Dos dez casos em que o Brasil foi julgado perante a Corte Interamericana, uma mesma organização foi representante das vítimas em seis: Ximenes Lopes, Nogueira de Carvalho, Escher, Garibaldi, Povo Xucuru e Empregados da Fábrica de Fogos. Fundada em 1999, pela brasileira Sandra Carvalho e pelo americano James Cavallaro – que também deu entrevista para este projeto –, a Justiça Global é uma das principais organizações de proteção e promoção dos direitos humanos do país.

Logo quando a pesquisa para o Réu Brasil foi iniciada, no começo do segundo semestre de 2020, eu busquei a Justiça Global e o Cejil – outra organização peticionária recorrente – para esclarecer algumas dúvidas iniciais sobre justiça internacional e Sistema Interamericano. As duas entidades, somadas, tiveram participação em todos os casos brasileiros que chegaram à Corte. A conversa com Thais Detoni, advogada do Cejil, está disponível aqui.

Pela Justiça Global, quem conversou comigo foi a advogada Raphaela Lopes, mestre em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que trabalha na organização desde 2015. Por lá, ela atuou diretamente no caso da explosão na Fábrica de Fogos, última sentença da Corte contra o Brasil. A advogada Andressa Caldas, que trabalhou por 13 anos na organização fundada em 1999, também deu entrevista para o site.

A conversa com Raphaela, concedida em 15 de setembro, você lê abaixo.

Justiça Global é uma das principais organizações peticionárias do Sistema Interamericano no Brasil - Foto: Arquivo pessoal

Como o Brasil costuma lidar com o Sistema Interamericano?

Um dos problemas que a gente identifica em relação às regras do Sistema Interamericano, e principalmente aos pronunciamentos da Corte Interamericana, é uma baixa implementação, uma baixa adoção disso pelas cortes brasileiras. E não só sobre os pronunciamentos em relação aos casos brasileiros, mas os parâmetros interamericanos de uma forma geral, de como a Corte interpreta certos direitos na Convenção Americana, o que é vinculante.

No Estado brasileiro, em especial no âmbito do Supremo Tribunal Federal, isso é muito pouco utilizado. Se você pegar outros países das Américas, esses parâmetros realmente integram o sistema de justiça de uma forma muito mais orgânica do que aqui no Brasil. No Peru, na Colômbia, Argentina.

Eu acho que existe uma lacuna em relação a formação dos juízes, dos desembargadores, dos ministros. Mas eu também acho que existe uma falha nossa, enquanto sociedade civil, enquanto assessoria jurídica, inclusive em comunicação mesmo. A gente está trabalhando de forma a publicizar, a divulgar e a amplificar esses entendimentos, esses parâmetros. Então todas essas iniciativas que visam democratizar, tornar esses parâmetros mais conhecidos por parte da sociedade, são iniciativas muito muito importantes, e que vem pra preencher uma lacuna que existe.

Por que vocês levam casos ao Sistema? Por que vocês olham um caso específico e resolvem peticionar?

Quando a gente está falando de levar um caso para a Comissão Interamericana, ou atuar num caso que está na Corte, a gente está navegando numa coisa chamada litígio estratégico. O litígio estratégico é um conceito que direciona o seu olhar para os casos. É tentar entender, a partir das possibilidades que existem para atuação, de que forma determinado caso se relaciona com pautas políticas mais amplas, de que forma essas pautas podem ser colocadas em questão naquele caso, e de que forma aquele caso pode trazer avanços em relação àquelas pautas.

E aí por que um caso e não outro? É uma reflexão que leva em conta diversos elementos, que vão desde as circunstâncias do caso, a situação específica, os direitos que estão em questão ali. A gente avalia de que forma os organismos do sistema de justiça [interno] responderam aquele caso. A gente avalia de que forma os advogados, os assessores jurídicos, ou a defensoria, se comportou também. Enfim, uma série de elementos que trazem para gente uma reflexão sobre se realmente vai se conseguir, com esse caso, avançar em alguma questão pauta política, em algumas políticas públicas.

