Ficha Técnica
Vítimas: 43 trabalhadores encontrados durante a fiscalização de 23 de abril de 1997 e 85 trabalhadores resgatados em 15 de março de 2000 na Fazenda Brasil Verde
Peticionários e/ou Representantes: Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil)
Juízes: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Presidente em exercício; Eduardo Vio Grossi, Vice-Presidente em exercício; Humberto Antônio Sierra Porto, Juiz; Elizabeth Odio Benito, Juíza; Eugenio Raúl Zaffaroni, Juiz, e L. Patricio Pazmiño Freire, Juiz;
Cronologia
12 de novembro de 1998
Petição
3 de novembro de 2011
Relatório de Admissibilidade e Mérito
4 de março de 2016
Submissão pela CIDH
20 de outubro de 2016
Sentença
Resumo
Sexto caso brasileiro analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a sentença do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde versus Brasil data de 20 de outubro de 2016.
Por mais de uma década, especialmente durante os anos 1990, homens pobres da região norte e nordeste do Brasil foram aliciados para trabalhar na Fazenda Brasil Verde, no município de Sapucaia (Pará). Lá, viviam e trabalhavam em condições precárias, em situação análoga à de escravidão. A propriedade rural é do latifundiário João Luiz Quagliato Neto, que junto com outros três irmãos comandam o Grupo Quagliato.
Uma série de denúncias de trabalhadores que conseguiram escapar da fazenda, bem como da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram feitas ao longo dos anos. A CPT chegou a denunciar o suposto desaparecimento de dois jovens, que haviam trabalhado no local. Além disso, em 1989, 1993, 1996 e 1997, a Polícia Federal, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e outros órgãos governamentais realizaram visitas de fiscalização na propriedade. A despeito disso, a Brasil Verde continuou funcionando e utilizando-se de trabalho escravo durante todo o período. Em 2000, após dois jovens conseguirem fugir e nova denúncia ser apresentada, mais de 80 trabalhadores foram resgatados da propriedade. Os processos penais que buscavam responsabilizar os envolvidos não prosperaram, apesar das evidências.
Em novembro de 1998, antes mesmo da fiscalização que resgatou dezenas de trabalhadores, em 2000, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil/Brasil) entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as violações sofridas pelos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, bem como o desaparecimento de dois jovens. O Estado brasileiro não respondeu às solicitações de informação da CIDH e, por isso, o órgão atendeu a pedido dos peticionários e decidiu julgar a admissibilidade e o mérito conjuntamente. Somente em outubro de 2007, o Brasil apresentou contestação, alegando não esgotamento dos recursos internos.
Em novembro de 2011, 13 anos após a apresentação da petição, a CIDH produziu relatório de admissibilidade e mérito, admitindo o caso e considerando o Brasil responsável por violações de direitos humanos, em detrimento dos trabalhadores encontrados nas fiscalizações de 1993, 1996, 1997 e 2000, bem como dos jovens desaparecidos e de seus familiares. O órgão emitiu uma série de recomendações ao Estado. Após a concessão de dez extensões de prazo, a CIDH considerou que o país não havia avançado de maneira concreta no cumprimento e resolveu remeter o caso à Corte Interamericana, em março de 2016. Considerando a data de reconhecimento da competência do Tribunal pelo Brasil (dezembro de 1998), a Comissão submeteu à Corte “as ações e omissões estatais” que ocorreram ou continuaram ocorrendo após esse marco temporal.
A Corte Interamericana admitiu parcialmente duas das exceções preliminares interpostas pelo Estado e negou as outras oito, dando prosseguimento ao julgamento. Na mesma sentença, condenou o Brasil pela violação dos direitos a não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas – “produzida no marco de uma situação de discriminação estrutural histórica, em razão da posição econômica” –, ao reconhecimento da personalidade jurídica, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, às garantias judicias, à proteção da honra e da dignidade, de circulação e residência e à proteção judicial, em relação com a obrigação de respeitar e garantir os direitos, e o dever de adotar disposições de direito interno, previstos na Convenção Americana. Foram considerados vítimas, os trabalhadores encontrados nas fiscalizações de 1997 e de 2000. Em relação a um dos trabalhadores, que era menor de idade, também foram considerados violados os direitos da criança. O Tribunal não considerou violados os direitos dos jovens supostamente desaparecidos, tampouco de seus familiares.
Entre as determinações da Corte estão a condução de investigação e/ou processos penais relacionados à fiscalização de 2000, bem como o exame de eventuais irregularidades processuais e investigativas relacionadas ao caso. O Tribunal também determinou a publicação da sentença e o pagamento de indenizações, que somavam mais de US$ 4,69 milhões, em valores da época, além de custas e gastos. Por fim, a Corte determinou que fossem adotadas “as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas formas análogas”.
O Brasil pagou boa parte das indenizações e promoveu busca ativa dos trabalhadores indicados na sentença da Corte que ainda não haviam sido encontrados, assim como efetivou a publicação da sentença nos espaços determinados pela Corte. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para impedir que a prescrição seja aplicada ao delito de trabalho escravo e suas formas análogas foi apresentada por um grupo de senadores, mas sua tramitação não avançou.
Paralelamente a isso, o Ministério Público Federal (MPF) reabriu as investigações relacionadas à fiscalização de 2000 e apresentou denúncia contra o fazendeiro João Luiz Quagliato Neto e o gerente da propriedade rural na época dos fatos, Antônio Jorge Vieira, conhecido como “Toninho”. A denúncia foi aceita pela Justiça Federal em janeiro de 2020, após o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) negar pedido de habeas corpus da defesa. As eventuais irregularidades processuais e investigativas não foram examinadas como determinava a sentença.
O procedimento de supervisão do cumprimento da sentença segue em aberto, mais de quatro anos após a decisão. O único relatório de supervisão da sentença publicado pela Corte data de novembro de 2019.
Contexto
Os irmãos Quagliato, que comandam grupo que leva o sobrenome da família, são conhecidos como “Reis do Gado”. A alcunha não é por acaso: são mais de 200 mil cabeças de gado, a maior parte delas espalhadas por fazendas no sul do Pará. Em setembro de 2020, um dos fazendeiros do grupo arrematou todos os três mil bezerros de um leilão, em um investimento milionário.
Uma das posses da família, a Fazenda Brasil Verde, ocupa 8.544 hectares do município de Sapucaia, no sul paraense. Ela está em nome de João Luiz Quagliato Neto, que comanda o grupo junto com os irmãos Roque, Fernando e Francisco. Além de criação de gado, a Brasil Verde também é internacionalmente conhecida por ter mantido, por décadas, trabalhadores em condição análoga à escravidão.
O roteiro seguido na fazenda cumpria à risca a “fórmula” do trabalho escravo no Brasil: homens, pobres, entre 18 e 40 anos de idade, mas às vezes mais jovens, a maioria deles negros. Recrutados por 'gatos' em estados pobres das regiões Norte e Nordeste, como Maranhão, Piauí e Tocantins, sob a promessa de salários atrativos, e levados para outros estados, como o Pará. Ao chegarem às fazendas de destino, eram informados que estavam em dívida com os proprietários das terras, por seu transporte, alimentação e hospedagem. Na maior parte dos casos, os trabalhadores tinham que adquirir tudo que necessitavam nos armazéns das propriedades, a preços elevadíssimos. Assim, acumulavam dívidas que não podiam pagar e eram obrigados a continuar trabalhando.
No caso da Fazenda Brasil Verde, além do salário ínfimo e do endividamento com o fazendeiro, os escravizados que conseguiram escapar relataram ameaças de morte em caso de abandono do trabalho e o impedimento de saírem livremente, além da falta de moradia, alimentação e saúde dignas.
A partir do final da década de 1980, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e ex-trabalhadores fugidos da propriedade rural apresentaram uma série de denúncias sobre trabalho escravo na Brasil Verde. Além disso, denunciaram o desaparecimento de dois adolescentes, Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, que haviam sido levados para trabalhar no local.
Durante esse mesmo período, em 1989, 1993, 1996 e 1997, a Polícia Federal, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e outros órgãos governamentais realizaram visitas de fiscalização na fazenda, encontrando centenas de trabalhadores em situação precária, constatando diversas irregularidades trabalhistas e condições inóspitas de moradia e trabalho no local. A despeito disso, o governo brasileiro não adotou medidas de prevenção e resposta às falhas encontradas na Fazenda Brasil Verde, que continuou funcionando normalmente durante todo esse período, repetindo o ciclo de exploração de trabalhadores.
Em fevereiro de 2000, o gato conhecido como “Meladinho” aliciou trabalhadores em Barras (PI), para trabalhar na Fazenda Brasil Verde. Ele prometia salário de 10 reais por “alqueire de juquira roçada”, valor atrativo para os homens pobres do município. Além disso, como parte da oferta, “Meladinho” entregou aos interessados um adiantamento de salário e lhes oferecia transporte, alimentação e alojamento durante sua estada na fazenda.
Para chegar à propriedade rural, os trabalhadores recrutados precisaram viajar durante três dias, entre ônibus, trem e caminhão, enfrentando más condições de transporte e tendo que dividir espaço com animais. Em Xinguara (PA), onde passaram uma noite, tiveram que permanecer em hotel bancado pelo aliciador, se endividando.
Chegando à Brasil Verde, eles entregaram suas carteiras de trabalho a “Toninho”, gerente da Fazenda, sem as receber de volta depois, e foram obrigados a assinar documentos em branco. Lá, encontraram péssimas condições de alojamento: eram galpões de madeira sem energia elétrica, camas ou armários, e o teto era de lona, que não continha a chuva. Os trabalhadores tinham que dormir em redes, os banheiros eram sujos e as duchas estavam em mau estado.
De acordo com os relatos, a alimentação era insuficiente, repetitiva e de má qualidade e a água, que provinha de poço no meio da mata, era armazenada em recipientes inadequados e distribuída em garrafas coletivas. Além disso, a comida consumida pelos trabalhadores era anotada em cadernos, sendo posteriormente descontada de seus ínfimos salários.
Eles eram acordados por um encarregado da fazenda às 3h da manhã, de maneira hostil, e tinham que percorrer longo trajeto até a plantação, muitas vezes à pé. A jornada de trabalho era de 12 horas ou mais, das seis da manhã até seis da tarde, com um descanso de meia hora para almoçar. Os trabalhadores, que cortavam 'juquira', tinham apenas os domingos como dia de descanso. Para poder receber um salário, eles tinham de cumprir uma meta de produção altíssima, designada pelos encarregados da fazenda. Como alcançá-la era difícil, muitos acabavam não ganhando nada.
