O Réu Brasil conversou com a promotora Eliane de Lima Pereira, assessora de Direitos Humanos e Minorias do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) sobre o cumprimento da sentença do Caso Favela Nova Brasília e a implicação do MP-RJ no processo. Ela é autora de artigo, publicado na Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (AMPERJ) sobre o papel do órgão no cumprimento.

Para promotora, Caso Favela Nova Brasília tem sido prioridade para o MP-RJ - Foto: Reprodução

Em relação aos inquéritos. Dois estão tramitando e um foi arquivado, é isso?

Isso. São dois casos, um com os fatos de 94, outro de 95 e a sentença determina que a gente continue no processamento dos casos de 94, porque já tinha havido denúncia em razão dos homicídios, mas não tinha havido denúncia em relação aos crimes de estupro. Nós seguimos adiante com os homicídios, houve pronúncia, inclusive. Isso tudo depois da sentença. Nesse caso, o primeiro avanço foi essa continuidade nos processos de 1994, dos homicídios.

[Em relação aos casos de violência sexual] nós trouxemos a perita mais especializada em Protocolo de Istambul, que é a normativa internacional para detecção de casos de tortura, ainda que torturas com mais dificuldades de detecção, ainda que passados muitos anos, como era o caso. A gente trouxe essa pessoa, uma perita da Colômbia. Quer dizer, foi todo um envolvimento do Ministério Público do Rio de Janeiro, que está absolutamente implicado no cumprimento dessa sentença.

Nós estamos fechando aqui uma gestão do atual procurador-geral, agora no final do ano. O procurador-geral Eduardo Gussem tomou posse em janeiro de 2017, e nós tivemos a prolação da sentença em fevereiro [de 2017], mas a intimação é de maio. Então, eu diria que esse foi o trabalho que mais se destacou na Assessoria [de Direitos Humanos e Minorias] durante esses quatro anos, pela enormidade, pela complexidade e pela implicação que a gente teve em relação à sentença.

Então, te respondendo em relação aos crimes. Nós continuamos com os homicídios de 1994. Denunciamos, houve um investimento muito grande para que essa denúncia fosse de fato feita. Ela foi recebida e o procedimento está nesse andamento mais dificultado pelas razões da pandemia, que trouxe uma série de dificuldades.

Em relação aos crimes de 1995, a gente não conseguiu... e aí não falo por mim, porque não fiquei a cargo da análise desses procedimentos, para saber se era o caso ou não de oferecimento de denúncia. O que eu posso te dizer é que houve uma reiteração do arquivamento proposto, em razão da total falta de subsídios para a apresentação da denúncia.

Em relação a esses dois pontos, foi enfrentada a questão da prescrição. Muito bem enfrentada a meu ver, considerando que tem toda uma jurisprudência. E [foi] determinado no próprio documento de interpretação de sentença, apontando no sentido de que nenhum episódio, nenhum obstáculo de ordem processual... No caso, o reconhecimento da prescrição nem é processual, mas a gente pode interpretar de uma forma extensiva, que isso não poderia ser empecilho para o cumprimento da sentença.

Passando para as medidas de não repetição. Em relação ao ponto 15, que determina a apresentação de relatório com dados relativos à morte por intervenção policial. Houve algum avanço?

A gente está cobrando isso, mas ainda não temos uma solução efetiva, porque isso naturalmente não depende da gente, depende das polícias. Uma coisa que dificultou o cumprimento foi a extinção da Secretaria de Segurança Pública, porque a gente tinha um órgão para fazer interlocução e acaba tendo que falar com as duas polícias, que hoje são duas secretarias. Do ponto 15 eu poderia te dizer isso.

Eu posso te dizer que muita articulação foi feita e vem sendo feita para dar cumprimento.

Em relação ao ponto 16, que determina que, em casos de crimes com suposta participação policial, a investigação seja tocada por um órgão diferente do órgão do policial, houve algum avanço?

Sim. Isso hoje está até inclusive decidido, no bojo da ADPF 635 [sobre operações em comunidades do RJ]. Eu diria que esse ponto, em certa medida, não há o que se discutir. A gente tem não só a sentença [da Corte], mas também tem essa decisão judicial do Supremo Tribunal Federal determinando que assim seja.