A Corte Interamericana é um órgão muito interessante em relação aos outros órgãos de direitos humanos que emitem julgamentos vinculantes em relação a direitos humanos. Ela tem uma diferenciação ao sistema europeu, por exemplo, porque a Corte emite sanções, traz condenações que transcendem aquele caso concreto. Ela sai um pouco do caso concreto, para tentar atentar políticas mais amplas, que consigam de alguma forma resolver aquela violação que tem um fundo mais literal. Todos esses elementos se relacionam, eles estão em jogo quando a gente decide ou não levar um caso ao sistema interamericano.

Cada caso também tem seus requisitos formais, essa é também uma análise que a gente faz. Se o caso está no momento, se está dentro do escopo, dos requisitos formais da Comissão.

O último caso que a gente apresentou na CIDH foi o do rompimento da barragem de Fundão. Também há um outro elemento: normalmente a decisão de levar um caso pra Comissão, nunca é tomada pela Justiça Global sozinha, no seu escritório com ar condicionado no Rio de Janeiro. É uma decisão conjunta, que leva em conta principalmente a opinião dos parceiros locais, das organizações de base, que também participam desses litígios. Vem de uma recepção conjunta, a decisão de que está na hora de levar esse caso para alguma outra instância, porque aqui no Brasil já está chegando no limite e a gente não está conseguindo ultrapassar.

Quais são os critérios para a Comissão aceitar um caso e para a Comissão enviar um caso para a Corte, principalmente? Há os critérios de admissibilidade, mas no campo mais subjetivo, quais são os critérios? É também nessa lógica do litígio estratégico?

É difícil responder essa pergunta, porque essa é uma informação que a gente também não fica sabendo. O que a gente tem como base, é que a Comissão, e a Corte também, têm temas que querem avançar. Em alguns momentos, têm casos que caem melhor dentro de uma agenda de temas que a Corte e a Comissão escolhem que devem ter um desenvolvimento, devem ter um pronunciamento a respeito.

Mas a gente não tem acesso a essa inflexão, a gente não sabe exatamente que elementos norteiam a opinião da Comissão. Tem casos nossos que estão parados há um tempão, que não caminham, e talvez tenha a ver com isso, são casos que às vezes estão fora da agenda da CIDH, que ela não quer mexer agora.

O ex-juiz Cançado Trindade destaca em suas obras que somente os Estados e a Comissão podem peticionar perante a Corte, e faz uma defesa de que isso seja ampliado. Na sua visão, esse acesso deveria ser ampliado?

Eu nunca tive acesso a esses textos, nessa questão específica. Pra gente chegar até a Corte, temos que passar pela Comissão. Eu particularmente tenho a impressão de que se determinada questão fosse levada à Corte, talvez tivéssemos um resultado diferente. Eu acho que poderiam haver hipóteses em que os peticionários, que a sociedade civil na verdade, pudesse recorrer diretamente à Corte.

Por exemplo, hoje, a gente tem as medidas cautelares outorgadas pela Comissão, e as provisionais que são outorgadas pela Corte, em que a regra geral se manifesta também. A Corte só pode emitir medidas provisionais se forem requeridas pela Comissão, que por sua vez só vai pedir se as cautelares não estiverem funcionando. Eu acho que deveriam haver hipóteses em que os peticionários pudessem recorrer diretamente à Corte e não tivessem que passar pelo crivo da Comissão, como no caso das medidas provisionais.

Acho que concordo com o Trindade, pelo menos a partir de uma perspectiva da sociedade civil e não pensando em sentidos estreitos, em termos de efetividade. Pensando só na possibilidade e de como as medidas que são outorgadas pela Corte, sem dúvidas nenhuma, tem muito mais peso do que as da Comissão. A linguística dá conta dessa diferença. A Comissão recomenda e a Corte determina. Apesar de nenhuma delas ter poder de política para fazer cumprir essas decisões, os Estados têm mais deferência à Corte do que à Comissão.

[Por outro lado], se a Corte começasse a emitir muito mais decisões, se a gente tivesse um acesso mais facilitado à Corte, talvez os Estados deixassem de respeitar. Mas acho que deveria haver pelo menos algumas hipóteses em que a Corte pudesse ser acessada pelos peticionários sem ter que passar pela Comissão, sem dúvida.

A diferença na terminologia já é bem clara, mas na prática a diferença acaba sendo mesmo a deferência dos Estados? As recomendações da CIDH tendem a ser menos levadas em conta do que as sentenças da Corte?