Devido ao consumo de água contaminada e as más condições de trabalho, não raramente feito sob chuva, os trabalhadores adoeciam com frequência. Como o salário era recebido por produção, não tinham a opção de não ir às plantações, mesmo doentes. Lá, não havia pessoal médico, tampouco recebiam visita de profissionais das comunidades próximas. Os medicamentos, comprados pelos encarregados da fazenda, eram descontados dos salários.
Dadas as péssimas condições, muitos trabalhadores desejavam fugir da Brasil Verde, mas temiam por suas vidas, já que os encarregados portavam armas de fogo e mantinham vigilância permanente. Somado a isso, a localização isolada da fazenda, a presença de animais selvagens e as represálias aos que haviam tentado escapar impediam a concretização do desejo de fugir do local.
No início de março de 2000, os trabalhadores Antônio Francisco da Silva e José Francisco Furtado de Sousa foram agredidos pelos seguranças da fazenda, após informarem que não poderiam trabalhar por estarem doentes. Após a violência e ameaças de morte, os dois decidiram fugir da Brasil Verde.
Depois de percorrerem caminho pela mata, bebendo água do chão, eles conseguiram chegar em uma estrada. Lá, contaram sua história a um caminhoneiro, que os levou até a cidade de Marabá (PA). Em 7 de março daquele ano, Antônio e José relataram sua situação a um policial, que informou não poder ajudá-los por conta da ausência do delegado, sugerindo que voltassem dois dias depois, já que era feriado de carnaval.
Após dormir na rua, os jovens retornaram à delegacia na data indicada. O policial que os atendeu recomendou que eles buscassem ajuda da Comissão Pastoral da Terra, que os acolheu nos dias seguintes.
Último país do ocidente a abolir a escravidão, o Brasil nunca superou totalmente a sua herança escravagista. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, período em que a ditadura militar brasileira incentivou a ocupação da região amazônica, as práticas de trabalho escravo se consolidaram nos latifúndios de empresas privadas e familiares que estabeleceram-se na região norte do país. Lá, os grandes fazendeiros aliaram-se a autoridades regionais e garantiram, por décadas, a manutenção da impunidade. Desde 1995, dezenas de milhares de pessoas foram resgatadas de trabalho escravo contemporâneo no país.
Foi justamente em 1995 que o Estado brasileiro reconheceu a existência de trabalho escravo e passou a tomar medidas voltadas a combatê-lo. Nesse ano, o país promoveu a criação do Grupo Interministerial para Erradicar o Trabalho Forçado (Gertraf), além do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, com atribuições para atuar em zonas rurais e investigar denúncias de trabalho escravo.
Em 2002, em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o país realizou o Projeto de Cooperação Técnica “Combate ao Trabalho Escravo no Brasil”. Criou também a Coordenação Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e lançou o primeiro Plano Nacional para a Erradicação da Escravidão no Brasil. Além disso, promulgou lei relativa ao seguro desemprego de trabalhadores resgatados sob o regime de trabalho forçado ou condição análoga à de escravo.
No ano seguinte, mais avanços: a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) foi criada para substituir o Gertraf, agregando maior participação da sociedade civil. Adicionalmente, o país modificou a redação do artigo 149 do Código Penal brasileiro, definindo o conceito de trabalho escravo contemporâneo e precisando condutas de escravidão por dívida, por jornada exaustiva e condições degradantes. Antes disso, a legislação brasileira previa apenas de maneira genérica a conduta de redução de uma pessoa a condições análogas à de escravo, além de estabelecer o delito de “atentado contra a liberdade de trabalho” e de “aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional”.
Ao longo dos anos seguintes, o Brasil promoveu a criação da Lista Suja do Trabalho Escravo, estabeleceu a proibição de crédito rural e a expropriação das propriedades rurais e urbanas flagradas nessas condições. Além disso, em 2007, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou critério de que a Justiça Federal é responsável por casos do tipo, evitando controvérsias de competência que costumavam ocorrer.
Trâmite no Brasil (até a sentença da Corte)
A primeira denúncia contra a Fazenda foi feita em 1988. Em 21 de dezembro, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Diocese de Conceição de Araguaia acompanharam José Teodoro da Silva e Miguel Ferreira da Cruz, respectivamente, pai e irmão de lron Canuto da Silva, de 17 anos, e de Luis Ferreira da Cruz, de 16 anos. À Polícia Federal, afirmaram existir a prática de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde e alegaram o desaparecimento dos dois jovens. De acordo com a denúncia, os adolescentes teriam sido levados por um “gato” para trabalhar por 60 dias na propriedade. Ao tentarem abandonar a fazenda, eles teriam sido obrigados a retornar, ameaçados e, posteriormente, teriam desaparecido.
Na mesma data, o trabalhador Adailton Martins dos Reis, que havia escapado da Fazenda Brasil Verde, também apresentou denúncia, relatando más condições, ameaças, humilhações e a prática de servidão por dívidas. Seis dias depois, Maria Madalena Vindoura dos Santos denunciou situação similar envolvendo seu esposo José Soriano da Costa. Em 25 de janeiro de 1989, a CPT apresentou a denúncia ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), em Brasília, reforçando a necessidade de fiscalização na fazenda.
A Polícia Federal (PF) realizou visita à propriedade em 20 de fevereiro daquele ano. Em seu relatório, que não inclui lista com nome dos trabalhadores, o órgão constatou a atuação de gatos que realizavam o recrutamento dos trabalhadores e que os trabalhadores afirmaram que desejavam um melhor salário, mas que aceitaram o trabalho porque não encontraram outro que pagasse melhor. Apesar de corroborar a existência de baixos salários e infrações à legislação trabalhista, a PF considerou não haver vestígios de trabalho escravo na Brasil Verde. Além disso, o relatório destacou que os trabalhadores informaram que lron Canuto e Luis Ferreira da Cruz haviam fugido da fazenda.
Já em 1992, após a CPT enviar ofício sobre as denúncias realizadas em 1988 e 1989, a Procuradoria-Geral da República (PGR) instaurou um processo administrativo, solicitando mais informações à Polícia Federal. Após várias reiterações, a PF informou que não havia sido constatada a presença de trabalho escravo na propriedade.
Em agosto do ano seguinte, a Delegacia Regional do Trabalho (DRT) do Pará informou a PGR sobre visitas realizadas em 26 de junho e 3 de julho daquele ano em várias fazendas da região, incluindo a Brasil Verde. No informe, o órgão afirmou que não havia encontrado a configuração da prática de escravidão, mas que haviam sido encontrados 49 trabalhadores sem seus registros trabalhistas – sem listar seus nomes. Na ocasião, determinou-se que os que haviam sido contratados irregularmente e manifestado o desejo de deixar a Fazenda fossem mandados de volta ao lugar de origem.
Em abril de 1994, um subprocurador Geral da República enviou uma carta à CPT, anexando relatório sobre as visitas realizadas em 1989 e 1993. No documento, ele destacou que a atuação da Polícia Federal na fiscalização de 1989 havia sido insuficiente e apontou uma série de falhas no procedimento, inclusive a falta de diligências para buscar os adolescentes desaparecidos. Para o subprocurador, as falhas constatadas na visita já eram suficientes para instauração de investigação policial à época, mas ressaltou que a maioria dos delitos já estavam prescritos ou eram de difícil apuração, considerando o tempo transcorrido.
Em novembro de 1996, nova fiscalização na Fazenda Brasil Verde, dessa vez sob a responsabilidade do recém-criado Grupo Móvel do Ministério do Trabalho. Na ocasião, o órgão determinou a existência de condições contrárias às disposições trabalhistas e constatou a falta de registro dos empregados. Naquele momento, foram encontrados 78 trabalhadores na propriedade, e o Grupo emitiu 34 carteiras de trabalho.
Em março do ano seguinte, José da Costa Oliveira e José Ferreira dos Santos declararam à Polícia Federal em Marabá (PA) terem trabalhado e escapado da Fazenda Brasil Verde. Em seu depoimento, os trabalhadores relataram acúmulo indevido de dívidas, ameaças de morte e que funcionários da propriedade eram escondidos durante as fiscalizações.
A denúncia motivou nova visita do Grupo Móvel à Fazenda, no final de abril de 1997. Das 81 pessoas encontradas, 45 estavam sem carteira de trabalho, e foi comprovada a prática de esconder funcionários durante as fiscalizações. No relatório, o órgão constatou que os trabalhadores se encontravam alojados em barracões cobertos de plástico e palha nos quais havia uma “total falta de higiene” e que vários eram portadores de doenças de pele, não recebiam atenção médica e a água que ingeriam não era apta para o consumo humano. Além disso, todos os trabalhadores relataram terem sofrido ameaças, inclusive com armas de fogo e declararam não poder sair da Fazenda. A fiscalização do Ministério do Trabalho em 1997 motivou denúncia por parte do Ministério Público Federal (MPF), abordada separadamente abaixo.
Em junho, a Procuradoria Regional do Trabalho (PRT) da 22ª região, no Piauí, informou à PRT da 8ª região, no Pará e Amapá, sobre tráfico de trabalhadores. Em agosto, essa instaurou procedimento administrativo, solicitando à Procuradoria da República a determinação dos possíveis ilícitos penais cometidos em relação ao tráfico de trabalhadores.
Meses depois, em novembro, a Delegacia Regional do Trabalho do Pará informou que, apesar das falhas encontradas na fazenda, preferiu apenas orientar os responsáveis “no sentido de que as falhas [fossem] corrigidas e medidas [fossem] tomadas visando o cumprimento das normas trabalhistas (...) uma forma de incentivo e estímulo pelo progresso apresentado pelo empregador para adequar-se ao ideal exigido pela legislação”.
Já em janeiro de 1998, a Procuradoria do Trabalho solicitou nova fiscalização na Fazenda Brasil Verde. Em julho, após o Ministério Público do Trabalho (MPT) solicitar informações sobre a situação da propriedade rural, o delegado regional informou que havia sido realizada nova fiscalização em outubro de 1997, na qual havia sido constatado um “considerável progresso” em relação às irregularidades levantadas na visita anterior.
Em outubro de 1998, o MPT solicitou novamente uma fiscalização na Brasil Verde, reiterando o pedido em junho de 1999, após a DRT do Pará informar que não havia realizado a visita por falta de recursos financeiros.
Em março de 2000, dias após a fuga dos jovens Antônio Francisco da Silva e José Francisco Furtado de Sousa da fazenda, fiscais do Ministério do Trabalho e agentes da Polícia Federal realizaram nova fiscalização na propriedade rural. Lá e em uma fazenda próxima, encontraram ao todo 82 trabalhadores, os entrevistando sobre as condições de sua chegada à fazenda, seus salários e documentação pessoal. Consultados se desejavam regressar para suas casas, eles foram unânimes na decisão de sair da Brasil Verde.
