantes, o Tribunal considerou não ser necessário se pronunciar sobre as alegações, já que elas se referem “aos mesmos fatos que já foram analisados à luz de outras obrigações convencionais”.
Artigos 13, 8.1 e 25, em relação com artigos 1.1 e 2
Em seus escritos, a Comissão Interamericana considerou haver uma “restrição indevida ao direito de acesso à informação” dos familiares das vítimas, afirmando não existir nenhum interesse legítimo para manter em sigilo informação relativa a violações massivas de direitos humanos e que o desconhecimento da verdade por parte dos familiares e a manutenção da falta de informação era uma situação “equiparável à tortura”. A CIDH também teceu críticas às leis que à época regiam o acesso à informação no Brasil, considerando que elas não cumpriam os parâmetros estabelecidos pelo Sistema Interamericano. Com base nisso, solicitou que o Estado fosse declarado responsável pela violação do artigo 13 da Convenção, em conjunto com os artigos 1.1 e 2, e que fosse ordenado a reformar seu regime jurídico interno.
No que diz respeito à Ação Ordinária movida pelos familiares das vítimas, a CIDH apontou que a demora de mais de 25 anos até a sentença final não foi justificada pelo Estado. Destacou também que os demais recursos judiciais tampouco foram efetivos. Dado isso, solicitou que a Corte declarasse violação dos artigos 8 e 25 da Convenção, em relação ao artigo 1.1, em prejuízo dos desaparecidos e de seus familiares, bem como da pessoa executada.
Em seus escritos, os representantes solicitaram que fossem declaradas as mesmas violações propostas pela Comissão, afirmando que o silêncio, a negativa de entregar documentos ou a falha das autoridades em comprovar sua destruição demonstravam violação por parte do Estado do direito à informação. Além disso, destacaram que a ineficácia das ações interpostas e os mecanismos e medidas criados pelo Estado e pelo Legislativo impediram a reconstrução dos fatos e da verdade.
Em sua defesa, o Estado brasileiro recordou as diversas normas e medidas adotadas para reconstruir episódios de morte e desaparecimentos forçados ocorridos durante o regime militar. Além disso, destacou que, no cumprimento da sentença da Ação Ordinária, entregou milhares de páginas de documentos que representariam toda a informação conhecida e arquivada no âmbito da União, referente à Guerrilha.
Na decisão, a Corte destacou seu entendimento consolidado de que o direito à liberdade de pensamento e de expressão, previsto no artigo 13, compreende “não apenas o direito e a liberdade de expressar seu próprio pensamento, mas também o direito e a liberdade de buscar, receber e divulgar informações e ideias de toda índole”. Ressaltou também que “em casos de violações de direitos humanos, as autoridades estatais não se podem amparar em mecanismos como o segredo de Estado ou a confidencialidade da informação, ou em razões de interesse público ou segurança nacional, para deixar de aportar a informação requerida pelas autoridades judiciais ou administrativas encarregadas da investigação ou processos pendentes”. Além disso, assinalou que os familiares de vítimas de graves violações de direitos humanos têm “o direito de conhecer a verdade”, e que esse está compreendido no direito de acesso à justiça.
Para o Tribunal, o direito de conhecer a verdade no caso da Guerrilha do Araguaia se relacionava com a Ação Ordinária interposta pelos familiares das vítimas. Em sua sentença, a Corte chamou a atenção para o fato de que, em 1999, o Estado afirmou que “não havia qualquer mínima prova razoável da existência de um suposto ‘relatório da Guerrilha do Araguaia’”; e em 2000, o Ministério da Defesa afirmou inexistir tal relatório. A despeito disso, em 2009, a União “aportou numerosa documentação obtida de diversas fontes em diferentes períodos”.
Na visão dos juízes, “o Estado não pode amparar-se na falta de prova da existência dos documentos solicitados. Ao contrário, deve fundamentar a negativa a prestar a informação, demonstrando que adotou todas as medidas a seu alcance para comprovar que, efetivamente, a informação solicitada não existia”.
Com base nisso, a Corte considerou que o Brasil “violou o direito a buscar e a receber informação consagrado no artigo 13 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 do mesmo instrumento” em prejuízo de 13 dos 22 familiares que interpuseram a Ação Ordinária. Quatro dos familiares faleceram antes do reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil, e outros cinco ficaram pendentes de comprovação da data de falecimento.
Além disso, os juízes consideraram que a Ação Ordinária “ultrapassou excessivamente um prazo que pudesse ser considerado razoável” e, por esse motivo, o “Brasil violou os direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação com o artigo 13 e 1.1 do mesmo instrumento”.
Em relação à Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, a Corte destacou que o objeto era semelhante ao da Ação Ordinária. Além disso, ressaltou que “trata-se de uma ação que não podia ser interposta pelas vítimas, razão pela qual o Tribunal considera que ela não é adequada para garantir o direito dos familiares a buscar e a receber informação”, optando por não fazer considerações adicionais.
Já quanto às críticas tecidas pela Comissão Interamericana e pelos representantes quanto à normativa interna brasileira sobre acesso à informação, apontando incompatibilidade entre essa e a Convenção Americana, a Corte considerou que não se demonstrou concretamente “os fatos nos quais o marco normativo fora o fundamento das alegadas restrições ao acesso à informação”. Apesar de optar por não analisar a normativa brasileira, a Corte valorou “a iniciativa do Estado de remeter um projeto de lei com a finalidade de otimizar e fortalecer o marco normativo do direito à liberdade de pensamento e de expressão”.
