“O Brasil está entre os países latino-americanos, por muito tempo, que mais resistia à supervisão internacional”
“Nos últimos 22 anos, de 1998 para cá, desde quando o [Brasil] reconhece a jurisdição da Corte, a coisa vem melhorando. Mas é um passo para frente, e meio passo ou até dois passos para trás. Tem uma fase com o presidente atual, de rejeição dos direitos humanos e da supervisão internacional”, aponta o ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) James Cavallaro.
Comissário da CIDH entre 2014 e 2017, o americano James Cavallaro dedicou a maior parte de sua carreira à advocacia em prol dos direitos humanos e tem longa relação com o Sistema Interamericano e com o Brasil. No país, ele atuou em casos como o do presídio de Urso Branco, o primeiro a ter medidas provisórias determinadas pela Corte Interamericana contra o Brasil e de Ximenes Lopes, a primeira condenação brasileira no Tribunal.
Entre 1994 e 1999, James dirigiu os braços brasileiros das organizações internacionais Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil, na sigla em inglês) e Humans Right Watch, promovendo workshops e peticionando casos perante a Comissão Interamericana. Em 1999, fundou a organização brasileira Justiça Global, que há mais de 20 anos atua na defesa dos direitos humanos, inclusive perante o Sistema Interamericano.
Além de comissário e presidente da CIDH, Cavallaro também deu aulas de direitos humanos nas escolas de direito de Stanford e Harvard. Atualmente é diretor executivo da University Network for Human Rights e professor visitante em diversas universidades.
Nesta breve entrevista, concedida em 6 de novembro de 2020, ele aborda a relação do Brasil com o Sistema Interamericano em diferentes governos, relembra episódios-chave das últimas décadas, explica quais os efeitos de uma maior promoção de direitos humanos e traça perspectivas para os próximos anos.
Qual a importância e que papel ocupa a Justiça Internacional, em especial a voltada para os direitos humanos, no Brasil?
No Brasil é um tema muito complicado. O Brasil está entre os países latino-americanos, por muito tempo, que mais resistia à supervisão internacional. O Brasil só ratifica a Convenção em setembro de 1992, só reconhece a competência da Corte em 1998. Então é um dos, se não o país que mais [resiste à supervisão]. O México também resistia à supervisão.
Isso poderia ser atribuído aos anos da ditadura militar. Depois, com a Constituição de 1988, você tem uma mudança, mas mesmo assim. O Brasil, pelo tamanho do país, por ser um país de língua portuguesa e em que o espanhol não é usado, tem uma certa distância histórica da OEA, da supervisão internacional. O Brasil é um continente.
Então sempre foi e continua sendo um grande desafio fazer valer no Brasil as normas e também a supervisão internacional, seja da Corte Interamericana, seja da Comissão, seja da ONU, em seus diversos comitês e relatorias especiais.
Nos últimos 22 anos, de 1998 para cá, desde quando o país reconhece a jurisdição da Corte, a coisa vem melhorando. Mas é um passo para frente, e meio passo ou até dois passos para trás. Tem uma fase com o presidente atual, de rejeição dos direitos humanos e da supervisão internacional. O nacionalismo barato, o discurso... não vou entrar nos detalhes do governo atual Bolsonaro, mas o país está evidentemente em um momento em que o compromisso com as instâncias internacionais e os direitos humanos é muito fraco.
Como foi nos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma?
Em termos gerais, nos dois governos do FHC, havia um interesse em promover uma imagem do Brasil como um país democrático e moderno, e por isso houve uma certa vulnerabilidade à opinião internacional e, portanto, às decisões internacionais e às opiniões das instâncias de supervisão. Então isso abriu um espaço.
Acho que os governos do PT seguiram nessa linha de abrir o Brasil para o mundo. Parte dessa visão que Lula e também a Dilma queriam projetar, de ser um governo respeitado internacionalmente, [envolvia] ter pelo menos algum tipo de aceitação das normas internacionais.