Os trabalhadores precisaram dormir mais uma noite na propriedade rural antes de deixá-la, no dia seguinte. Na ocasião, os fiscais do Ministério do Trabalho obrigaram um encarregado da fazenda a pagar aos trabalhadores as indenizações trabalhistas devidas e a devolver as carteiras de trabalho. Ao entregar os documentos e dinheiro, os agentes estatais se omitiram de explicar a que se devia o montante ou do que se tratavam os documentos entregues.
Com base no relatório da fiscalização ocorrida em 15 de março, o Ministério Público do Trabalho apresentou Ação Civil Pública (ACP) contra o proprietário da Fazenda Brasil Verde, João Luiz Quagliato Neto. Na ação, o MPT destacou que os trabalhadores da propriedade rural eram mantidos “em um sistema de cárcere privado” e afirmou estar caracterizado o trabalho em regime de escravidão. Para o órgão, a situação se agravava ainda mais por serem os trabalhadores rurais analfabetos, sem nenhum esclarecimento e submetidos “a condições de vida degradantes”.
O Ministério Público solicitou que Quagliato “[cessasse] o trabalho escravo, interrompendo os trabalhos forçados e o regime de cárcere privado e jamais [praticasse] novamente o trabalho escravo, por se configurar crime e atentado contra a liberdade do trabalho”.
Em julho de 2000, o fazendeiro e o MPT celebraram acordo judicial. Na ocasião, João Luiz Quagliato Neto comprometeu-se “não admitir e nem permitir o trabalho de empregados em regime de escravidão”, “[a fornecer] moradia, instalação sanitária, água potável, alojamentos condignos ao ser humano” e “não colher assinaturas em branco dos empregados, em qualquer tipo de documento”, sob pena de multa.
Em maio de 2002, dentro do âmbito de uma série de fiscalizações em propriedades rurais no sul do Pará que haviam celebrado acordos semelhantes, o Ministério do Trabalho concluiu que os empregadores, inclusive da Fazenda Brasil Verde, vinham cumprindo com seus compromissos em cessar a utilização de mão de obra análoga à escravidão.
Processo penal relativo à fiscalização de 1997
Em 30 de junho de 1997, após relatório do Grupo Móvel do Ministério do Trabalho constatar péssimas condições na Fazenda Brasil Verde, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra três pessoas: Raimundo Alves da Rocha, o “gato” responsável por aliciar os trabalhadores rurais, pelos delitos previstos nos artigos 149 (trabalho escravo), 197.1 (atentado contra a liberdade do trabalho) e 207 (aliciamento de trabalhadores) do Código Penal; Antônio Alves Vieira, gerente da propriedade, pelos delitos previstos nos artigos 149 e 197.1 do Código Penal; e João Luiz Quagliato Neto, proprietário da Fazenda Brasil Verde, pelo delito previsto no artigo 203 (frustrar direitos trabalhistas) do Código Penal.
Considerando que a pena prevista para o delito do qual era acusado Quagliato Neto era menor que um ano, o MPF propôs suspender por dois anos o processo contra ele se aceitasse cumprir determinadas condições impostas pelo juiz federal. Em setembro de 1999, o fazendeiro aceitou as condições impostas pelo magistrado, e fez a entrega de seis cestas básicas a uma entidade beneficente em Ourinhos (SP), sua cidade-natal.
Paralelamente a isso, o processo contra o “gato” Raimundo Alves da Rocha e o administrador Antônio Alves Vieira continuou tramitando, com depoimentos desses e dos agentes do Ministério do Trabalho que realizaram a fiscalização de 1997. Em março de 2001, porém, o juiz federal substituto a cargo do caso considerou “incompetência absoluta da Justiça Federal” para julgar o processo, pois os delitos que se investigavam constituíam violações a direitos individuais de um grupo de trabalhadores e não crimes praticados contra a organização do trabalho.
Por conta disso, em agosto daquele ano, o processo foi reiniciado pela justiça estadual de Xinguara. Após a Promotoria ratificar a denúncia, o juiz responsável a acolheu em maio de 2002. No mesmo mês, já tendo passado o prazo de dois anos, a defesa de Quagliato Neto solicitou que fosse declarada a extinção da ação penal contra ele.
Em novembro de 2003, após Raimundo Alves Rocha e Antônio Vieira apresentarem escritos e declarações de defesa, o Ministério Público do Pará (MP/PA) solicitou que as denúncias contra ambos fossem consideradas improcedentes e que esses fossem absolvidos, já que faltariam indícios para declarar a autoria. Um ano depois, o juiz estadual responsável se declarou incompentente para conhecer do processo, travando novamente o caso.
Somente em setembro de 2007, mais de dez anos após a fiscalização na Fazenda Brasil Verde que resultou na denúncia, a ação voltou a ter movimentação relevante: na ocasião, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu que a jurisdição era federal., sendo o processo remetido à Vara de Marabá em dezembro daquele ano.
Em 10 de julho de 2008, o Ministério Público Federal pediu a extinção da ação penal. Em suas alegações, o MPF destacou as condições inóspitas encontradas, considerou haver prova suficiente de autoria dos delitos, mas ressaltou que os crimes estavam prescritos ou prestes a prescrever. O entendimento do órgão foi aceito pelo juiz federal responsável, que declarou extinta a ação.
Processo penal relativo à fiscalização de 2000
Após a fiscalização realizada na Fazenda Brasil Verde em março de 2000, o Ministério Público Federal apresentou denúncia penal perante a Vara Federal de Marabá. Em julho do ano seguinte, a justiça federal declinou da competência em favor da justiça estadual. Não se sabe qual o desfecho do caso, já que nem sequer o Estado brasileiro tem informações sobre o desenrolar do processo penal.
Os jovens desaparecidos
A Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Pará entrevistou os familiares de Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz em 2007 e 2009, respectivamente. Segundo as informações colhidas pelo órgão, Iron casou-se, teve filhos e morreu em 22 de julho de 2007, em circunstâncias não relacionadas com o caso. Já sobre Luis Ferreira, sua mãe informou à Secretaria não saber de seu paradeiro. Anos depois, em 2015, afirmou que ele teria morrido dez anos antes, em confronto com a polícia. Segundo sua irmã, por não ter documentos pessoais quando foi morto, Luis acabou enterrado como indigente.
Na Comissão
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil/Brasil) entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de novembro de 1998. No documento, as organizações denunciam o Brasil "pela sua omissão e negligência em investigar diligentemente a prática de trabalho escravo na fazenda Brasil Verde, localizada no sul do estado do Pará", assim como pelo desaparecimento de dois dos trabalhadores da referida fazenda, os adolescentes lron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz. Na petição, a CPT e o Cejil argumentam que o Brasil violou os direitos à vida (artigo 4), à integridade pessoal (artigo 5), à proibição da escravidão e da servidão (artigo 6), à liberdade pessoal (artigo 7), às garantias judiciais (artigo 8), da criança (artigo 19), de circulação e residência (artigo 22) e de proteção judicial (artigo 25), em relação à obrigação de respeitar os direitos (artigo 1.1), em prejuízo dos trabalhadores e dos adolescentes desaparecidos.
Os peticionários também alegaram violações de direitos previstos na Declaração Americana: I (direito à vida, à liberdade, à segurança e à integridade da pessoa), II (direito de igualdade perante a lei), VII (direito de proteção à maternidade e à infância), VIII (direito de residência e trânsito), XI (direito à preservação da saúde e ao bem estar), XIV (direito ao trabalho e a uma justa retribuição), e XVIII (direito à justiça). Por fim, evocaram descumprimento do artigo 1.a da Convenção Suplementar das Nações Unidas sobre a Abolição da Escravidão, Tráfico de Escravos e lnstituições e Práticas Semelhantes à Escravidão.
O caso foi encaminhado ao governo brasileiro em 25 de novembro de 1998, para que fosse apresentada contestação. Em agosto de 1999, após o prazo ser extrapolado sem resposta do Estado, os peticionários solicitaram à Comissão que a admissibilidade do caso fosse julgada conjuntamente com o mérito, pedido aceito pela CIDH em julho de 2001, depois de nova concessão de prazo e ausência de resposta brasileira.
Somente em outubro de 2007, o Estado apresentou pela primeira vez contestação sobre a admissibilidade e também sobre o mérito da petição. Na ocasião, o Brasil alegou que os peticionários não haviam cumprido o requisito de esgotamento prévio dos recursos internos, entre outras afirmações.
A Comissão Interamericana rejeitou a argumentação brasileira, emitindo relatório de admissibilidade e de mérito durante seu 143º Período Ordinário de Sessões, em 3 de novembro de 2011, quase 13 anos após a apresentação da petição. O órgão considerou ter havido uma série de violações por parte do Brasil.
Para a CIDH, o Brasil violou os direitos consagrados nos artigos 5, 6, 7, 8, 22 e 25 da Convenção, em conexão com o artigo 1.1, em prejuízo dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, encontrados nas fiscalizações de 1993, 1996, 1997 e 2000, sendo também responsável pela “não adoção de medidas suficientes e eficazes para garantir sem discriminação os direitos [desses]”.
Quanto aos jovens desaparecidos Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, a Comissão considerou ter havido violação dos direitos consagrados nos artigos I, II, VII, VIII, XIV e XVIII da Declaração Americana e, a partir da adesão brasileira à Convenção Americana, em setembro de 1992, dos artigos 3, 4, 5, 7 e 19, em relação com os artigos 8, 25 e 1.1 dessa. Em relação aos familiares de Iron e Luis, incluindo os senhores José Teodoro da Silva e Miguel Ferreira da Cruz, considerou ter ocorrido violação dos artigos I, II, VIII, XIV e XVIII da Declaração, e dos artigos 5, 8 e 25, em conexão com o artigo 1.1 da Convenção, a partir da adesão da brasileira.
Além disso, a decisão da CIDH apontou o Brasil como responsável internacionalmente pela não adoção de medidas em conformidade com o artigo II, em relação com o artigo XVIII da Declaração Americana; e dos artigos 8 e 25, em relação com o artigo 1.2 da Convenção, a partir da adesão brasileira, em prejuízo de Iron Silva, Luis Cruz, de seus familiares e também dos trabalhadores Adailton Martins dos Reis e José Soriano da Costa.