Artigo 5, em relação com artigo 1.1
A Comissão Interamericana destacou que a violação à integridade psíquica e moral dos familiares das vítimas era consequência direta dos desaparecimentos forçados e da certeza da morte da pessoa executada. Para a CIDH, a ausência, a falta de justiça e informação e a omissão das autoridades, décadas após os fatos, provocaram nos familiares um estado de desassossego, intranquilidade, falta de confiança, desesperança, impotência e angústia, vulnerando gravemente sua estabilidade emocional e seu direito à integridade pessoal.
Os representantes acrescentaram que os familiares ainda não haviam recuperado os restos mortais de seus entes queridos, não podendo lhes dar o devido sepultamento. Além disso, ressaltou que, a despeito de medidas judiciais e administrativas, havia uma recusa sistemática das autoridades em revelar as informações.
Em sua defesa, o Estado brasileiro salientou as medidas que já havia tomado para sanar o sofrimento dos familiares das vítimas e para revelar os fatos históricos do regime militar, com o pagamento de indenizações e a realização de ações para localizar e identificar os restos mortais das vítimas da repressão e para garantir o direito à memória e à verdade.
Na sentença, a Corte ressaltou que já havia considerado, em numerosos casos, “que os familiares das vítimas de violações dos direitos humanos podem ser, ao mesmo tempo, vítimas” e que “se pode presumir um dano à integridade psíquica e moral dos familiares diretos [mães, pais, filhas e filhos, esposas e esposos, companheiras e companheiros permanentes] de vítimas de certas violações de direitos humanos. Com base nisso, apesar de valorar as iniciativas do Estado para reparar a violação e, considerando que o Brasil não descaracterizou essa presunção nem realizou menções específicas, a Corte presumiu a violação do direito à integridade pessoal de 44 familiares diretos das pessoas desaparecidas e de Maria Lúcia Petit da Silva, que teve os restos mortais identificados.
Em relação aos familiares não diretos, com base nas declarações testemunhais, no parecer pericial e em outros documentos, o Tribunal considerou que houve violação do direito à integridade pessoal de 27, a maioria deles irmãos das vítimas. 24 familiares não diretos indicados como supostas vítimas faleceram antes do reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil e, por conta disso, o órgão não se pronunciou sobre tais. Outros 34 familiares não diretos também já haviam falecido à época da sentença, mas a Corte não tinha informações sobre a data da morte. O Tribunal determinou, então, que os familiares ou representantes legais dessas 34 pessoas apresentassem, num prazo de seis meses, documentação que comprovasse que a data de falecimento é posterior a 10 de dezembro de 1998, quando o Brasil reconheceu a competência do órgão.
Na decisão, a Corte destacou que “a violação do direito à integridade pessoal dos mencionados familiares das vítimas verificou-se em virtude do impacto provocado neles e no seio familiar, em função do desaparecimento forçado de seus entes queridos, da falta de esclarecimento das circunstâncias de sua morte, do desconhecimento de seu paradeiro final e da impossibilidade de dar a seus restos o devido sepultamento”. Ressaltou também que “a privação do acesso à verdade dos fatos sobre o destino de um desaparecido constitui uma forma de tratamento cruel e desumano para os familiares próximos”. Além disso, afirmou que a violação “se deve também à falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos fatos, à falta de iniciativas para sancionar os responsáveis, à falta de informação a respeito dos fatos e, em geral, a respeito da impunidade em que permanece o caso, que neles provocou sentimentos de frustração, impotência e angústia”.
Pontos resolutivos da sentença
Corte decide, por unanimidade:
- Admitir parcialmente a exceção preliminar de falta de competência temporal interposta pelo Estado.
- Rejeitar as demais exceções preliminares interpostas pelo Estado.
Corte declara, por unanimidade:
- As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção ocorridos no Brasil.
- O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das 62 vítimas apontadas na sentença.
- O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada [Maria].
- O Estado é responsável pela violação do direito consagrado no artigo 13 da Convenção, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos estabelecidos no artigo 8.1, em relação com os artigos 1.1 e 13.1, por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária, todo o anterior em prejuízo dos familiares indicados na sentença.
- O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos familiares indicados na sentença.
Corte dispõe, por unanimidade:
- Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação.
- O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja.
- O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares.
- O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido.
- O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em conformidade com o estabelecido na sentença.
- O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso.
- O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas.
- O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.
- O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma.
- O Estado deve pagar as quantias fixadas, a título de indenização por dano material, por dano imaterial e por restituição de custas e gastos.
- O Estado deve realizar uma convocatória, em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos do presente caso, ou mediante outra modalidade adequada, para que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença, os familiares dos oito camponeses apontados como vítimas pela Comissão Interamericana aportem prova suficiente que permita ao Estado identificá-los e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei nº 9.140/95 e da sentença.
- O Estado deve permitir que, por um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, os familiares dos senhores Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira (“Pedro Carretel”), Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam apresentar-lhe, se assim desejarem, suas solicitações de indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei nº 9.140/95.
- Os familiares ou seus representantes legais apresentem ao Tribunal, em um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente sentença, documentação que comprove que a data de falecimento das pessoas indicadas na sentença é posterior a 10 de dezembro de 1998.