Nos últimos anos do governo FHC, o país passou a aceitar as visitas dos relatores especiais, dos mecanismos da ONU, o que é muito importante, tem uma relação direta com a relação que o Brasil tem com a Comissão e com a Corte Interamericana. Quando o Paulo Sérgio Pinheiro, no último ano do governo FHC, entrou como secretário de direitos humanos, ele tinha uma lista de 80, 90 casos que eram casos prioritários em direitos humanos no Brasil, na pasta dele, que ele estava acompanhando. E 50 desses casos eram do Sistema Interamericano ou na ONU.
[Essa lista é] super útil para mostrar que o Sistema Interamericano chegou a estruturar a visão das autoridades federais brasileiras quanto às prioridades em matéria de direitos humanos. Isso durante o tempo em que o Brasil produziu o I, II e III Plano [Nacional] de Direitos Humanos. Na prática, as prioridades foram sendo impostas pelo Sistema Interamericano, pelos peticionários, pelos usuários, e pelas entidades brasileiras – que só no final dos anos 1990 começam a usar o Sistema Interamericano, tem duas petições até 1994.
Experiências em entidades e na Comissão
Até a época em que eu dirigi o Cejil, e também a Humans Rights Watch no Brasil, [o país] tinha encaminhado 8 petições para a Comissão, entre 1992 e 1994. E a Comissão não abriu nenhuma dessas petições, pela pressão brasileira para não abrir nenhum caso contra o Brasil. A secretária executiva era Edith Márquez, da Venezuela, que estava trabalhando com os Estados. Houve uma pressão política para que a Comissão abrisse esses casos, e foram abertos, eram os únicos.
Quando eu cheguei no Brasil, em 1994, uma das coisas que eu fazia pelo Cejil eram workshops para ensinar aos ativistas brasileiros, às entidades brasileiras, como utilizar o Sistema Interamericano. E disso surgiu mais interesse, e outras iniciativas também, e aí você tem mais casos levados ao Sistema. E com isso você tem mais conhecimento do Sistema, as autoridades federais dão mais importância, e chega ao ponto que começa a ter um diálogo entre o Sistema, também a Corte, e as autoridades brasileiras.
Eu passei quatro anos na Comissão como comissário, e passei um tempo como relator para o Brasil. A relação com a Comissão, mas posso falar também da Corte, entre o Brasil e o Sistema não se compara com a relação que um país como o México, Colômbia ou Argentina têm. A importância das decisões é diferente. Os casos mais importantes, às vezes sequer provocam reações das autoridades.
Quando o Nelson Jobim falou do caso da anistia, em 2010, 2011, foi uma reação de 'essa não é uma república bananeira', acho que foi a frase do Jobim, quando na época era ministro [da Defesa]. Esse tipo de reação continua sendo o caso.
E uma coisa importante é a diferença entre a reação das autoridades federais e dos estados. Nos estados, para te dar um exemplo, no caso Urso Branco, que houve uma chacina. Houve uma audiência na Corte, houve uma determinação, e eu, como advogado do caso, fui visitar a cadeia para ver até onde tinham tomado as medidas necessárias, de separar presos, etc.
Eu chego lá, com a determinação da Corte Interamericana. Chego na prisão, falo com o diretor, explico o que estou fazendo, já tinha escrito, avisado. O cara me diz, quase entre aspas, ‘não interessa essa Corte Interamericana, eu mando nessa cadeia, você não vai entrar’.
Naquela época, o Paulo Sérgio Pìnheiro era o secretário de direitos humanos. Consegui explicar pra ele, que eu podia lançar um comunicado, fazer um 'auê', um escândalo, mas que eu preferia entrar e ver se o pessoal estava sofrendo ou não. Pedi ajuda. Aí ele conseguiu, no dia seguinte, me deixaram entrar. O diretor sumiu, não queria mostrar a cara, mas o vice me deixou.