Por fim, considerou que a aplicação da figura da prescrição pelo Brasil fez com que o país incorresse em violação aos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção, em relação às obrigações estabelecidas no artigo 1.1 e no artigo 2 do mesmo instrumento, em prejuízo dos jovens Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, de seus familiares, incluindo José Teodoro da Silva e Miguel Ferreira da Cruz, além de Adailton Martins dos Reis e José Soriano da Costa, bem como dos trabalhadores que estavam na Fazenda Brasil Verde durante as fiscalizações de 1997.
A Comissão Interamericana fez ao todo nove recomendações para o Brasil. Recomendou a reparação das violações “tanto no aspecto material como moral”, em especial assegurando que fossem “restituídos às vítimas os salários devidos pelo trabalho realizado, bem como os montantes ilegalmente subtraídos deles”, retirando o valor dos ganhos ilegais dos proprietários das fazendas, se fosse o caso.
Solicitou que o país investigasse os fatos com relação ao trabalho escravo e relacionados ao desaparecimento de Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, e que conduzisse as investigações “de maneira imparcial, eficaz e dentro de um prazo razoável, com o objetivo de esclarecer os fatos de forma completa, identificar os responsáveis e impor as sanções pertinentes”.
Recomendou que o país providenciasse “as medidas administrativas, disciplinares ou penais pertinentes relativas às ações ou omissões dos funcionários estatais que contribuíram para a denegação de justiça e impunidade em que se encontram os fatos do caso”. Solicitou que o Brasil estabelecesse um mecanismo que facilitasse a localização de vítimas de trabalho escravo, “assim como de Iron Canuto da Silva, Luis Ferreira da Cruz, Adailton Martins dos Reis, José Soriano da Costa, bem como os familiares dos dois primeiros, José Teodoro da Silva e Miguel Ferreira da Cruz, a fim de repará-los”.
Recomendou que o país continuasse a implementar políticas públicas “voltadas à erradicação do trabalho escravo”, e que monitorasse “a aplicação e punição de pessoas responsáveis pelo trabalho escravo, em todos os níveis”. Além disso, solicitou que o Brasil fortalecesse o sistema jurídico e criasse mecanismos de coordenação “entre a jurisdição penal e a jurisdição trabalhista para superar os vazios existentes na investigação, processamento e punição das pessoas responsáveis pelos delitos de servidão e trabalho forçado”.
O órgão recomendou que o Estado zelasse “pelo estrito cumprimento das leis trabalhistas relativas às jornadas trabalhistas e ao pagamento em igualdade com os demais trabalhadores assalariados” e que adotasse “as medidas necessárias para erradicar todo tipo de discriminação racial”, especialmente com a realização de campanhas para conscientizar a população nacional e funcionários do Estado “a respeito da discriminação e da sujeição à servidão e ao trabalho forçado”.
Após a concessão de dez extensões de prazo, a CIDH considerou que o país não havia avançado de maneira concreta no cumprimento das recomendações, em especial quanto à reparação das vítimas e à investigação dos fatos do caso. Com base nisso, o órgão resolveu remeter o caso à Corte Interamericana.
Na Corte
A Comissão Interamericana remeteu o caso à Corte em 4 de março de 2015. Para a CIDH, além da necessidade de obtenção de justiça, o caso representava “uma oportunidade para que a Corte lnteramericana [desenvolvesse] jurisprudência sobre o trabalho forçado e as formas contemporâneas de escravidão” e abordasse “as circunstâncias em que um Estado pode comprometer sua responsabilidade internacional pela existência deste tipo de práticas”, especialmente no que se refere ao “alcance do dever de prevenção de atos desta natureza por parte de particulares, bem como o alcance do dever de investigar e punir estas violações”.
Em sua demanda, a Comissão Interamericana solicitou que o Tribunal declarasse a responsabilidade internacional do Brasil pela maior parte das violações incluídas no Relatório de Admissibilidade e Mérito de novembro de 2011, e que ordenasse ao Estado, como medidas de reparação, as mesmas recomendações incluídas no relatório.
Considerando a data de reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil, em 10 de dezembro de 1998, a CIDH submeteu ao Tribunal especificamente “as ações e omissões estatais” que ocorreram ou continuaram ocorrendo após esse marco temporal: a situação de trabalho forçado e servidão por dívidas análoga à escravidão a partir do reconhecimento da competência; as ações e omissões que levaram à situação de impunidade da totalidade dos fatos do caso, que continuava vigente; os desaparecimentos de Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, que também continuaram além da data de aceitação da competência da Corte.
Em seus escritos, os representantes solicitaram que fosse declarada a responsabilidade internacional do Estado pela violação dos deveres previstos no artigo 6 (proibição da escravidão e da servidão) da Convenção, em relação com direitos previstos nos artigos 3 (reconhecimento da personalidade jurídica), 5 (integridade pessoal), 7 (liberdade pessoal), 11 (proteção da honra e da dignidade) e 22 (circulação e residência), agravados pelo descumprimento das obrigações estabelecidas nos artigos 1.1 (respeitar e garantir) e 19 (direitos da criança), em prejuízo das pessoas que se encontravam trabalhando na Fazenda Brasil Verde, a partir da aceitação da competência contenciosa da Corte, em 1998. Também em relação a essas pessoas, indicou violação dos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial), em relação com o artigo 1.1 da Convenção.
Em relação ao jovem desaparecido Luis Ferreira da Cruz, pediu que o Estado fosse considerado responsável por violar os artigos 3, 4 (direito à vida), 5 e 7 da Convenção, em conexão com os artigos 1.1, 8 e 25, e também pela violação dos artigos 5, 8 e 25, em conexão com o artigo 1.1, em prejuízo dos familiares de Luis. Por fim, apontou violação continuada dos direitos contemplados nos artigos 8 e 25 da Convenção, em prejuízo das pessoas que se encontravam trabalhando na Fazenda Brasil Verde antes de 1998.
Uma peculiaridade do Caso Fazenda Brasil Verde, em comparação com outros litígios envolvendo o Brasil, foi a realização de uma diligência in situ. Considerando que havia controvérsia em relação a alguns fatos analisados no caso, a Corte estabeleceu a realização de diligências presenciais no país. Entre os dias 6 e 7 de junho de 2016, uma delegação do Tribunal veio ao Brasil colher declarações de cinco supostas vítimas e também colher as declarações, à título informativo, de cinco funcionários estatais responsáveis pelo combate à escravidão no Brasil.
Exceções Preliminares
Na fase de contestação do processo, o Estado brasileiro interpôs dez exceções preliminares – recurso utilizado para evitar o julgamento de mérito pelo Tribunal de parte ou da totalidade da demanda. Todas essas foram julgadas juntamente com o mérito.
Em primeiro lugar, o Brasil alegou que a publicação do Relatório de Mérito pela Comissão Interamericana impediria a análise do mérito do caso pela Corte, “dado que a Convenção autoriza a Comissão a emitir um relatório definitivo e eventualmente publicá-lo, ou então submetê-lo à jurisdição da Corte, possibilidades estas que são excludentes entre si”.
Em sua decisão, o Tribunal esclareceu que a Convenção Americana prevê dois relatórios distintos: um preliminar (artigo 50) e o outro definitivo (artigo 51). Como corretamente explicitado na argumentação brasileira, o relatório definitivo não pode ser publicado caso a Comissão decida submeter o caso à jurisdição da Corte. Acontece que, para os juízes, o relatório publicado pela CIDH foi o preliminar, que pode ser divulgado após a submissão do caso ao Tribunal. O Brasil alegou também que esse relatório teria sido publicado antes do envio do caso, mas não apresentou provas. Considerando esses fatos, a Corte rejeitou a exceção preliminar.
Na segunda exceção preliminar, o país alegou incompetência ratione personae de vários “grupos” de supostas vítimas: não identificadas ou com inconsistências nas identificações; identificadas mas que não concederam procuração; que não figuravam no Relatório de Mérito da Comissão ou que não estavam relacionadas aos fatos do caso. Com isso, o Brasil objetivava que a Corte somente exercesse sua competência em relação às 18 supostas vítimas “devidamente representadas, identificadas e relacionadas” no Relatório de Admissibilidade da CIDH, e não em relação a todos os apontados.
Na decisão, o órgão apontou que “o artigo 35.2 de seu Regulamento estabelece que quando se justificar que não foi possível identificar alguma suposta vítima dos fatos do caso, em casos de violações massivas ou coletivas, o Tribunal decidirá em sua oportunidade se as considerará como vítimas, em atenção à natureza da violação”, destacando vasta jurisprudência da própria Corte. Considerando a complexidade e as dificuldades do caso, o tempo transcorrido e alguns atos de omissão atribuíveis ao Estado, o Tribunal resolveu aplicar o artigo 35.2 e rejeitar a exceção preliminar.
Na terceira exceção, o Estado alegou novamente incompetência ratione personae, dessa vez afirmando que a Corte não tinha competência para analisar a demanda dos representantes de que o país fosse condenado a adotar medidas legislativas para evitar um retrocesso no combate ao trabalho escravo, “porque esse pedido estaria condicionado à existência de projetos de lei que busquem reformar o artigo 149 do Código Penal e estes projetos não foram promulgados”. O Tribunal considerou que a controvérsia proposta pelo Brasil cabia à análise de mérito, e rejeitou a exceção preliminar.
O quarto e o quinto ponto questionados pelo Brasil foram supostas incompetência ratione temporis. Nas alegações, o país afirmou que a Corte não tinha competência para analisar fatos anteriores à data de reconhecimento da jurisdição da Corte e fatos anteriores à adesão do Estado à Convenção. De acordo com a defesa brasileira, o Tribunal só teria competência para analisar as possíveis violações relacionadas a fatos identificados na fiscalização do ano 2000. Além disso, quanto às supostas violações aos direitos de proteção e garantias judiciais, argumentou que a Corte só teria competência para analisar os processos penais iniciados depois do reconhecimento da jurisdição do órgão.
Em sua decisão, o Tribunal considerou as exceções “parcialmente fundadas”. A Corte estabeleceu ter competência para analisar os fatos ocorridos a partir de 10 de dezembro de 1998, quando o país reconheceu sua jurisprudência. Além disso, considerou-se competente para analisar fatos e omissões do Estado que ocorreram durante as investigações e processos relacionados à fiscalização realizada na Fazenda Brasil Verde em 1997. Por fim, afirmou ter competência para analisar o alegado desaparecimento forçado de Luis Ferreira da Cruz e de Iron Canuto da Silva, já que essa é uma violação de caráter permanente ou continuado.