- A Corte supervisionará o cumprimento integral desta Sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento de seus deveres, em conformidade ao estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma. Dentro do prazo de um ano, a partir de sua notificação, o Estado deverá apresentar ao Tribunal um informe sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento.
O juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas apresentou voto concordante e fundamentado, que pode ser lido ao final da sentença da Corte.
Cumprimento da sentença
A Corte Interamericana publicou um relatório de supervisão do cumprimento da sentença em 17 de outubro de 2014. Antes disso, em maio desse mesmo ano, já havia realizado uma audiência privada de supervisão.
Ponto resolutivo 9 (investigação)
À época do relatório de supervisão de cumprimento da sentença, duas ações penais relacionadas à Guerrilha do Araguaia já tinham sido iniciadas, e outras seis investigações estavam em andamento, sob comando do Ministério Público Federal (MPF) de diferentes estados.
Essas iniciativas, porém, encontraram resistência do Poder Judiciário do Brasil. A despeito do Ministério Público destacar que o “Brasil [estava] obrigado a apurar e punir os crimes contra a humanidade, como no caso dos autos, por força da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”, várias ações foram barradas logo de cara. Para decidir contra o andamento das iniciativas, juízes brasileiros afirmaram “impossibilidade jurídica” dos pedidos, que estariam “expressamente vedado[s] pela Lei de Anistia”, conforme a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADPF 153. Também afirmaram que os crimes apontados já estavam prescritos.
No relatório de 17 de outubro de 2014, a Corte Interamericana afirmou que essas decisões “desconhecem os alcances do decidido pela Corte na sentença deste caso e os parâmetros interamericanos em matéria de investigação, julgamento e punição dos responsáveis por graves violações aos direitos humanos”, destacando que a interpretação dos magistrados brasileiros da Lei de Anistia continuava “comprometendo a responsabilidade internacional do Estado” e perpetuando a impunidade. No texto, o Tribunal também afirmou que “de acordo com o Direito Internacional, que foi soberanamente aceito pelo Estado, é inaceitável que uma vez que a Corte Interamericana tenha proferido uma sentença o direito interno ou suas autoridades pretendam deixá-la sem efeitos”.
Até dezembro de 2019, a Força-Tarefa Araguaia (FT Araguaia) do Ministério Público Federal apresentou nove denúncias sobre crimes praticados no contexto da Guerrilha. São seis denúncias pelos assassinatos de nove vítimas, duas pelo sequestro e cárcere privado de seis membros da Guerrilha, e uma denúncia por falsidade ideológica. O coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura, conhecido “Major Curió”, é acusado em seis delas.
“Campeão” de acusações, o Major Curió, que completou 82 anos recentemente, foi recebido em maio de 2020 no Palácio do Planalto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), notório defensor do regime militar. As homenagens ao acusado de homicídios, sequestro e cárcere privado por parte do governo federal motivaram o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) a ingressar com um pedido de amicus curiae [em espanhol] perante à Corte Interamericana, solicitando a realização de uma audiência de supervisão do cumprimento da sentença. O Instituto Vladimir Herzog e o Núcleo de Preservação da Memória Política também assinam o pedido, que foi acatado pela Corte em 19 de maio. Até agora, porém, não houve realização de audiência.
Desde 2012, os integrantes da FT Araguaia e outros membros do Ministério Público Federal que denunciaram agentes da ditadura militar seguem lutando juridicamente pela responsabilização de atos criminosos cometidos no período. A argumentação central é de que os crimes denunciados representam atos de “lesa-humanidade” e o Direito Internacional e a decisão da Corte Interamericana determinam que esses não prescrevem ou são alcançados por anistia. Em especial nos casos de sequestro, os procuradores destacam que é um crime de natureza permanente e, portanto, imprescritível.
Dez anos após a decisão da Corte, a maior parte das vítimas do caso do Araguaia sequer tiveram investigação ou ação penal iniciada quanto às violações sofridas. A despeito da atuação do MPF em relação a algumas vítimas, nenhuma das denúncias apresentadas resultou em sentença, já que a interpretação da Lei de Anistia dada pelo STF em 2010 continua sendo um obstáculo para a responsabilização dos culpados. Logo após a decisão do Supremo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com recurso de embargos de declaração, que ainda está pendente de julgamento.
Em maio de 2014, o Psol protocolou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 320, com o objetivo de que o STF considere que a Lei da Anistia não se aplica aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos. Além disso, também tem a pretensão de que seja determinado que a normativa não se aplica aos autores de crimes continuados ou permanentes, como é o caso do desaparecimento forçado.
A ADPF, que evoca a condenação do Brasil perante à Corte Interamericana no caso da Guerrilha do Araguaia, recebeu, ainda em 2014, parecer parcialmente favorável do então Procurador-Geral da República (PGR), Rodrigo Janot. Em 10 de setembro de 2019, a então PGR, Raquel Dodge, solicitou prioridade na tramitação do processo. A ação, sob relatoria do ministro Luiz Fux, está parada no Supremo Tribunal Federal e a previsão é de que seu mérito seja julgado conjuntamente com os embargos de declaração da ADPF 153.
As ADPFs 153 e 320 podem ser consultadas no site do STF. As ações penais movidas pelo MPF podem ser consultadas no site Justiça de Transição, do MPF.
