O militante de direitos humanos e produtor cultural Aluízio Matias dos Santos é secretário executivo do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), em Natal (RN), desde os anos 1990, quando atuou junto com Gilson Nogueira de Carvalho. Aluizio é articulador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e um dos fundadores do DHnet, site pioneiro sobre direitos humanos. Nesta entrevista, feita em 9 de novembro de 2020, ele fala sobre Gilson e aborda o desenrolar do Caso Nogueira de Carvalho dentro e fora do Brasil.

Gilson (de azul) milita por direitos humanos em Natal há mais de três décadas - Foto: Arquivo pessoal

Na época da morte do Gilson você já estava na organização, certo? Qual era sua função e qual a sua função hoje?

Eu já estava. Eu sempre fui, e sou até hoje, secretário executivo. Já estava lá e cuidava muito da relação com a mídia, com o jurídico, com as [organizações] internacionais, o que eu ainda faço hoje. O presidente também tinha essa articulação, mas eu como secretário executivo também tinha.

E você era próximo do Gilson? Já o conhecia?

Já o conhecia, porque ele tinha me defendido num processo, de uma cidade do interior, e ele ganhou a ação, contra o prefeito de uma cidade.

Ele atuava como advogado dentro do grupo? Qual era o papel dele?

Sim. Essas ONGs sem projetos, ou que não tem projeto específico de defensores, o cara entra como voluntário. Ele era e sempre foi voluntário. Ele não entrou na causa a fim de alguma coisa de grana nem nada. Ele entrou como voluntário e ficou a vida toda como voluntário, nunca recebeu nada. A atuação dele era de um defensor, um militante disponível para a luta.

Como foi o comportamento do Estado e da justiça brasileira antes do caso ser levado ao Sistema Interamericano?

Uma coisa foi levando à outra. Primeiro, as tentativas na justiça local, do estado. E nunca avançou. Chegou até a se reabrir algumas vezes o inquérito, chegou até a ter julgamento de algumas pessoas envolvidas. Não [houve] julgamento do assassino, porque nunca foi descoberto. Houve sempre aquelas coisas no campo gravitacional do caso, de pessoas envolvidas. Porque na verdade, quem fez isso com o Gilson, é parte de um grupo, de um pensamento em relação à questão de eliminar pessoas. Não é um caso isolado a morte dele, é parte integrante de um pensamento, de uma ideologia da morte.

Mas enfim, o estado local não resolveu, e aí foi pro Estado nacional, que foi empurrando com a barriga. Empurrando, empurrando, empurrando. O Estado brasileiro, apesar de ter pessoas conhecidas nossas, na época, em setores estratégicos... Pessoas conhecidas que até participaram de algum movimento. Mas na época não conseguiram dar a resposta que a gente queria. O que o Estado dizia é que teria que resolver localmente, mas não resolvia, nem em um canto, nem no outro.

Aí foi para a OEA [Organização dos Estados Americanos]. Na questão de ir pra OEA, a gente também não foi com muitas provas, com muita consistência de prova jurídica. A gente foi com uma ação política, na OEA. Tanto que a ação foi bem feita, e a negligência local e nacional foi declarada e acatada na ação [perante a Comissão Interamericana], que só se acata quando a OEA reconhece que houve omissão, negligência.

A gente não foi com muitos elementos jurídicos, técnicos e provas, apesar de ter algumas. Então ganhou na OEA nesse sentido, de que o estado local não conseguiu dar resposta até hoje.

Você falou dessa intenção política, queria entender um pouco melhor por que vocês resolveram levar o caso para a OEA, por que resolveram buscar essa justiça internacional.

Pelo motivo maior que a OEA recebe, que é a falta de atuação do estado nacional. A segunda coisa, porque a OEA, pra gente, é realmente uma instância de credibilidade, dando positivo (ou não) para uma sentença favorável, ela repercute diretamente dentro do Estado. E ela repercute também à nível de militância. Se espalha pelos países.

Esse caso Gilson, não teve muita repercussão aqui no Brasil, mas fora daqui teve muito. Para você ter ideia, a gente fez uma parceria com a Anistia Internacional e recebemos cartas pedindo a solução do crime de quase todos os países do mundo. Essas cartas a gente ainda tem guardadas.