Na sexta exceção, o país alegou incompetência ratione materiae por violação ao princípio de subsidiariedade do sistema interamericano. Na visão da defesa, “os recursos judiciais internos foram devidamente concluídos pelas autoridades competentes e (...) a discordância dos representantes em relação às conclusões a que chegaram as autoridades não é suficiente para acudir ao sistema interamericano”. Segundo a alegação, a Corte atuaria como tribunal de quarta instância se procedesse à análise.
Para o Tribunal, “nem a Comissão nem os representantes solicitaram a revisão de decisões internas relacionadas com valoração de provas, dos fatos ou da aplicação do direito interno” – o que caracterizaria a Corte como tribunal de quarta instância. O órgão considerou que era objeto do mérito a análise das alegações do Estado de que os processos judiciais foram idôneos e, com base nisso, rejeitou a exceção preliminar.
Já na sétima exceção brasileira, o país alegou incompetência ratione materiae relativa a supostas violações da proibição do tráfico de pessoas, apontando que a Convenção só abrange proibição ao tráfico de escravos e de mulheres. Para o Brasil, a Corte não possuía competência para analisar uma suposta violação dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado em matéria de prevenção e combate ao tráfico de pessoas.
Em sua decisão, o Tribunal apontou que “nem a Comissão nem os representantes solicitaram à Corte que o Estado seja declarado responsável por possíveis violações a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em relação a outros tratados internacionais”. Ressaltou também que “ao examinar a compatibilidade das condutas ou normas estatais com a Convenção, a Corte pode interpretar, à luz de outros tratados, as obrigações e os direitos contidos neste instrumento”. Com base nisso, o Tribunal rejeitou a alegação, apontando que a interpretação do alcance do artigo 6 da Convenção correspondia à análise do mérito.
Na oitava exceção preliminar, o Brasil defendeu existir incompetência ratione materiae sobre supostas violações de direitos trabalhistas. Para a defesa, o Protocolo Adicional à Convenção Americana em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador) só permite petições relacionadas aos direitos de associação sindical e educação e, portanto, a Corte não teria competência para analisar suposta violação de direitos trabalhistas.
O Tribunal rejeitou a exceção, apontando que uma eventual violação de disposições do Protocolo de San Salvador não era objeto do litígio e que a violação ou não do artigo 6 correspondia à análise de mérito.
Na nona exceção, o país alegou falta de esgotamento prévio dos recursos internos, solicitando também a inadmissibilidade do caso quanto às petições de reparação por danos materiais e morais.
Na decisão, a Corte destacou que o momento oportuno para essa alegação é antes da análise de admissibilidade da petição pela Comissão Interamericana. Além disso, os juízes consideraram que, perante a CIDH, o Estado “não especificou os recursos internos pendentes de esgotamento ou que estavam em curso, nem expôs as razões pelas quais considerava que eram procedentes e efetivos”, requisito para tal alegação. Com base nisso, também considerou a exceção improcedente.
Em sua décima exceção preliminar, o Brasil alegou prescrição do pedido de reparação por danos morais e materiais apresentado perante a Comissão no que diz respeito às possíveis violações ocorridas em 1988, 1992, 1996 e 1997.
A Corte também negou essa alegação, apontando que ela não foi interposta pelo Estado durante o trâmite de admissibilidade da petição perante a Comissão e que era, portanto, extemporânea.
Em suas alegações finais escritas, o Brasil apresentou uma 11ª exceção preliminar, apontando uma suposta incompetência da Corte a respeito das ações de fiscalização realizadas nos anos de 1999 e 2002. Essa exceção não foi julgada pelo Tribunal, por ter sido apresentada de forma extemporânea.
Determinação das vítimas
Em sua análise do caso, a Corte Interamericana considerou os fatos ocorridos ou que persistiam após o reconhecimento de sua competência pelo Brasil, em 10 de dezembro de 1998: a investigação e os processos iniciados como consequência da fiscalização realizada em abril de 1997 na fazenda; a fiscalização realizada em março de 2000 e a respectiva investigação iniciada posteriormente; e o alegado desaparecimento forçado de Luis Ferreira da Cruz e de Iron Canuto da Silva.
Dada a complexidade na identificação e localização das vítimas de trabalho escravo que estavam na Brasil Verde nas fiscalizações de 1997 e 2000, e considerando haver divergências nas listas de vítimas apresentadas pelas partes e pela Comissão, a Corte aplicou a exceção prevista no artigo 35.2 de seu Regulamento. Com isso, o próprio órgão determinou quem eram as vítimas do caso em questão.
Em relação à 1997, o Relatório de Mérito da CIDH afirmou que 81 trabalhadores estavam na Fazenda Brasil Verde no momento da fiscalização, mas que somente havia conseguido identificar 59 nomes, sendo que 12 desses haviam sido identificados mediante contas informais de dívidas adquiridas pelos trabalhadores com o empregador.
Na sentença, a Corte considerou como vítimas 45 dos 81 trabalhadores, estabelecendo como elementos probatórios o auto de infração da fiscalização, o registro de empregado pela Fazenda, o termo de rescisão de contrato, o formulário para verificação física e a lista de trabalhadores indicados pela defesa do gerente e do gato no processo penal interno. Em sua decisão quanto à fiscalização de 1997, o Tribunal também rejeitou o argumento do Estado de que apenas poderiam ser consideradas como supostas vítimas os trabalhadores que foram efetivamente resgatados por agentes estatais na propriedade rural.
Já quanto à 2000, o Relatório de Mérito da CIDH levou em consideração a presença de 82 trabalhadores durante a fiscalização. Em seus escritos, os representantes das vítimas acrescentaram três outras vítimas, chegando a 85 nomes. O Estado, por sua vez, alegou que parte dos trabalhadores haviam sido encontrados na Fazenda San Carlos, e que não deveriam ser considerados no presente caso.
A Corte Interamericana descartou a argumentação brasileira e, com base nos mesmos elementos probatórios utilizados quanto à fiscalização de 1997, estabeleceu 85 trabalhadores como vítimas.
Supostas violações analisadas pela Corte
Artigo 6.1, em relação com os artigos 1.1, 3, 5, 7, 11, 22 e também 19
Em sua petição à Corte, a Comissão Interamericana ressaltou que o Direito Internacional proíbe a escravidão, a servidão, o trabalho forçado e outras práticas análogas à escravidão e que essa probição está estabelecida na Convenção Americana. A CIDH explicou o conceito contemporâneo de escravidão e afirmou que os fatos relacionados à Fazenda Brasil Verde correspondiam a essa caracterização. Destacou também que o Brasil tinha conhecimento da situação da propriedade rural e que todos os requisitos para estabelecer a responsabilidade do país por omissão estavam cumpridos. Com base nisso, solicitou que o Brasil fosse condenado pela violação do artigo 6 da Convenção, em relação com os artigos 5, 7, 22 e 1.1, em prejuízo dos trabalhadores identificados na fiscalização de 2000, apontando que o país não adotou medidas suficientes e efetivas para garantir, sem discriminação, os direitos desses trabalhadores.
Os representantes das vítimas também ressaltaram que a proibição do trabalho escravo é uma obrigação de jus cogens no Direito Internacional e listaram os atributos principais da escravidão contemporânea. Para eles, ficou caracterizada a situação de escravidão e também de tráfico de pessoas quanto à Fazenda Brasil Verde. Em seus escritos, destacaram que certas deficiências probatórias do caso se deviam à falta de diligência estatal ao fiscalizar e investigar a fazenda, sendo a prática de trabalho escravo estrutural e tolerada no Brasil. Além das violações apontadas pela CIDH, os representantes também solicitaram que o país fosse condenado por descumprir os direitos previstos nos artigos 3, 11 e 24 da Convenção.
Em sua defesa, o Brasil afirmou que não havia provas de que existiu escravidão, trabalho forçado ou servidão na Fazenda Brasil Verde após a aceitação da jurisdição da Corte, destacando que a fiscalização de 2000 constatou uma situação de trabalho degradante e violações trabalhistas, mas que não foi encontrada nenhuma privação de liberdade nem o exercício de nenhuma das faculdades do domínio sobre os trabalhadores resgatados. Alegou também que o Estado não pode ser considerado responsável por toda violação de direitos humanos cometida por particulares em seu território, e que não havia provas de participação ou anuência de agentes estatais no caso. Argumentou que a Corte deveria se limitar a analisar a escravidão, a servidão e o trabalho forçado de acordo com o Direito Internacional e não de acordo com o direito interno brasileiro, que possuiria definição muito amplas desses conceitos. Por fim, também afirmou cumprir todos os padrões internacionais para a prevenção e erradicação do trabalho escravo, destacando uma série de políticas públicas implementadas desde o ano de 2002.
O direito a não ser submetido a escravidão, servidão, trabalho forçado ou tráfico de escravos e mulheres, previsto no artigo 6 da Convenção Americana, faz parte do núcleo inderrogável de direitos do tratado, pois não pode ser suspenso em casos de guerra, perigo público ou outras ameaças. O caso Fazenda Brasil Verde foi a primeira oportunidade da Corte Interamericana de julgar um caso de trabalho escravo e, por conta disso, a decisão analisa longamente a evolução desse conceito e dos demais estabelecidos pelo artigo 6, à luz do Direito Internacional.
Os juízes destacaram que o primeiro tratado universal sobre a matéria foi a Convenção sobre Escravatura, de 1926. Trinta anos depois, a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura ampliou a definição de escravidão ao incluir dentro da proibição absoluta outorgada à escravidão também as “instituições e práticas análogas à escravidão”, como a servidão por dívidas e a servidão, entre outras.
A decisão faz menção a uma série de instrumentos que estabelecem a proibição da escravidão, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Europeia de Direitos do Homem e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Também destaca menção à proibição da escravidão e suas práticas análogas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e sua inclusão ou menção em tribunais penais internacionais.
De acordo com a definição da Câmara de Apelações do Tribunal Penal Internacional Ad Hoc para a antiga Iugoslávia, a escravidão é “o exercício de algum ou de todos os poderes que decorrem do direito de propriedade sobre uma pessoa”. Nesse mesmo sentido, a Corte Interamericana destacou pronunciamentos do Comitê CEDAW [Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em português] das Nações Unidas, do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, da Relatora Especial das Nações Unidas sobre Tráfico de Pessoas, do Escritório do Alto Comissário dos Direitos Humanos das Nações Unidas e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Após revisitar o entendimento de diversos órgãos relacionados aos direitos humanos, a Corte passou a estabelecer sua definição do conceito de escravidão, determinando como elementos fundamentais: “o estado ou condição de um indivíduo”, sendo que não é necessária “a existência de um documento formal ou de uma norma jurídica para a caracterização desse fenômeno”; e o “exercício de algum dos atributos do direito de propriedade, isto é, que o escravizador exerça poder ou controle sobre a pessoa escravizada ao ponto de anular a personalidade da vítima”.