O Réu Brasil conversou com o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, que é membro dos grupos de trabalhos “Memória e Verdade” e “Justiça de Transição" do MPF. Especialista em justiça de transição, ele foi um dos declarantes propostos pela CIDH e pelos representantes no processo ante a Corte Interamericana. A entrevista foi concedida em 2 de dezembro de 2020.
Qual a importância e que impacto teve a sentença da Corte Interamericana no caso da Guerrilha do Araguaia?
Teve um impacto grande no Ministério Público Federal (MPF). Até então, a iniciativa por promoção da justiça era bastante limitada em razão do esforço de alguns procuradores, mas não tinha a adesão da cúpula da instituição.
Com a decisão da Corte, esse cenário se alterou, porque o MPF compreendeu que a decisão da Corte tem que ser cumprida. Não cabia mais a discussão exaustiva de seus fundamentos, porque ela é vinculante para todos os órgãos do Estado. Isso impulsionou a decisão de fazê-la cumprir, de ampliar as obrigações de casos criminais. Eu diria que esse foi um efeito importante no sistema de justiça.
Agora, infelizmente, no Poder Judiciário, pouco efeito teve. O Supremo Tribunal Federal continua sem apreciar, passados 10 anos, os efeitos dessa decisão [da Corte], em face da sua decisão na ADPF 153. Continua havendo um favorecimento da impunidade.
A atuação de vocês têm sido principalmente a partir de ações penais, mas há também outras vertentes de atuação?
Eu vou te sugerir o nosso site. Ali está tudo mais ou menos explicado, as várias frentes de atuação que a gente tem. Mas o que eu quero dizer é que essas frentes de atuação já existiam antes da decisão da Corte. A Corte reforça elas e dá esse poder argumentativo interno junto às distintas áreas da instituição.
Antes era limitada à PFDC [Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão], que já tinha o seu grupo de memória e verdade antes da decisão, mas mais áreas, o próprio gabinete do Procurador-geral da República vão abraçar o dever de cumprir a decisão em todas as suas dimensões.
Você enxerga alguma perspectiva de mudança nesse entendimento do Supremo? Tem o julgamento pendente de embargos de declaração da APDF 153, tem outra ADPF também relacionada ao tema, inclusive baseada na sentença da Corte…
Eu entendo que o Supremo vá mudar de opinião, mas sabe-se lá quando. Eu entendo que a saída política do STF tem sido não decidir. Eu não vejo nenhuma saída jurídica pro Supremo afirmar que não se cumpre decisão da Corte Interamericana no ambiente doméstico. Isso rasgaria a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a própria Constituição, em consequência.
O Supremo não fará isso, eu tenho convicção disso. Então a saída para o Supremo, se é que é uma questão política, que é uma hipótese, tem sido exatamente procrastinar ou adiar. Isso provoca um efeito extremamente negativo, em termos de reparação às vítimas, porque elas ficam indefesas. Ficam sem a questão da justiça, que é um direito delas. E as vítimas vão morrendo, os perpetradores idem.
Em especial no que toca à atuação do MPF, como você avalia o cumprimento das sentença pelo Brasil?
Eu avalio como um cumprimento bastante limitado. Bastante aquém do que os princípios boa-fé e do compromisso com o Direito Internacional dos Direitos Humanos impõe ao Estado.
Ponto resolutivo 10 (localização das vítimas)
Em 2011, o governo federal reformulou o Grupo de Trabalho Tocantins, criado a partir da Ação Ordinária nº 82.00.24682-5 e responsável por “coordenar e executar (...) as atividades necessárias para a localização, recolhimento e identificação dos corpos dos guerrilheiros e militares mortos no episódio” da Guerrilha. A iniciativa foi renomeada para Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), contando com atuação dos ministérios da Defesa, Justiça e Direitos Humanos.
Quando da publicação do relatório da Corte, em outubro de 2014, o GTA havia realizado 23 expedições na região, além de ter promovido escavações, exumações e testes de DNA. A iniciativa, porém, era alvo de críticas do Ministério Público Federal, que estava acompanhando os trabalhos e afirmou à época que “[era] preferível a suspensão das expedições, à manutenção dos trabalhos com a sistemática [então adotada]”. As deficiências e obstáculos na forma da condução das atividades do GTA também foram apontadas pelos representantes, que destacaram que os familiares das vítimas se organizaram, no segundo semestre de 2012, para não mais participar das missões.
Até 2015, quando Dilma Rousseff (PT) ainda era a presidente do Brasil, as expedições do GTA ocorriam anualmente, quase sempre no segundo semestre. Com o impeachment e o início do governo de Michel Temer (MDB), os trabalhos foram paralisados por burocracia e falta de verba, e nenhuma expedição ocorreu entre 2016 e 2017. As atividades foram retomadas em 2018, que foi o último ano de atuação do grupo.
Com a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, o Grupo de Trabalho, assim como as comissões interministeriais criadas para supervisionar atividades de buscas na região do Araguaia, foram extintas por decreto presidencial. Quando ainda era deputado, Bolsonaro ostentava em seu gabinete um cartaz escrito: "Desaparecidos do Araguaia. Quem procura [osso] é [cachorro]".