Sem dúvida. As sentenças da Corte têm uma força vinculante que as recomendações da Comissão não têm tanto. O Sistema Interamericano foi estruturado de uma forma que as coisas vão se sobrepondo. A Comissão vai analisar, vai poder se pronunciar por todos os fatos ocorridos a partir de 1992, que é quando o Brasil assina a Convenção Americana. A partir de 1998, [quando o Brasil reconhece a competência contenciosa do Tribunal,] a Corte vai poder se manifestar. Até 1998, é um pouco mais fraco o compromisso que o Estado brasileiro tem em relação ao Sistema Interamericano.

Isso inclusive é reconhecido e muitas vezes a gente vê ministros do STF fazendo menção a parâmetros da Corte Interamericana. Não é só no Executivo, a gente também tem o Judiciário de alguma forma reconhecendo a força vinculante dessas decisões.

Casos como o da Guerrilha do Araguaia e Herzog, que são anteriores mesmo a esse reconhecimento da Convenção, por que entram? Não seria só a partir da ratificação?

É um pouco confuso mesmo. Tem algumas violações que são [continuadas ou] permanentes. No caso da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, o Brasil foi condenado à violação ao direito à vida (artigo 4) dos guerrilheiros que foram mortos, e também no 8 e 25, que são artigos que falam em acesso à justiça e direito ao devido processo legal[, entre outros].

Em relação ao direito à vida, o que ocorre é que essas pessoas foram mortas e ninguém sabe onde estão seus corpos. Essas pessoas foram desaparecidas, desaparecimento forçado. De fato, essas pessoas foram desaparecidas muito antes da aceitação da vigência da Convenção Americana, mas enquanto o corpo não aparece, a gente tem uma violação que permanece.

A mesma coisa em relação [aos artigos] 8 e 25, direitos ao devido processo e ao acesso à justiça. Enquanto o Brasil não instaurar um processo devido para investigar o que aconteceu com essas pessoas, esses artigos estão sendo violados. Também é uma violação permanente.

Em grande parte dos casos em que a gente tem uma violação anterior a 1992, e mesmo anterior a 1998, o 8 e 25 são uma chave que permitem que a gente leve o caso pra Corte, apesar de estarmos tratando de um assassinato, por exemplo, que aconteceu antes da aceitação da competência da Corte. São coringas, eu acho que em todos os casos da Justiça Global têm o 8 e 25. Eles aparecem em quase todos os casos porque o Brasil tem essa questão estrutural com a prestação da justiça e é dessa forma que a gente consegue levar esses casos para a Corte, apesar de uma violação anterior a 1998.

Além das reparações financeiras, uma das possibilidades é que a Corte determine que Estado tem que instaurar processo internamente, certo?

Exatamente, de apurar a responsabilização por aquele crime, ou de indenizar devidamente aquelas pessoas, tudo isso está no escopo do 8 e 25. É através do processo que o Estado consegue corrigir, reparar essas violações. Num caso de assassinato, os familiares da vítima terem o direito de saber quem foi que matou o seu filho, o seu familiar. E também o Estado ter a obrigação, através de um processo civil, de indenizar e reparar os danos psíquicos e materiais que a pessoa teve ao longo do tempo, para se recuperar desse trauma, dessa violação a sua integridade psíquica.

No âmbito da Corte, não há condenação a indivíduos, certo?

Isso, só os Estados é que podem ser acusados.

Essa é uma questão também, pra gente. Porque a gente tem, por exemplo, graves violações de direitos humanos sendo cometidas por agentes privados, por empresas. Isso já abre uma outra discussão, mas só para falar de forma bem resumida, é a questão da insuficiência do direito internacional dos direitos humanos, de dar conta das violações cometidas por grandes empresas. Existe hoje essa grande lacuna. Você pode demandar Estados, em cortes de arbitragem, que tem o poder de condenar os Estados a pagar milhões e bilhões de dólares, mas as empresas não podem ser demandadas por violarem direitos humanos, direitos trabalhistas.

O que são as exceções preliminares?