Em relação ao “exercício de atributos da propriedade”, o Tribunal elencou oito elementos: restrição ou controle da autonomia individual; perda ou restrição da liberdade de movimento de uma pessoa; obtenção de um benefício por parte do perpetrador; ausência de consentimento ou de livre arbítrio da vítima, ou sua impossibilidade ou irrelevância devido à ameaça de uso da violência ou outras formas de coerção, o medo de violência, fraude ou falsas promessas; uso de violência física ou psicológica; posição de vulnerabilidade da vítima; detenção ou cativeiro; e exploração.
De acordo com o entendimento dos juízes, uma situação de escravidão, “representa uma restrição substantiva da personalidade jurídica do ser humano e poderia representar, ademais, violações aos direitos à integridade pessoal, à liberdade pessoal e à dignidade, entre outros, dependendo das circunstâncias específicas de cada caso.
O Tribunal também estabeleceu que “a servidão é uma forma análoga à escravidão e deve receber a mesma proteção e projetar as mesmas obrigações que a escravidão tradicional”. Para elucidar o conceito, pegou emprestada a definição dada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, considerando que “servidão”, conforme expresso no artigo 6.1 da Convenção Americana, deve ser interpretada como “a obrigação de realizar trabalho para outros, imposto por meio de coerção, e a obrigação de viver na propriedade de outra pessoa, sem a possibilidade de alterar essa condição”.
Com base no desenvolvimento do Direito Internacional, a Corte também determinou que “a expressão ‘tráfico de escravos e de mulheres’ do artigo 6.1 da Convenção Americana deve ser interpretada de maneira ampla para referir-se ao ‘tráfico de pessoas’”, ressaltando que a Convenção proíbe a prática “em todas as suas formas”.
O Tribunal estabeleceu que essa proibição refere-se a: o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas; recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à uma situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios, para obter o consentimento de uma pessoa a fim de que se tenha autoridade sobre ela, se agravando quando a pessoa for menor de idade; com qualquer fim de exploração.
Sobre o trabalho forçado ou obrigatório, proibido pelo artigo 6.2 da Convenção, a Corte reiterou seu pronunciamento sobre o conteúdo e alcance da norma em caso anterior, quando estabeleceu dois elementos básicos: que o trabalho ou serviço seja exigido ‘sob ameaça de uma pena’ e que sejam realizados de forma involuntária, sendo que é necessário que uma suposta violação a esse artigo seja atribuível a agentes do Estado, por ação ou omissão.
Voltando sua análise para o caso Brasil Verde, a Corte destacou não haver controvérsia sobre “a evolução histórica do fenômeno da escravidão no Brasil, em particular no ambiente rural”, sobre a ocorrência de trabalho escravo no país, inclusive na fazenda em questão. Ressaltou também que não houve participação ativa e direta de agentes estatais na submissão dos trabalhadores, estando essa a cargo de terceiros particulares.
Com base nos fatos apresentados pelas partes, os juízes declararam haver “a evidente existência de um mecanismo de aliciamento de trabalhadores através de fraudes e enganos”, destacando as condições degradantes e a falta de perspectiva de poder sair daquela situação. Estabeleceram também que esses haviam sido vítimas de tráfico de pessoas.
O Tribunal considerou “que os trabalhadores resgatados da Fazenda Brasil Verde [na fiscalização de 2000] se encontravam em uma situação de servidão por dívida e de submissão a trabalhos forçados” e, mais do que isso, as características específicas “ultrapassavam os elementos da servidão por dívida e de trabalho forçado, para atingir e cumprir os elementos mais estritos da definição de escravidão estabelecida pela Corte, em particular o exercício de controle como manifestação do direito de propriedade”.
A decisão também destacou o “caráter pluriofensivo da escravidão”, em que as pessoas submetidas a essa condição têm violados vários direitos individualmente. No presente caso, a Corte constatou violação à integridade e à liberdade pessoais, tratamentos indignos e limitação da liberdade de circulação como “elementos constitutivos da escravidão”. Por conta disso, optou por não fazer pronunciamento individual a respeito dos outros direitos alegados pelos representantes.
Quanto à argumentação da defesa brasileira de que o Tribunal deveria limitar sua análise sobre escravidão ao estabelecido no Direito Internacional e não de acordo com o direito interno brasileiro, que seria demasiadamente amplo, a Corte refutou a alegação. Primeiro, destacou que as normas brasileiras que valiam quando da fiscalização de 2000 eram anteriores à reforma do tipo penal, ocorrida somente em 2003. Mais do que isso, ressaltou que “se um país adota normas que sejam mais protetoras à pessoa humana, como se poderia entender a proibição da escravidão no ordenamento jurídico brasileiro a partir de 2003, o Tribunal não poderia restringir sua análise da situação específica com base em uma norma que ofereça menos proteção”.
Em relação à responsabilidade estatal no caso em questão, a Corte reiterou que “não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas é imperativa a adoção de medidas positivas”. Constatou que, apesar do Brasil ter “pleno conhecimento do risco sofridos pelos trabalhadores submetidos à escravidão ou trabalho forçado”, especificamente na Fazenda Brasil Verde, “não demonstrou ter adotado medidas efetivas de prevenção antes de março de 2000 no sentido de impedir essa prática”.
Além disso, o Tribunal também considerou que “o Estado não demonstrou que as políticas públicas adotadas entre 1995 e 2000 e as fiscalizações anteriores (...) foram suficientes e efetivas para prevenir a submissão de 85 trabalhadores à escravidão na Fazenda Brasil Verde”. Por fim, destacou que “ante a denúncia de violência e de submissão à situação de escravidão, o Estado não reagiu com a devida diligência requerida em virtude da gravidade dos fatos, da situação de vulnerabilidade das vítimas e de sua obrigação internacional de prevenir a escravidão”.
Para os juízes, a responsabilidade do Estado se agrava ainda mais porque Antônio Francisco da Silva, um dos trabalhadores que fugiu da Brasil Verde em 2000, era menor de 18 anos na época. A decisão suscitou a Convenção 182 da OIT, que coloca a escravidão e suas práticas análogas como “as piores formas de trabalho infantil”, ressaltando que o país “deveria ter adotado as medidas eficazes para por fim à situação de escravidão identificada e para assegurar a reabilitação e inserção social [do jovem], bem como assegurar seu acesso à educação básica primária e, caso fosse possível, à formação profissional”,
A Corte considerou que o Brasil não demonstrou ter adotado “as medidas específicas para prevenir a ocorrência da violação ao artigo 6.1” e “não atuou com prontidão durante as primeiras horas e dias após a denúncia de escravidão e violência” feita pelos jovens que fugiram da propriedade rural. Em síntese, o Tribunal destacou que o país “não atuou com a devida diligência requerida para prevenir adequadamente a forma contemporânea de escravidão constatada no presente caso e que não atuou como razoavelmente era de se esperar, de acordo com as circunstâncias do caso, para por fim a esse tipo de violação”.
Com base nisso, os juízes estabeleceram que o Estado “violou o direito a não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas, em violação do artigo 6.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1, 3, 5, 7, 11 e 22 do mesmo instrumento, em prejuízo dos 85 trabalhadores resgatados em 15 de março de 2000 na Fazenda Brasil Verde”. Consideraram também que, quanto a Antônio Francisco da Silva, “essa violação ocorreu também em relação ao artigo 19 da Convenção Americana, por ser criança no momento dos fatos”. Por fim, estabeleceram violação do artigo 6.1, em relação com o artigo 1.1 “no marco de uma situação de discriminação estrutural histórica em razão da posição econômica dos 85 trabalhadores”.
Artigos 8 e 25, em relação com o artigo 1.1
Em sua petição, a Comissão Interamericana apontou que o Estado brasileiro era responsável por não adotar medidas para tutelar as garantias judiciais dentro de um prazo razoável, não tendo cumprido seu dever de prevenir e investigar o trabalho escravo, mesmo tendo conhecimento da situação. Também apontou responsabilidade do Brasil pela violação do artigo 25 da Convenção, já que as vítimas não tiveram mecanismos judiciais efetivos para a proteção de seus direitos, a punição dos responsáveis e a obtenção de uma reparação. Destacou, por fim, que a prescrição dos delitos de submissão a trabalho escravo é incompatível com as obrigações internacionais do Estado brasileiro.
Os representantes das vítimas seguiram linha semelhante à adotada pela CIDH, ressaltando que o Brasil não atuou com a urgência que o caso merecia, no sentido de retirar as vítimas da situação de violação. Além disso, destacou que ainda persistia a impunidade em relação aos fatos denunciados, solicitando que o país fosse considerado culpado pela “violação contínua” das garantias judiciais também das pessoas que se encontravam na Fazenda Brasil Verde antes do reconhecimento da competência da Corte pelo país. Apontaram, adicionalmente, que as vítimas não receberam proteção em relação a sua segurança física, não foram orientadas adequadamente e não tiveram participação no processo jurídico.
Em sua defesa, o Brasil argumentou que a Comissão não havia explicado de maneira clara em que consistiu a violação à obrigação de observar as garantias judiciais. Afirmou ter atuado com a devida diligência durante as visitas de fiscalização à Fazenda Brasil Verde e que existiam elementos que justificavam a demora no processo penal iniciado em 1997. Além disso, argumentou que os procedimentos de investigação conduzidos pelo Ministério Público eram instrumentos adequados e efetivos para a investigação e persecução penal.
Pela limitação temporal do reconhecimento de sua competência, a Corte analisou no caso em questão apenas os fatos e os processos relativos à fiscalização de 1997 e a de 2000, excluindo da análise uma eventual violação de direitos referentes às fiscalizações ocorridas em anos anteriores. Na decisão, o Tribunal abordou quatro aspectos alegados pela Comissão e pelos representantes: falta de diligência, violação ao prazo razoável no processo penal, ausência de proteção judicial efetiva e o desaparecimento de Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz.
Quanto ao primeiro ponto, a Corte ressaltou que o caso pedia uma “devida diligência excepcional”, em razão da “particular situação de vulnerabilidade em que se encontravam os trabalhadores da Fazenda Brasil Verde e da extrema gravidade da situação denunciada ao Estado”, que não foi cumprida pelo país. Para os juízes, “ocorreu uma demora no desenvolvimento do processo e (...) os conflitos de competência e a falta de atuação diligente por parte das autoridades judiciais causaram atrasos no processo penal''. Com base nisso, o Tribunal Corte concluiu “que o Estado violou a garantia judicial de devida diligência, prevista no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo dos 43 trabalhadores da Fazenda Brasil Verde encontrados durante a fiscalização de 23 de abril de 1997”.