Além de encerrar os trabalhos de busca dos restos mortais das vítimas, contrariando a decisão da Corte Interamericana, o atual governo também criou impedimentos para o trabalho de outros grupos. Segundo informações do Tag Report, repercutidas pelo Blog do Noblat, pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que procuravam vestígios no Tocantins, “foram surpreendidos por fiscais do ICMBio que mandaram interromper o trabalho com um recado curto: as pesquisas estão suspensas por ordem de Brasília”.
Na última década, nenhuma nova vítima foi identificada entre os corpos que já haviam sido encontrados em anos anteriores.
Ponto resolutivo 11 (atendimento psicológico)
Em 14 de fevereiro de 2014, o governo brasileiro criou, por meio da Portaria Interministerial nº 93, um Grupo de Trabalho para planejar o oferecimento de assistência psicológica aos familiares das vítimas, conforme determinado pela sentença da Corte. Segundo manifestado pelos representantes, 36 vítimas demonstraram interesse em receber atendimento psicológico.
No relatório de outubro de 2014, a Corte Interamericana considerou que as diretrizes propostas pela portaria, caso cumpridas, atenderiam a decisão, mas cobrou “maior diligência e celeridade possível” do Grupo de Trabalho, considerando que já haviam passado quatro anos desde a sentença.
Em 19 de dezembro de 2018, o então ministro dos Direitos Humanos, Gustavo do Vale Rocha, publicou portaria que instituiu novo grupo de trabalho (GT) para “realizar estudos e elaborar metodologia com vistas a ofertar atendimento à saúde de vítimas e familiares, conforme a demonstração de seu interesse”. O GT englobava o caso Guerrilha do Araguaia e também o caso Favela Nova Brasília.
De acordo com Victória Grabois, familiar de três desaparecidos políticos e uma das familiares-vítimas do caso, alguns familiares solicitaram o atendimento médico e psicológico, mas nunca foram atendidos. “Eles criaram um Grupo de Trabalho, mas que nunca funcionou, esse GT só fazia planilha. Eu fui chamada à Brasília umas duas ou três vezes, eles ficavam apresentando que a gente podia ir pro SUS. Pra isso, a gente não precisa da Corte, qualquer brasileiro pode ser atendido”, afirma.
O Réu Brasil procurou a assessoria do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos para saber quais medidas foram tomadas para cumprir este ponto resolutivo. O órgão se limitou a responder que “o MMFDH está em tratativas com o Ministério da Saúde com a finalidade de discutir e operacionalizar a oferta de atendimento médico às vítimas do presente caso”.
Em resposta a um pedido de informação referente ao Caso Ximenes Lopes, o MMFDH manifestou-se sobre o cumprimento das determinações da Corte ligadas a questões de saúde de forma geral:
“A AI/MMFDH [Assessoria Especial de Assuntos Internacionais] iniciou, em novembro último, tratativas com o Ministério da Saúde para uma parceria sistemática voltada ao cumprimento de pontos resolutivos de sentenças da Corte IDH concernentes a questões de saúde, (...).”
Em sua sentença, a Corte também determinou o pagamento de US$ 7,5 mil para Elena Gibertini Castiglia, mãe de um dos desaparecidos do caso da Guerrilha do Araguaia, que por residir na Itália, não poderia usufruir do atendimento gratuito no Brasil. Ela faleceu em 2011, sem ter recebido o pagamento ordenado pela Corte. Em seu relatório de 2014, o Tribunal determinou que fosse efetuado o pagamento “com a brevidade possível”.
Decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-2) de 2 de setembro de 2015 determinou que o Estado brasileiro efetuasse o pagamento desse valor e também das demais indenizações devidas a Elena Castiglia. O montante, que ao todo chegava a US$ 55,5 mil (cerca de R$168,5 mil reais, na época da decisão), deveria ser destinado aos herdeiros da mulher.
Ponto resolutivo 12 (publicações)
O Brasil publicou as partes pertinentes da sentença no Diário Oficial da União e no jornal O Globo em 15 de junho de 2011. O Estado também disponibilizou a íntegra da sentença no site da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, bem como em formato de livro eletrônico no site do Centro de Documentação Virtual que compreende o acervo digital da Secretaria.
Ponto resolutivo 13 (ato público)
Em seus escritos à Corte após a sentença, os representantes informaram que, por pedido dos familiares das vítimas, o prazo para a realização do ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado estava sendo postergado. A demanda dos familiares, acatada pelo Estado, era de que o ato se realizasse somente depois do início concreto do cumprimento dos pontos relativos à investigação penal (9) e de busca, sistematização e publicação de toda a informação (16) sobre a Guerrilha do Araguaia.
Uma década após a sentença, ainda não houve a realização do ato. “Os familiares até hoje não aceitam, a gente só vai aceitar se minimamente alguns resolutivos da sentença forem cumpridos”, afirma a familiar-vítima Victória Grabois, em entrevista ao Réu Brasil.
Ponto resolutivo 14 (direitos humanos nas Forças Armadas)
Em seus escritos quanto ao cumprimento deste ponto, o Brasil informou que, em dezembro de 2011, o Ministério da Defesa em conjunto com as Forças Armadas, determinou a estruturação de um curso sobre direitos humanos, e que esse já estava sendo implementado de maneira “permanente e obrigatória” em todos os níveis hierárquicos. De acordo com o Estado, somente durante 2013 foram capacitados em cursos de formação em direitos humanos “6.885 oficiais, 19.096 soldados e aproximadamente 87.000 soldados que prestavam serviço militar inicial obrigatório”. Também afirmou que havia “a previsão de que, em um máximo de cinco anos, todos os efetivos das três Forças Armadas, terão se submetido ao programa pelo menos uma vez ao longo de sua carreira”.