As exceções preliminares, é o que a gente no Direito chama de uma análise formal daquela demanda. Nas exceções preliminares, o Estado pode trazer argumentos que se relacionam aos requisitos formais de uma determinada causa. É uma análise preliminar, significa que se a Corte reconhece uma dessas exceções preliminares, a análise do caso está comprometida.

A competência temporal costuma ser a mais clássica. O Estado fala que isso está fora do escopo [temporal] da Corte. No caso, por exemplo, do Herzog e da Guerrilha do Araguaia, o Estado trouxe como exceção preliminar a questão da competência temporal da Corte, que ela não seria competente para analisar, porque [as violações] aconteceram muito antes do advento da Convenção Americana e da aceitação da competência da Corte por parte do Brasil.

Outro argumento é a competência material. Quando por exemplo está sendo atribuído ao Estado a violação de um tratado, de uma convenção, que não é um dos tratados interamericanos. Por exemplo: um peticionário traz uma violação à Convenção Europeia, e não à Convenção Americana. A Corte Interamericana não tem competência para se manifestar sobre a violação da Convenção Europeia.

Outra clássica é o esgotamento dos recursos internos: um caso para ser levado para esfera internacional precisa ter havido a possibilidade do Estado resolver essa violação internamente antes. A Corte às vezes reconhece que de fato os peticionários não esgotaram as instâncias internas, então acabou, a Corte não tem competência para analisar o mérito do caso.

Por isso que existe essa diferenciação, é uma análise formal, dos requisitos formais daquele caso. Em oposição a uma análise do mérito daquela causa, que é quando você vai analisar se houve de fato a violação que está sendo alegada.

O Estado alegaria, por exemplo, falta de provas, não nessa fase de exceções preliminares, e sim na fase de julgamento do mérito?

Exatamente.

Os critérios da Comissão e da Corte para escolher quais casos vão ser julgados e se os direitos foram violados são mais flexíveis do que os critérios dos sistemas nacionais ao analisar um caso?

Não concordo muito. Pode ser só uma forma de ver as coisas. Se você pegar a história do Sistema Interamericano e comparar com a história do sistema jurídico de qualquer país do continente, é uma história muito mais recente. É algo muito menos consolidado na história do que são os sistemas jurídicos nacionais, porque tem que ser assim mesmo. Só faz sentido a existência do sistema internacional quando você já tem os sistemas nacionais operando com funcionalidade.

Tem outro ponto que é o que eu falava do poder de polícia, o poder que as cortes nacionais supostamente têm de fazer valer suas decisões. Um juiz pode acionar a polícia para fazer você cumprir e você pode ir para a cadeia se não cumprir uma decisão. No âmbito internacional a gente não tem isso. A Corte ordena os Estados a tomarem certas atitudes, e os Estados podem virar e dizer 'me obriga'. Não existe uma autoridade global para fazer cumprir essas decisões.

Eu acho que vem daí uma certa fluidez maior, porque o sistema internacional confia no poder de constrangimento que tem sobre os Estados, e em uma possibilidade um tanto remota dos órgãos internacionais imporem sanções econômicas àqueles Estados. A sua análise pode fazer sentido por esse viés, por serem órgãos muito mais políticos do que os judiciários [internos].

Só que isso tudo que eu estou falando pra você é em teoria, porque o judiciário [interno] por mais que tenha poder de polícia, tem muita decisão judicial que não é cumprida e fica por isso mesmo. Tem muita decisão do STF que quem deveria cumprir a punição dá uma grande banana para o Supremo ou para os outros tribunais, e não acontece nada.

No final das contas, para mim, é tudo político. O STF também é movido pela política. Cada ministro tem as suas convicções políticas, que colocam em prática quando vão analisar um caso, vão dar um voto, vão dar uma medida liminar. [Ao tomar uma decisão], acho que está todo mundo empenhado em tentar convencer a sociedade civil, a sociedade como um todo, a mídia, de que aquela decisão é a mais acertada, e que não necessariamente a gente vai conseguir impôr na "força física".

Claro que isso ocorre em alguns casos, principalmente quando o que está em jogo é implementar uma decisão que desfavoreça grupos vulneráveis, negros, mulheres, indígenas, etc. Aí realmente a polícia é utilizada sem dó e piedade. Mas eu pelo menos enxergo uma fluidez muito grande, porque eu acho que é tudo político, e todos os julgadores são influenciados por convicções, por seus preconceitos.