Em relação à violação ao prazo razoável, o órgão afirmou não ter encontrado “motivos particulares que poderiam justificar uma complexidade especial no caso analisado” ou explicações para a “inação das autoridades judiciais nem o atraso derivado dos conflitos de competência”. Ressaltou que os trabalhadores encontrados na fiscalização de 1997 não puderam participar dos processos judiciais e destacou que “as autoridades não buscaram o avanço do processo de forma diligente, o que culminou na prescrição da ação penal”. Por fim, apontou que, como consequência da falta de resolução, "a concessão de reparações não ocorreu, causando uma afetação aos mencionados trabalhadores, os quais não receberam nenhum tipo de indenização”. Tendo isso em vista, concluiu que “o Estado violou a garantia judicial ao prazo razoável, prevista no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento”, em prejuízo dos trabalhadores da fiscalização de 1997.
Em sua análise sobre a alegada ausência de proteção judicial efetiva, o Tribunal levou em consideração duas ações penais, uma ação civil e um procedimento trabalhista, iniciados em 1997, 2000 e 2001. Para a Corte, “apesar da extrema gravidade dos fatos denunciados”, nenhum desses procedimentos analisou o mérito da questão, determinou responsabilidades ou puniu adequadamente os responsáveis, ofereceu mecanismo de reparação ou teve impacto em prevenir que as violações continuassem. A decisão destacou também que “diante da presença de vítimas que eram menores de idade e do conhecimento do Estado sobre esta situação, sua responsabilidade de prover um recurso simples e efetivo para a proteção de seus direitos era ainda maior”.
Na decisão, os juízes também apontaram que “a prescrição dos delitos de submissão à condição de escravo e suas formas análogas é incompatível com a obrigação do Estado brasileiro de adaptar sua normativa interna de acordo aos padrões internacionais”. Além disso, ressaltaram que a aplicação da prescrição no caso em questão “constituiu um obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas”.
Por fim, a Corte apontou que os trabalhadores resgatados compartilhavam “algumas características de particular vitimização” e que essas “os tornava mais suscetíveis de serem aliciados mediante falsas promessas e enganos”. Assim, o órgão concluiu que a falta da devida diligência e de punição dos fatos “estava relacionada a uma ideia preconcebida de normalidade frente às condições às quais eram submetidos os trabalhadores das fazendas do norte e nordeste do Brasil”. Para o Tribunal, “esta ideia preconcebida resultou discriminatória em relação às vítimas do caso e teve um impacto na atuação das autoridades, obstaculizando a possibilidade de conduzir processos que sancionassem os responsáveis”.
Com base nisso, o órgão também considerou o país responsável pela violação do “direito à proteção judicial, previsto no artigo 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento”, em prejuízo dos 43 trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997 e dos 86 resgatados em 2000 que foram identificados na sentença. Em relação a Antônio Francisco da Silva, que era menor de idade quando denunciou os fatos, essa violação também está relacionada ao artigo 19.
Já quanto ao alegado desaparecimento de Iron Canuto da Silva e de Luis Ferreira da Cruz, a Corte destacou que não possuía competência para declarar uma violação à Convenção Americana em relação aos fatos que ocorreram logo após a denúncia do desaparecimento pela CPT e à alegada falta de diligência estatal para investigar o caso, já que ocorreram antes do reconhecimento pelo Brasil da jurisdição do órgão. Em relação aos fatos posteriores a esse marco temporal, o Tribunal ressaltou que “o Estado reabriu a investigação sobre o desaparecimento do senhor Iron Canuto da Silva em 2007 e constatou que não havia sido vítima de desaparecimento forçado”. Também apontou que, a partir das provas apresentadas pela Comissão e pelas partes, se encontrava “impossibilitada de concluir que Luis Ferreira da Cruz foi vítima de desaparecimento e, em consequência, não pode atribuir responsabilidade ao Estado pela falta de investigação e eventual sanção dos alegados responsáveis”.
Com base nisso, a Corte estabeleceu que “o Estado não é responsável pelas alegadas violações aos direitos à personalidade jurídica, à vida, à integridade e à liberdade pessoal, contemplados nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos direitos da criança, estabelecidos no artigo 19 do mesmo instrumento, em prejuízo de Iron Canuto da Silva e Luis Ferreira da Cruz, nem da violação dos artigos 8 e 25 do mesmo instrumento em prejuízo de seus familiares”.
Pontos resolutivos da sentença
Corte decide, por unanimidade:
- Rejeitar as exceções preliminares interpostas pelo Estado relativas à inadmissibilidade da submissão do caso à Corte em virtude da publicação do Relatório de Mérito por parte da Comissão; à incompetência ratione personae com respeito a supostas vítimas não identificadas, ou identificadas, mas que não concederam procuração, ou que não apareciam no Relatório de Mérito da Comissão ou que não estavam relacionadas aos fatos do caso; à incompetência ratione personae de violações em abstrato; à incompetência ratione materiae por violação ao princípio de subsidiariedade do Sistema Interamericano (fórmula da 4ª instância); à incompetência ratione materiae relativa a supostas violações da proibição de tráfico de pessoas; à incompetência ratione materiae sobre supostas violações de direitos trabalhistas; à falta de esgotamento prévio dos recursos internos e à prescrição da petição perante a Comissão em relação a pretensões de reparação de dano moral e material.
- Declarar parcialmente procedente a exceção preliminar interposta pelo Estado relativa à incompetência ratione temporis em relação a fatos anteriores à data de reconhecimento da jurisdição da Corte por parte do Estado e à incompetência ratione temporis sobre fatos anteriores à adesão do Estado à Convenção Americana.
Corte declara, por unanimidade:
- O Estado é responsável pela violação do direito a não ser submetido a escravidão e ao tráfico de pessoas, estabelecido no artigo 6.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1, 3, 5, 7, 11 e 22 do mesmo instrumento, em prejuízo dos 85 trabalhadores resgatados em 15 de março de 2000 na Fazenda Brasil Verde. Adicionalmente, em relação ao senhor Antônio Francisco da Silva, essa violação ocorreu também em relação ao artigo 19 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por ser criança no momento dos fatos.
Corte declara, por cinco votos a favor e um contrário (voto dissidente do juiz Sierra Porto):
- O Estado é responsável pela violação do artigo 6.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, produzida no marco de uma situação de discriminação estrutural histórica, em razão da posição econômica dos 85 trabalhadores identificados na sentença.
Corte declara, por unanimidade:
- O Estado é responsável por violar as garantias judiciais de devida diligência e de prazo razoável, previstas no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo dos 43 trabalhadores da Fazenda Brasil Verde encontrados durante a fiscalização de 23 de abril de 1997 e que foram identificados pela Corte na sentença.
Corte declara, por cinco votos a favor e um contrário (voto dissidente do juiz Sierra Porto):
- O Estado é responsável por violar o direito à proteção judicial, previsto no artigo 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento em prejuízo de: a) os 43 trabalhadores da Fazenda Brasil Verde encontrados durante a fiscalização de 23 de abril de 1997 e que foram identificados pela Corte no presente litígio b) os 85 trabalhadores da Fazenda Brasil Verde encontrados durante a fiscalização de 15 de março de 2000 e que foram identificados pela Corte no presente litígio. Adicionalmente, em relação ao senhor Antônio Francisco da Silva, essa violação ocorreu em relação ao artigo 19 da Convenção Americana.
Corte declara, por unanimidade:
- O Estado não é responsável pelas violações aos direitos à personalidade jurídica, à vida, à integridade e à liberdade pessoal, às garantias e à proteção judiciais, contemplados nos artigos 3, 4, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 19 do mesmo instrumento, em prejuízo de Luis Ferreira da Cruz e Iron Canuto da Silva nem de seus familiares.
Corte dispõe, por unanimidade:
- Esta Sentença constitui, per se, uma forma de reparação.
- O Estado deve reiniciar, com a devida diligência, as investigações e/ou processos penais relacionados aos fatos constatados em março de 2000 no presente caso para, em um prazo razoável, identificar, processar e, se for o caso, punir os responsáveis. Se for o caso, o Estado deve restabelecer (ou reconstruir) o processo penal 2001.39.01.000270-0, iniciado em 2001, perante a 2ª Vara de Justiça Federal de Marabá, Estado do Pará.
- O Estado deve realizar, no prazo de seis meses a partir da notificação da presente Sentença, as publicações indicadas na sentença.
- O Estado deve, dentro de um prazo razoável a partir da notificação da presente sentença, adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas formas análogas.
- O Estado deve pagar os montantes fixados na sentença, a título de indenizações por dano imaterial e de reembolso de custas e gastos [dentro do prazo de um ano, contado a partir da notificação da presente Sentença].
- O Estado deve, dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação desta sentença, apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para dar cumprimento à mesma.
- A Corte supervisionará o cumprimento integral desta Sentença, no exercício de suas atribuições e no cumprimento de seus deveres, em conformidade com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado total cumprimento ao disposto na mesma.
Os juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Eduardo Vio Grossi apresentaram votos individuais concordantes, enquanto o juiz Humberto Antônio Sierra Porto apresentou voto individual parcialmente discordante. Os votos podem ser lidos ao final da sentença da Corte.
Cumprimento da sentença
A Corte Interamericana publicou um relatório de supervisão do cumprimento da sentença em 22 de novembro de 2019. Também há um relatório brasileiro de maio de 2020, que pode ser lido neste link.
Ponto resolutivo 9 (investigação)
Em março de 2017, o Ministério Público Federal (MPF) reabriu a investigação referente à fiscalização de 2000 na Fazenda Brasil Verde, conforme previsto na sentença da Corte Interamericana. Ao longo das apurações, o MPF localizou 72 vítimas de 11 estados brasileiros, ouviu os acusados e testemunhas, e solicitou documentação a outros órgãos. Em janeiro de 2018, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar o caso.
Após a reabertura, as defesas do fazendeiro João Luiz Quagliato Neto e do gerente da propriedade rural na época dos fatos, Antônio Jorge Vieira, conhecido como “Toninho”, impetraram pedido de habeas corpus, com o objetivo de trancar a investigação. Em 12 de dezembro de 2018, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) negou a solicitação, descartando as teses de incompetência da Corte Interamericana para o julgamento, de suposta violação ao contraditório, à ampla defesa e à presunção de inocência. A decisão também ressaltou a imprescritibilidade do crime de trabalho escravo. Em 3 de junho do ano seguinte, o mesmo tribunal negou embargos de declaração movidos pela defesa.