O ponto 17 fala de metas e políticas de redução da letalidade policial no RJ, que na verdade aumentou no último ano…

A gente tem um inquérito civil, da letalidade, que é presidido por membros do Gaesp [Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública]. Está em curso e, de fato, não houve apresentação, ainda, por parte do Executivo, das duas secretarias, para apresentação do plano. A gente também continua em tratativas.

Após o encerramento do inquérito, algumas coisas no bojo desse inquérito podem acontecer, como a expedição de recomendação, ou a mesma a propositura de uma ação civil pública. É um inquérito sobre a letalidade policial, que a gente vem acompanhando, tem todos esses dados. Tem estudos do nosso centro de pesquisa, apontando que houve um aumento. São dados do ISP [Instituto de Segurança Pública do RJ], nem precisava a gente ter dados aqui, mas a gente tem toda uma análise bem crítica em relação aos números do ISP. O ISP traz o dado quantitativo, de uma maneira geral.

O ponto 18 determina a implementação de curso ou programa permanente sobre atendimento a mulheres vítimas de violência sexual para policias militares, civis e profissionais de saúde. Algum avanço ocorreu?

Existe um inquérito presidido pelo Gaesp, que tem provocado… Até na semana passada a gente teve uma reunião com uma delegada da Polícia Civil, para falar sobre isso, e eles estão no esforço do cumprimento. Aí são as polícias, e as 'saúdes', nas três esferas.

Isso também é à nível de Brasil. São dois pontos só que são destinados exclusivamente para o Rio de Janeiro. Esse ponto é destinado a todo Brasil. A gente inclusive checou, porque entende que os órgãos do governo federal deveriam fazer uma articulação para que essas capacitações aconteçam.

Uma articulação que já foi feita foi com a Polícia Civil, inclusive para falar sobre os programas, do que a gente entende efetivo, do que não seria efetivo. Isso tem sido uma conversa boa, nesse aspecto.

O ponto 19 fala em medidas para permitir que familiares e vítimas participem efetivamente das investigações. Há uma resolução do CNMP sobre o assunto. Essa resolução é suficiente?

Eu acho que sempre pode ser aprimorada. Inclusive, eu acho que existe toda uma questão do tratamento à vítima, e de quem é essa vítima, que tem uma conotação no sistema interno, e tem outra no Sistema Interamericano. O conceito de vítima no Sistema Interamericano é absolutamente estendido. Familiares de vítimas são consideradas vítimas, sofreram violação dos seus direitos humanos.

Eu acho que sempre é um avanço, mas diria para você que a gente ainda precisa caminhar. Precisa aprimorar esses mecanismos de participação, isso é quase que um consenso.

Existem correntes que falam hoje da questão do tratamento à vítima, com um recorte muito específico, da vítima do crime patrimonial. Essa vítima é vítima, não há dúvidas. Mas se a gente está falando do crime mais grave que existe, que é o homicídio, a gente tem dados que apontam que essas vítimas tem um perfil etário, tem um perfil racial, tem todo um perfil que precisa ser atendido.

O que eu quero dizer, é que todo atendimento e atenção à vítima não podem ser seletivos, de uma minoria desses crimes, e não necessariamente dos mais graves. Então é por isso que a gente precisa ter uma estratégia mais abrangente, mais alargada. E não ter uma perspectiva de vingança, mas com uma outra ideia, muito mais focada na reparação lato sensu.

O ponto 20 determina a abolição dos termos “oposição” e “resistência” e uniformização do termo “lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial”. Uma lei de 2020, porém, manteve o termo ‘oposição’. Isso se manteve, então?

Sim, exatamente, isso se manteve. Mas assim, no Ministério Público – porque são vários sistemas –, a gente evidentemente guarda a utilização dos termos corretos. Isso é super importante, a terminologia, ela carrega um significado. Agora, mais do que isso, a gente tem que procurar entender, que à época, 1994 e 1995, e muitos anos depois, a gente tinha uma peça chamada auto de resistência, que era basicamente uma peça burocrática para chancelar... Claro que podia ter ali um caso de legítima defesa do policial, mas era muito utilizada para legitimar, dar um suporte burocrático para os casos de homicídio pela ação de agentes do Estado.

A gente está atento em relação a isso, e tem utilizado, no âmbito do Ministério Público, tem tido um rigor em relação à utilização dos termos.