Eu entro, faço a visita, fiz questão, insisti em falar com todos os privados de liberdade, 300, 400, entrei em todas as celas, para que não houvesse represália. No dia seguinte, ou dois dias depois, todos passaram por um corredor polonês, foram espancados e lavaram choques. Como não tinha como identificar quem falou com “esse pessoal das instâncias internacionais”, então todos levaram uma surra. Esse é um exemplo da resistência do Brasil, que não é pouca coisa.
Conhecimento do Sistema no Brasil
Ao mesmo tempo que entre os juízes, os professores de direito, tem muito estudo, tem muito aluno que analisa – o que eu acho bom, – [parte do] grande desafio no Brasil é divulgar o Sistema, fazer com que o Sistema seja conhecido.
Você faz faculdade de direito, de jornalismo, de muitas áreas, e não sabe o que é o Sistema Interamericano. Isso não existe. Você não tira diploma de quase nada na Argentina, sem saber das instâncias internacionais de direitos humanos. [Para ser] advogado, você precisa estudar os direitos humanos, o Sistema Interamericano, tem que receber como funciona. A Constituição argentina, na reforma de 1994, incorpora todas as sentenças, determinações, informes da Comissão e da Corte, como força de lei. Idem na Colômbia e em muitos outros países. O MEC tem que insistir que tem que estudar isso, que faz parte do nosso ordenamento jurídico.
Na área de jornalismo também. Não sei quantas vezes falei com jornalista para dizer que levamos um caso à Comissão, expliquei sobre a CIDH, sobre a Corte. No dia seguinte, "Corte Interamericana sentencia o Brasil". Não, eu não falei nada disso.
Cumprimento das sentenças
Outra coisa, é preciso insistir no cumprimento das determinações do sistema. Isso envolve os Estados. Os mecanismos que o Brasil têm, pode federalizar, tem o CDDPH [Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana] que poderia entrar. Poderia fazer intervenção federal, mas é uma coisa tremenda, acontece uma vez por ano, ou menos.
Deveria haver formas muito mais eficazes para facilitar a intervenção federal, não para intervir num estado e tirar as autoridades, mas para acompanhar os casos, de forma muito mais rigorosa. Coisa que acontece em Estados como a Colômbia, que não são federalizados, que têm subdivisões políticas, mas não tem as competências que [os estados] no Brasil tem. O governo de São Paulo tem muito mais poder que uma autoridade de uma província colombiana. São coisas que precisam mudar.
A imprensa é fundamental para que haja cobrança das autoridades. Pega um caso como Ximenes Lopes: foi importante para ajudar no processo de limitar o uso das instituições fechadas para as pessoas com deficiência mental. Os casos sobre a anistia, mesmo com a resistência [estatal], foram importantes na criação das comissões [da verdade] tanto federal quanto nos estados. Então você vê que tem um impacto, não é irrelevante.
Que perspectivas você enxerga para os próximos anos, em relação ao Sistema Interamericano, especialmente no Brasil? Falando de aceitação e incorporação da jurisprudência e cumprimento das sentenças.
O que acho, e não quero entrar muito na política, é que vai passar por uma mudança política. Acho que tem sinais interessantes. O que aconteceu no Chile, a rejeição da Constituição do Pinochet por 78% da população, uma rejeição brutal. As eleições na Bolívia contra o governo interino, imposto com o apoio dos EUA. As eleições nos EUA agora, onde o ídolo do presidente brasileiro está perdendo, vai perder [a entrevista foi feita na sexta-feira após o pleito americano, antes da vitória de Biden se concretizar]. Tudo bem, vai perder para um centrista que é da velha guarda do Partido Democrata, mas em termos simbólicos é importante e vai ser importante no Brasil. Acho que vai ter um efeito na política brasileira e vai ser negativo para o presidente atual brasileiro.