Em 13 de setembro de 2019, o MPF em Redenção (PA) apresentou denúncia contra o fazendeiro e contra “Toninho”. O órgão os denunciou pelos crimes de redução à condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal), aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional (art. 207) e frustração de direito assegurado por lei trabalhista (art. 203). No documento, os procuradores da República pedem “concessão de prioridade” ao processo, em virtude da idade dos denunciados e “pela necessidade de o Brasil dar cumprimento célere e eficaz à sentença internacional” da Corte. Em 27 de janeiro de 2020, o juiz federal Hallisson Costa Glória, da 1ª Vara de Redenção, aceitou a denúncia do Ministério Público Federal. Não há nenhuma movimentação relevante desde então.
Em sua sentença, a Corte Interamericana também dispôs que “de acordo com a normativa disciplinar pertinente, o Estado examine as eventuais irregularidades processuais e investigativas relacionadas ao presente caso e, se for o caso, sancione a conduta dos servidores públicos correspondentes”. Até agora, o Brasil não abriu procedimento para cumprir a determinação.
O Réu Brasil questionou o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) sobre o cumprimento da determinação da Corte sobre eventuais irregularidades processuais. A pasta respondeu em nota, que não esclarece o questionamento feito pela reportagem:
“Foi criada a Força-Tarefa Brasil Verde no âmbito do Ministério Público Federal, em 27 de novembro de 2017, para atuar no Procedimento de Investigação Criminal nº 1.23.005.0000177/2017-62, instaurado para dar cumprimento à Sentença da Corte IDH no que se refere ao reinício das investigações relacionadas aos fatos constatados em março de 2000 (fiscalização do Ministério do Trabalho), e identificar, processar e, se for o caso, punir os responsáveis. Estão em curso os processos judiciais instaurados.”
Ponto resolutivo 10 (publicações)
O Brasil publicou o resumo oficial da sentença no Diário Oficial da União e no jornal O Globo em 16 de novembro de 2017 e em 3 de julho de 2018, respectivamente. O Estado também disponibilizou a íntegra da sentença no site da Advocacia-Geral da União, do Ministério das Relações Exteriores e do então Ministério de Direitos Humanos (MDH) em 17 de maio de 2017.
Adicionalmente, o país realizou o seminário “Impactos da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fazenda Brasil Verde”, promovido pela Escola Superior do Ministério Público da União (Esmpu), em conjunto com a Comissão para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), ligada ao MDH.
Ponto resolutivo 11 (fim da prescrição para escravidão)
Ainda não houve alteração na normativa interna brasileira para impedir que a prescrição seja aplicada ao delito de trabalho escravo e suas formas análogas.
Em abril de 2017, um grupo de dezenas de senadores de diversos partidos apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 14/2017, que visa alterar o artigo 5º da Constituição Federal brasileira, para estabelecer que a submissão de pessoa a condição análoga à escravidão constitui crime imprescritível. Em sua justificativa, a PEC faz menção à decisão da Corte Interamericana no caso Fazenda Brasil Verde, ressaltando que o país está submetido à jurisdição do órgão. A despeito da ampla lista de formuladores da proposta, ela sequer saiu da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, e acabou arquivada no fim da legislatura em 2018. A PEC pode ser desarquivada mediante solicitação de algum dos senadores que a apresentaram.
Na Câmara dos Deputados, a alteração pode ser realizada a partir do Projeto de Lei (PL) 301/2007, de autoria do deputado Dr. Rosinha (PT/PR), que define os crimes de genocídio, de guerra e contra a humanidade. Outro projeto de lei com o mesmo objetivo, o PL 4038/2008, de autoria do Poder Executivo, foi apensado à proposta anterior. A última movimentação do PL 301/2017 ocorreu em 2013.
Ponto resolutivo 12 (indenizações)
Ao todo, o Estado brasileiro foi condenado a pagar US$ 4,69 milhões às vítimas da Fazenda Brasil Verde, o equivalente a cerca de R$ 14,8 milhões, à época da sentença. Além do auxílio dos representantes, o país realizou uma série de iniciativas para localizar os trabalhadores identificados na sentença da Corte, incluindo a criação de um banco de dados das vítimas, a publicação de intimações no Diário Oficial da União e em jornais de circulação regional, o envio de cartas e a formação de um grupo de trabalho. O Estado também buscou auxílio da Secretaria Nacional de Assistência Social e da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
Até a publicação do relatório da Corte, em 22 de novembro de 2019, o Brasil havia efetuado o pagamento da indenização por dano imaterial de 72 das 128 vítimas identificadas na sentença, sendo 69 relativas à fiscalização de 2000 (US$ 40 mil para cada) e 3 relativas à de 1997 (U$ 30 mil para cada). Os valores em reais variam de acordo com a data de pagamento.
O país também informou que três indenizações estavam em processo de pagamento, sendo duas delas relativas à fiscalização de 2000 e a outra de 1997. Além disso, informou que seis das vítimas que não haviam recebido o montante faleceram e o pagamento dependia do processo sucessório – quatro dessas eram relativas à fiscalização de 2000 e duas de 1997.
A reportagem questionou o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) se novos pagamentos foram realizados desde então. A pasta respondeu em nota, no dia 10 de dezembro de 2020:
“O Estado brasileiro já realizou o pagamento das indenizações devidas a 72 vítimas. Também houve o ajuizamento de ações de cumprimento de obrigação internacional (ACOI) para pagamento das indenizações aos herdeiros das vítimas falecidas.”
Em relação ao reembolso de custos e gastos, o Brasil efetuou o pagamento de US$ 50 mil ao Cejil e de US$ 5 mil à Comissão Pastoral da Terra (CPT) em dezembro de 2017. Os valores equivaliam, à época, a R$ 161,7 mil e R$ 16,1 mil, respectivamente.
Trabalho escravo
Apesar dos avanços brasileiros no combate ao trabalho escravo, o país está longe de acabar com a prática. Entre 2003 e 2018, cerca de 45 mil trabalhadores foram resgatados no país. Somente em 2019, foram 1.054 novas vítimas.
Em seus escritos perante à Corte, os representantes fizeram menção a um projeto de lei apresentado em 2013 que vai na contramão dos avanços internos. A proposta tentava reduzir o alcance do delito de trabalho escravo ao eliminar as menções à “jornada exaustiva” e a “condições degradantes de trabalho”. O Projeto de Lei do Senado (PLS) 432/2013 motivou a produção de uma nota técnica pela 2ª Câmara Criminal do Ministério Público Federal (2CCR/MPF) em 2017, que caracterizou a proposta como “retrocesso social”. O PLS 432/2013 foi arquivado com o fim da legislatura, em 2018.
Em outubro de 2017, o governo federal de Michel Temer publicou portaria que reduzia o alcance do conceito de trabalho escravo e impunha obstáculos à publicação da Lista Suja do Trabalho Escravo. A medida, criticada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e por organizações de direitos humanos, foi suspensa pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), por ir contra o ordenamento jurídico brasileiro, os tratados internacionais celebrados pelo Brasil e a jurisprudência dos tribunais. Em dezembro do mesmo ano, o governo voltou atrás e publicou nova portaria, retomando o conceito anterior de trabalho escravo.
Em janeiro de 2018, a Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias) ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o STF, com o objetivo de barrar a publicação da Lista Suja, atualmente prevista pela Portaria Interministerial nº 4 de 2016. A Abrainc já havia tentado impugnar o mecanismo em 2011, mas a ação movida à época foi negada após a portaria que era questionada ser substituída.
Em memorial enviado ao Supremo, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o procurador-geral do Trabalho, Alberto Balazeiro, defenderam que a ADPF 509, movida pela Abrainc, fosse julgada improcedente. No documento, os procuradores ressaltaram que a Lista Suja torna efetivo o direito à informação expresso na Constituição Federal e a destacaram como “uma das mais relevantes e salutares práticas para o enfrentamento da escravidão contemporânea no Brasil”. Em 16 de setembro de 2020, o plenário virtual do STF julgou a ação improcedente, considerando a portaria constitucional e afirmando que ela se ampara na Lei de Acesso à Informação e no princípio da transparência ativa.
Saiba mais
Oficial
- Relatório de admissibilidade e mérito da CIDH
- Carta de submissão da CIDH para a Corte
- Escrito de Solicitações, Argumentos e Provas (ESAP) dos representantes
- Contestação do Brasil
- Alegações finais dos representantes
- Alegações finais do Brasil
- Observações finais da CIDH [em espanhol]
- Íntegra da sentença
- Interpretação da sentença de mérito
Outros
- Eram escravos no Brasil e não sabiam. Agora o mundo todo ficou sabendo (El País)
- Caso Fazenda Brasil Verde (MPF)
- Caso Fazenda Brasil Verde: 16 anos de escravidão (Veja)
- Justiça aceita denúncia do MPF por trabalho escravo na fazenda Brasil Verde (PA) (Amazônia)
- Eu fui escravo (Repórter Brasil)
- Governo busca vítimas de trabalho escravo da fazenda Brasil Verde (Agência Brasil)
- Dono de fazenda diz sofrer 'injustiça' (Folha de S. Paulo)
- MPF denuncia João Luiz Quagliato Neto e Antônio Jorge Vieira por trabalho escravo na fazenda Brasil Verde (PA) (Amazônia)
- Vinte anos depois, Justiça abre ação no Pará sobre caso com 85 'escravos' (R7)
Notas do autor
- As informações apresentadas neste site sobre o Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde foram essencialmente extraídas da sentença da Corte Interamericana. Também há informações colhidas no relatório de admissibilidade e mérito da CIDH, nos escritos de submissão do caso à Corte, no escrito de solicitações, argumentos e provas dos representantes e nos processos judiciais ligados ao caso. Informações de contexto também foram colhidas nos textos e reportagens linkados no texto ou listados em “saiba mais”
- As informações sobre o cumprimento da sentença foram colhidas no relatório de supervisão da Corte Interamericana, no relatório do Estado brasileiro, nos processos judiciais ligados ao caso, no Portal da Transparência, nos textos e reportagens listadas em “saiba mais” e nos textos linkados. Também foram colhidas informações junto à assessoria de comunicação do MMFDH (em nota de 10 de dezembro de 2020) e em entrevista com Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
- No trecho em que são apresentados os pontos resolutivos determinados pela Corte, são omitidas referências a parágrafos da sentença e feitas adaptações para melhor entendimento.
Foto em destaque: Cícero R. C. Omena