A Corte Interamericana considerou que a elaboração das diretrizes gerais por parte do Ministério da Defesa constituía “uma ação importante para o fortalecimento das capacidades institucionais do Estado através da capacitação dos integrantes das Forças Armadas, em todos os níveis hierárquicos, sobre os princípios e normas de proteção dos direitos humanos”. A despeito disso, o órgão questionou a falta de provas por parte do Brasil quanto à efetiva implementação e alcance da medida, ponto levantado pelos representantes. Com base nisso, o Tribunal solicitou que o Brasil apresentasse “informação específica sobre a implementação dos cursos pelas distintas Forças Armadas em todos os níveis hierárquicos, assim como sobre seu caráter permanente e obrigatório”.
Questionado pela reportagem sobre o cumprimento deste ponto resolutivo, o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos respondeu o seguinte:
“Dentre várias iniciativas, destaca-se que, em 2015, foi realizada uma atualização do tema, com adequação dos módulos e da bibliografia estudada. A atualização do curso de Direitos Humanos resultou na publicação da Portaria nº 182-EME, de 11 de agosto de 2015, que aprovou o Programa de Ética Profissional Militar do Exército Brasileiro, inserido nos conteúdos programáticos dos cursos de formação de oficiais e praças e dos programas de instrução militar. Os assuntos abordados pelo Programa de Ética Profissional Militar com ênfase em Direitos Humanos, nos módulos I, II e III são: diretrizes da Organização das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos; jurisprudência da Corte IDH, acordos e tratados de Direitos Humanos; legislação sobre Direitos Humanos internalizada no arcabouço jurídico nacional, suas regulamentações e abrangências; e noções gerais do Direito Internacional dos Conflitos Armados (Direito Internacional Humanitário).”
Ponto resolutivo 15 (tipificação do desaparecimento forçado)
Cumprindo a determinação da sentença, a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas foi promulgada pelo Brasil em 11 de maio de 2016, por meio do Decreto nº 8.766, assinado pela então presidente Dilma Rousseff.
A tipificação penal do crime de desaparecimento forçado, porém, permanece em aberto. Ao longo dos últimos anos, inclusive antes da sentença da Corte, uma série de projetos de lei que incluem essa tipificação foram apresentados no Congresso brasileiro, como o PL 301/2007 e o PL 6830/2006. Há também o PL 4038/2008, de autoria do Poder Executivo, que foi apensado ao PL 301/2007. Em agosto de 2013, o plenário do Senado aprovou o PLS 245/2011, de autoria do senador Vital do Rêgo (MDB/PB), remetendo o projeto à Câmara dos Deputados.
Na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, graças a um parecer do então deputado federal Jair Bolsonaro, foi acrescentado um destaque ao projeto proposto pelo Senado, em que a imprescritibilidade do crime de desaparecimento forçado passou a ter como ressalva o alcance da Lei de Anistia, o que contraria o entendimento da Corte Interamericana e da jurisprudência internacional. O projeto de lei está parado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara desde 2018.
Paralelamente a isso, tramita no Senado Federal o PLS 236/2012, de autoria do senador José Sarney (MDB/AP). Conhecido como “Novo Código Penal”, o projeto inclui uma seção de “crimes contra a humanidade”, tipificando ali o crime de desaparecimento forçado. As últimas movimentações do PLS ocorreram em 2019.
Ponto resolutivo 16 (publicação de informações)
Em relação à obrigação de “continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia”, o Brasil apresentou em seus escritos à Corte a criação de um site da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a criação e a entrada em funcionamento da Comissão da Verdade. Além disso, mencionou a criação do “Projeto Memorial da Anistia Política do Brasil”, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que contaria com um Centro de Documentação que permitiria aos interessados ter acesso aos documentos produzidos pela Comissão
Em seus escritos, os representantes das vítimas questionaram as medidas apresentadas pelo Estado, afirmando não terem recebido informação clara e concreta sobre o ocorrido, e destacando que a pouca informação que tiveram contribuiu pouco ou nada ao já conhecido. Ressaltaram também haver uma negligência ou passividade por parte do Estado quanto à sistematização e publicação de informações, que poderiam ser chaves para a investigação dos fatos e a localização dos corpos. Por fim, apontaram que as comissões e organismos criados pelo Brasil eram limitados e destinados ao fracasso pela falta de independência financeira e infraestrutura.
A despeito disso, a Corte Interamericana valorou as iniciativas brasileiras e considerou a obrigação parcialmente cumprida, solicitando que o Estado desse novas informações em relatórios futuros.
Parte das iniciativas apresentadas pelo Brasil, porém, não se sustentaram.
A versão atual do site da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, que foi originalmente criado com o “objetivo de sistematizar e garantir o acesso público à informação relacionada à Guerrilha do Araguaia”, só apresenta relatórios de atividade dos anos de 2017 a 2020. Nem sequer o livro “Direito à Memória e à Verdade”, produção da CEMDP, está disponível. O Memorial da Anistia Política ainda não foi concluído. Em 2019, a ministra Damares Alves anunciou que a obra, que já custou R$ 28 milhões, não será concluída.