Não sei qual vai ser o próximo governo, mas se entrar um governo mais progressista que o do Bolsonaro – e dificilmente vai ser menos progressista, – haveria a possibilidade de maior compromisso com as instâncias internacionais.
Em termos gerais, mas com o governo FHC, e com o governo Lula, e de certa ponto com Dilma... Ainda que Dilma tenha feito algumas besteiras, principalmente no caso Belo Monte. Uma tremenda infelicidade a reação dela e do [Antonio] Patriota [chanceler brasileiro no governo DIlma] a uma medida cautelar do caso Belo Monte – que tem tudo a ver com a relação entre o Brasil e o Sistema Interamericano. Parou de fazer contribuição, retirou a candidatura do [Paulo] Vannuchi à Comissão [ex-ministro de Direitos Humanos de Dilma, que posteriormente foi indicado e eleito para a Comissão].
Em termos gerais, pega desde 1994, quando entra o FHC, até o processo de impeachment de Dilma… Não é linear, mas é um período em que o Brasil se estabelece, se promove nas instâncias internacionais, como um país sério. Com graves violações, mas com compromisso com as instâncias de supervisão e com os direitos humanos em termos gerais.
O retrocesso dos últimos anos está sendo brutal. Acho, e não tem outra forma de analisar o que vai acontecer, que se entrar um governo melhor do que o atual, uma das coisas que vai querer fazer é reassumir um compromisso com os direitos humanos, com as instâncias internacionais. E vai querer ser visto, não como um governo pelego do Donald Trump, mas como um governo independente, que é líder dos países do Sul Global.
Uma forma importante de ser líder no palco internacional é pelo respeito aos direitos humanos, às determinações das entidades internacionais. É terrível, mas acho que não vai acontecer até o atual governo deixar de governar.
O que o Brasil ganharia, de que forma essa maior aceitação e respeito aos direitos humanos agregaria ao Brasil? Que bem isso faria internamente?
A conexão é direta. Não sei se você conhece um texto de [Margaret E.] Keck e [Kathryn] Sikkink sobre o efeito boomerang. Vale a pena estudar, porque é uma referência para explicar a lógica de como funcionam as entidades internacionais. Como conseguem mudar as políticas dentro dos países e como conseguem melhorar o grau de respeito aos direitos humanos nos diversos países.
A lógica é que quando as pessoas, as entidades, os movimentos sociais não conseguem avançar no tema que for, uma forma de responder ao 'blocked’ que é o termo em inglês, é através das instâncias internacionais. É a lógica de boomerang. Você sai do país, usa os diversos mecanismos internacionais, cria uma pressão nas esferas internacionais. Aí essa pressão volta para o Brasil, vem através do Itamaraty, vem para o Ministério da Justiça, vem para os diversos estados, e essa pressão que começou dentro do país, mas não produziu efeito, que teve que ir para as instâncias internacionais, volta que nem um boomerang, e acaba produzindo pressões locais, para que as políticas mudem, para que os direitos humanos sejam mais respeitados.
Quando sair o Trump, e vai sair, e quando entrar outro governo no Brasil, acho que vão ter pressões, tanto dos EUA, quanto da Europa, para que o Brasil ligue para os direitos humanos. Haverá interesse por parte do novo governo brasileiro. E isso vai produzir efeitos, porque abre espaço para as entidades, a sociedade civil, usarem os recursos internacionais, para produzir efeitos na esfera internacional, no Sistema Interamericano, e isso provocará mudanças dentro do Brasil.
A relação é muito direta. Se há interesse, se há pressão internacional, e se tem um governo que não resiste, como resiste o atual, abrirá muito espaço para as entidades brasileiras e isso levará a melhorias internas de direitos humanos. Desde os povos indígenas, que estão sendo massacrados. As questões raciais, as questões de abusos da polícia, direitos das mulheres. Escolhe um tema e abrirá espaço. Não vai ser um ‘nirvana’, mas vai ajudar.