A Corte costuma concordar com os entendimentos dos relatórios de mérito da Comissão?

Às vezes, a Comissão alega uma violação que a Corte não dá, mas não é muito comum, porque os advogados da CIDH que atuam na Corte Interamericana conhecem bastante a jurisprudência, conhecem o posicionamento de juízes.

A Comissão costuma ter uma posição um pouco mais conservadora, no sentido de respeitar os parâmetros que existem. Pelo menos da perspectiva dos litígios em que eu já participei pela Justiça Global, esse papel de tentar inovar no Sistema, de trazer novos elementos para um caso, quem exerce mais é a sociedade civil. E voltando à crítica do Cançado Trindade, aí também a importância da sociedade civil ter um acesso mais ampliado a esse espaço, porque acho que a Comissão tem uma preocupação com a sua própria coerência, com seus entendimentos, que estão em seus relatórios, com casos anteriores.

Acho que os representantes das vítimas têm menos compromisso com uma certa coerência. O nosso compromisso é com aquele caso que a gente está defendendo e não em garantir que a jurisprudência do Sistema Interamericano seja coerente. O que a gente quer é ter o máximo de vitórias em determinado caso. Temos menos a perder no sentido de trazer novas perspectivas, de tentar abrir mais a jurisprudência, de trazer outros elementos, além dos fáticos dos casos.

Nós, como representantes, é que estamos em contato direto com as vítimas, que estamos mais atualizados dos últimos andamentos de determinado processo judicial, dos últimos acontecimentos relacionados àquele caso. Mas a gente também tem uma contribuição que é relacionada a uma interpretação da Convenção Americana, de trazer novos entendimentos, de oxigenar o entendimento. Tem vezes que a Comissão vai com gente, mas costuma ter uma posição um pouco mais conservadora em termos de entendimento sobre os direitos.

Normalmente o Brasil costuma tentar se defender ou acontece de aceitar que violou o direito?

Normalmente defende até o final a posição de que não violaram.

O Brasil também costuma ter uma posição de reafirmar a sua legislação interna. Caso Xucuru, por exemplo, que a gente atuou: foi violado o direito à propriedade coletiva do povo indígena porque não avançou na demarcação do território. A defesa sempre costuma ser 'ah, o Brasil tem uma legislação muito avançada, porque reconhece a posse dos indígenas do seu território, porque foi uma conquista, porque está na Constituição, que desde 1988 é assim, etc'.

Como a gente tem uma legislação, em muitos âmbitos, muito avançada em termos protetivos, em termos ambientais, trabalhistas, uma legislação boa, o Brasil costuma se utilizar disso para fazer sua defesa. E a gente sempre aponta que o assunto não é esse, a questão é essa. Ninguém está questionando a legislação, que bom que existe, mas a questão é que ela não funcionou ou não funciona como deveria. É uma outra discussão. Eu sempre percebo uma tentativa de trazer isso para o âmbito da teoria, de discutir as coisas de modo abstrato e não no caso concreto. O que poderia ter feito e não fez. Ou o que fez e não é dito, porque fica sempre nessa defesa da legalidade e legislação, que obviamente é muito boa, mas costuma ser insuficiente.

Os outros países também costumam ter essa postura?

Eu já vi muito outros países reconhecendo a sua responsabilidade em relação a algumas violações. Eu pelo menos não vi muita diferença nessa transição de governo, pelo menos nos casos em que [eu atuei]. No caso Xucuru e no caso agora da Fábrica de Fogos, o Brasil teve o mesmo comportamento, de negar tudo.

Às vezes, eu fico achando que a gente trabalha com coisas, pessoas e populações que ninguém quer saber muito, seja o governo de direita ou de esquerda... Claro que em um governo de direita, a gente tem isso de modo mais agudo, de modo mais intencional, [a percepção] de que não há nenhum problema que jovens negros morram mais que jovens brancos, por exemplo. Mas acho que, no final das contas, direitos humanos é um lugar que ninguém quer olhar, ninguém quer saber muito.

Correção: Após orientação da banca, o termo "medidas provisórias" foi substituído para "medidas provisionais". A correção foi efetivada em 13/06/2021.