Questionado pela reportagem sobre o cumprimento deste ponto resolutivo, o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos respondeu em nota:
“A publicação dos dados sobre a Guerrilha do Araguaia ocorreu a partir de diversas fontes, tanto estatais, quanto não estatais. Exemplificativamente, cita-se o documento “Publicações acerca da Guerrilha do Araguaia”, que contém exemplos do esforço do Estado brasileiro em tornar públicas todas as informações disponíveis sobre o caso, por meio de Notas Públicas e notícias da Imprensa Oficial, entre outros meios.
Também se destaca o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que coletou e recebeu grande número de documentos, arquivos e informações, que se encontram sistematizadas em seu Relatório Final, entregue à Presidente da República em 10 de dezembro de 2014.
No que concerne ao projeto de implantação do Memorial da Anistia Política do Brasil, cumpre informar que o Termo de Cooperação nº 01/2009 teve sua vigência encerrada em 31 de dezembro de 2018. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) é a entidade responsável pela execução do citado Termo. A prestação de contas do referido instrumento encontra-se em fase final de análise por parte da Comissão de Anistia.”
Além da sistematização de informações sobre a Guerrilha do Araguaia, esse ponto resolutivo da decisão da Corte também incentivou que o Brasil adotasse “as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza que sejam necessárias para fortalecer o marco normativo de acesso à informação, em conformidade com os parâmetros interamericanos de proteção dos direitos humanos”. Apesar de não ser uma obrigação propriamente, o Brasil sancionou, em novembro de 2011, a Lei 12.537, conhecida como “Lei de Acesso à Informação”.
Ponto resolutivo 17 (indenizações)
No relatório de outubro de 2014, a Corte Interamericana considerou que o ponto da sentença que versa sobre indenizações foi parcialmente cumprido pelo Brasil. Em seus escritos, o Estado informou o pagamento das indenizações a título de dano material e imaterial a favor de 39 dos familiares-vítimas que se encontravam vivos. Além disso, por meio de depósitos judiciais realizados em processos sucessórios ou por ações de cumprimento de obrigação internacional, destinou indenizações a 18 herdeiros de vítimas falecidas. Os montantes pagos pelo governo brasileiro variam entre as vítimas.
De acordo com Victória Grabois, uma das vítimas-familiares do caso, o Estado finalizou o pagamento das indenizações pecuniárias, restando apenas questões relacionadas a processos sucessórios de pessoas já falecidas.
Questionado pela reportagem sobre a finalização do pagamento das indenizações, o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos respondeu em nota, que não deixa claro se os pagamentos foram finalizados:
“O Brasil cumpriu o pagamento das indenizações por danos materiais e imateriais em favor das 39 pessoas citadas na sentença. No que tange aos familiares-vítimas com vida à data da sentença ou do pagamento, mas que não foram localizados, o Estado publicou convocatória no DOU em 1º de abril de 2015, como medida para suprir a carência de informações sobre os familiares-vítimas. A respeito dos familiares-vítimas que faleceram antes da sentença ou do pagamento, foram ajuizadas ações de cumprimento de obrigação internacional (ACOI), tendo sido realizados os pagamentos em todas. Quanto aos nove beneficiários em relação aos quais se identificou ação de inventário preexistente, o Estado já realizou o depósito da quantia em todas as nove ações.”
No relatório de 2014, o Estado ainda não havia informado o pagamento a título de custas e gastos e essa obrigação continuava pendente. De acordo com a decisão, o Brasil deveria pagar um montante total de US$ 45 mil ao Grupo Tortura Nunca Mais, à Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo e ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil).
Somente em março de 2019, o Estado efetivou o pagamento de US$ 25 mil ao Cejil. Segundo Victória Grabois, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ também recebeu o valor devido, mas a Comissão de Familiares não, por não ter CNPJ registrado.
Ponto resolutivo 18 (camponeses)
O Estado brasileiro publicou no jornal O Globo e no Jornal do Pará, em 24 de novembro de 2011, a convocatória para que os familiares dos oito camponeses apontados como vítimas pela Comissão Interamericana aportassem prova suficiente que permitisse sua identificação.
Dos oito, o Brasil possivelmente identificou dois: um dos indicados pela CIDH, “Josias Gonçalves de Souza”, foi identificado e recebeu anistia em abril de 2015, junto com outros camponeses. No relatório de 2014, além de fazer menção a Josias, o Estado também afirmou ter identificado “Sandoval”, mas ressaltou que faltavam elementos para confirmação.
A reportagem questionou o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos se algum camponês foi identificado após o relatório da Corte Interamericana. O órgão não respondeu.
Ponto resolutivo 19 (vítimas não identificadas)
Em 23 de janeiro de 2013, o Brasil publicou convocatória no jornal O Estado de S. Paulo para que os familiares de Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira (“Pedro Carretel”), Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho apresentassem solicitações de indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei dos Desaparecidos Políticos.
De acordo com os representantes, os familiares de Pedro Alexandrino apresentaram solicitação perante à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em julho de 2013, o que não foi mencionado pelo Estado em seus escritos. A despeito disso, a Corte considerou a obrigação cumprida.
A reportagem questionou o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos se mais alguma vítima foi identificada. O órgão não respondeu.