Essa parte da lei estadual não está na alçada de vocês…

Perfeito. Essa adequação não pode ser utilizada por [apenas] parte de quem está no percurso da persecução penal, tem que ser uma coisa uniformizada. Inclusive para a questão de compilação de dados, enfim. Tem toda uma necessidade.

De uma perspectiva mais ampla, você acredita que há garantias de não repetição de que os acontecimentos de 1994 e 1995 não vão se repetir?

Não há garantias, sendo bem honesta. Eu sempre digo o seguinte: toda sentença da Corte, no primeiro ponto resolutivo [de determinações] diz mais ou menos que 'essa sentença por si só configura um ato de reparação'.

O Ministério Público se vê implicado nesses fatos, porque falhou, com todas as letras, ainda que seja difícil essa minha fala, mas é uma fala honesta e comprometida. O Ministério Público falhou no exercício do controle externo da atividade policial, que é algo que vem de forma mais marcada depois da Constituição de 1988, e tem sido feito todo um esforço, não só do MP/RJ. Por exemplo, só em relação a essa temática, a gente tem três resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público.

O exercício efetivo do controle externo da atividade policial é um desafio imenso. O MP se percebe, sim, responsável pelos fatos que deram origem à sentença. Ele não é o único responsável. Esses crimes foram perpetrados pelos agentes do Estado, o Ministério Público falhou quando não conseguiu apurar, não conseguiu exercer ativamente o controle externo da atividade policial, e teve a chancela do Poder Judiciário.

Foi feito um exercício muito profundo de apropriação desses casos, de reconhecimento, reparação, para que a gente pudesse fazer o nosso dever de casa. E eu falo nosso, Ministério Público. Tudo que estava no alcance do MP implementar, foi implementado, com muito esforço.

Esse exemplo do oferecimento da denúncia nos casos de estupro é muito ilustrativo. A gente se capacitou. Buscou saber qual era o melhor trabalho, o melhor serviço de perícia especializado em Protocolo de Istambul. E ofereceu a denúncia, a denúncia foi recebida, está prosseguindo.

Em relação aos pontos resolutivos que dizem respeito à não repetição, a gente tem caminhos e todos esses caminhos estão sendo buscados. E tem havido um investimento muito grande nesses caminhos. Existem pontos que precisam, inclusive, de proposta legislativa, que a gente não tem acesso. A gente tem possibilidade de conseguir isso, muitas vezes, através de uma boa articulação.

A gente sabe que a situação do Rio é uma situação difícil. A gente elegeu um governador, em 2018, que tinha todo um discurso de não cumprimento da sentença, ainda que ele não falasse na sentença. Toda uma perspectiva de segurança pública que se contrapõe ao que determina a sentença. O que eu quero dizer, é que o MP precisa fazer muito esforço para se manter nos trilhos – que são os trilhos constitucionais, diga-se de passagem. Para que essas políticas se exerçam dentro desses estândares. Eu estou falando isso tudo para dizer que a gente caminhou, dentro do que foi possível caminhar.

Em relação à medida do ato de reconhecimento. O MP está envolvido?

A gente tem feito as articulações necessárias, que passam pela Procuradoria-Geral do RJ, temos feito esforços no sentido de procurar formas de cumprimento.

Agora, não preciso dizer que o momento é delicadíssimo. Como eu começava a falar, a gente elegeu um governador com essas características. O governador está afastado, a gente tem o vice-governador em exercício. Enfim, são situações bem delicadas, eu diria precárias. Isso tem dificultado esse agendamento.

Que eu considero importantíssimo, diga-se de passagem. Eu acho que essas medidas, que são basicamente de reparação simbólica, que é a colocação das placas, sobretudo, a publicação da sentença, que foi parcialmente cumprida, e o ato de reconhecimento, nós consideramos absolutamente importante.

Tem algo que gostaria de acrescentar?

Isso [o cumprimento da sentença] foi, nos últimos quatro anos, uma prioridade para o Ministério Público. A gente realmente deseja que com a sucessão do atual procurador-geral, continue a ser. Porque foi um trabalho muito árduo, interno e externo, porque na medida que a gente se implica com os fatos, a gente tem um trabalho duro internamente para fazer. Externamente também, e que, na minha perspectiva, é bastante promissor. [Quero] expressar meu desejo de continuidade, nesse aspecto.