Ponto resolutivo 20 (falecimento de familiares)
Os representantes apresentaram comprovação de que cinco dos 38 familiares das vítimas faleceram depois do reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil. Consueto Ferreira Callado, Ermelinda Mazzaferro Bronca, Gerson da Silva Teixeira, Hilda Quaresma Saraiva Leão e Maria de Lourdes Salazar e Oliveira passaram, portanto, a constar como vítimas no âmbito do caso perante o Tribunal, e a obrigação foi dada como cumprida.
Outros desdobramentos
Comissão Nacional da Verdade
Em suas demandas perante à Corte durante a tramitação do caso, os representantes das vítimas solicitaram que o Tribunal determinasse a criação de uma Comissão da Verdade, que cumprisse “com os parâmetros internacionais de autonomia, independência e consulta pública para sua integração” e que fosse “dotada de recursos e atribuições adequados”. Quanto ao projeto de Comissão que à época tramitava no Congresso Nacional, os representantes apresentaram preocupações quanto a sua independência e credibilidade. Apesar de não determinar como obrigação, a decisão da Corte Interamericana incentivou que o Brasil efetivasse a criação do mecanismo.
O projeto que estava em tramitação quando da sentença da Corte foi aprovado, se transformando na Lei 12.527/2011, sancionada no dia 18 de novembro de 2011. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi oficialmente instalada com sete membros em maio de 2012 e atuou até dezembro de 2014, quando apresentou seu relatório final e foi extinta.
A CNV constatou 434 mortos e desaparecidos políticos pelo regime militar, responsabilizando, ao todo, 377 agentes da repressão pelos crimes, parte deles relacionados à Guerrilha do Araguaia. Em seu relatório, o órgão dedicou um capítulo e quase 50 páginas aos fatos relacionados à Guerrilha.
Entre as recomendações propostas pela Comissão Nacional da Verdade está a responsabilização “dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos [da Lei de Anistia]”.
Outras anistias no Araguaia
A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu, entre 2009 e agosto de 2015, anistia para 85 camponeses do Araguaia, dentre os 333 pedidos julgados até então. Parte dos pagamentos de indenizações a essas vítimas foi travada graças a ação movida pelo advogado João Henrique Nascimento de Freitas, que questionou os reconhecimentos.
Ex-assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro (atualmente PSL-RJ), quando esse era deputado estadual no Rio de Janeiro, Freitas tornou-se presidente da Comissão de Anistia em março de 2019. Em fevereiro de 2020, sob a presidência de Freitas, a Comissão negou 307 pedidos de camponeses do Araguaia, com direito a voto do relator em defesa da repressão.
Em 2014, antes da ascensão de Bolsonaro ao poder, a Comissão concedeu anistia a 13 indígenas da etnia Suruí, que teriam sofrido violências cometidas pelo Exército durante as operações de combate à Guerrilha do Araguaia. O reconhecimento representou uma mudança no entendimento acerca da participação indígena no caso, que eram considerados colaboracionistas e pela primeira vez foram considerados vítimas do episódio.
Saiba mais
Oficial
- Relatório de admissibilidade da CIDH
- Demanda da CIDH para a Corte
- Escrito de Solicitações, Argumentos e Provas (ESAP) dos representantes
- Contestação do Brasil
- Alegações finais dos representantes
- Alegações finais da CIDH [em espanhol]
- Alegações finais do Brasil
- Íntegra da sentença
Outros
- O primeiro ano após a sentença no caso Guerrilha do Araguaia (ConJur)
- Entenda o passo a passo e as consequências da Lei da Anistia, que completa 40 anos (Folha de S. Paulo)
- A responsabilidade internacional do Brasil em face do controle de convencionalidade em sede de direitos humanos: conflito de interpretação entre a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal quanto a Lei de anistia (Revista de Direito Internacional)
- Lei da Anistia: a condenação do Brasil pela OEA e o silêncio do Supremo (Jota)
- STJ manda TRF-1 se manifestar sobre prescrição de crime de sequestro durante a ditadura (Folha de S. Paulo)
- Guerrilha do Araguaia combate em silêncio (Memorial da Democracia)
- Entrevista do Réu Brasil com Rafael Schincariol, ex-membro da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e do Grupo de Trabalho Araguaia
Notas do autor
- As informações apresentadas neste site sobre o Caso Gomes Lund/Guerrilha do Araguaia foram essencialmente extraídas da sentença da Corte Interamericana. Também há informações colhidas no relatório de admissibilidade da CIDH, nos escritos de submissão do caso à Corte e nos processos judiciais ligados ao caso. Informações de contexto também foram colhidas nos textos, reportagens e relatórios linkados no texto ou listados em “saiba mais”.
- As informações sobre o cumprimento da sentença foram colhidas no relatório de supervisão da Corte Interamericana, nos processos judiciais ligados ao caso, no Portal da Transparência, nos textos e reportagens listadas em “saiba mais” e nos textos linkados. Também foram colhidas informações junto à assessoria de comunicação do MMFDH (em nota de 10 de dezembro de 2020) e em entrevistas com o procurador do MPF Marlon Weichert, com o ex-coordenador da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e do Grupo de Trabalho Araguaia, Rafael Schincariol, e com a familiar-vítima e fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ Victória Grabois.
- No trecho em que são apresentados os pontos resolutivos determinados pela Corte, são omitidas referências a parágrafos da sentença e feitas adaptações para melhor entendimento.
Foto em destaque: Agência Pública