Então, ser admitido pela OEA, ela tem duas repercussões. Tem a repercussão técnica, e tem a repercussão política, que se espalha. Acua o Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, repercute nos outros movimentos.

Você falou que vocês não tinham tantas provas. Quais foram as dificuldades para levar esse caso para a justiça internacional? Como foi esse processo?

Por incrível que pareça, a gente teve uma assessoria muito forte. Como eu disse à você: como o caso repercutiu à nível de Brasil e fora daqui, a gente teve uma assessoria de grupos que levaram para lá com embasamento bastante forte. Eu não estou falando em questão das provas técnicas, as provas materiais, porque essas eram uma coisa que até mesmo dentro de um inquérito comum é difícil de você juntar. Quando o inquérito não é bem feito, é complicado. Mas assim, o embasamento jurídico técnico foi importante, tanto é que foi aceito. Se não, não teria sido. A importância é nesse sentido. A gente teve muita assessoria para chegar até lá, por isso que deu certo.

O resultado final não foi muito favorável para a gente.

Eu ia questionar isso. Na CIDH, teve um relatório de mérito favorável a vocês, mas na Corte o resultado foi favorável ao Estado brasileiro…

Eles disseram que não houve, no entender deles, essa caracterização de omissão. Mostraram lá que tentaram fazer o máximo possível, e sempre remetendo para o estado local. Dizendo 'volte lá primeiro, e depois a gente resolve por aqui'. Até hoje não resolveu.

Qual foi a importância do reconhecimento da violação na Comissão e como você enxerga a sentença desfavorável da Corte?

Sinceramente, com uma certa decepção. Não com a Corte em si, mas com o resultado. Seguiu-se os passos tudo direitinho. A gente teve uma certa decepção, mas não considero que a Corte sacaneou, que houve rejeição sem embasamento. Mas eu acho que houve muita pressão do Estado brasileiro. Na época, tinham pessoas conhecidas dentro do Estado, que para não ficar mal na fita, investiram, mandaram pessoas para lá, no julgamento, para fazer uma defesa bem consistente do Brasil. Eu acho que o resultado foi o que foi possível se conseguir.

O relatório da Comissão provocou algum efeito prático?

À nível local, houve um certo medo, de que isso poderia dar em alguma coisa. A gente sentiu, nas autoridades, um certo medo. E o Ministério Público estadual (MP-RN) vibrou muito com todo esse processo. Porque desde o início o MP-RN estava com a gente. Com suas divisões, logicamente, não tem essa unanimidade. Houve essa repercussão dentro do MP, como uma coisa que poderia ter dado certo.

Uma coisa bem importante dessa história toda, mesmo tendo sido negado à nível nacional, é que pararam as ameaças. E houve uma queda, radicalmente, na questão de grupos de extermínio. Acho que esse é um dos dados mais importantes dessa história toda. Não quer dizer que parou para sempre, mas houve uma queda abrupta em índices.

Então teve esse efeito, ainda que indiretamente…

Exatamente. Esse é um dos ganhos mais importantes. Inclusive fortaleceu também a proteção dos envolvidos, dos acusadores, que estavam sendo perseguidos.

Ainda sobre o que aconteceu após a sentença, teve algum efeito prático na investigação?

O que a sentença deixou claro pra gente é que ficou em aberto uma possibilidade de que, se houvesse fato novo, [houvesse] uma reabertura. O efeito prático foi esse daí.

O problema é que a gente tem um limite de luta. A vida inteira... Eu vejo, às vezes, cabra que persegue na investigação de justiça a vida inteira. Uma vítima que vai atrás a vida inteira. A própria família [do Gilson] deu uma recuada. A gente foi mudando de assuntos, também, o tempo passa. A própria entidade se reestruturou para outras coisas, enfim.

Mas tem em nós sempre aquela marca. Que aquilo foi um marco, de tragédia, e um marco, como eu disse a você, de uma parada nas coisas [as ações do grupo de extermínio] que estavam demais.

O grupo que o Gilson denunciava parou de cometer atos de violência?

Deu uma recuada grande, porque viu que isso poderia ter repercussão, se não local, pelo menos internacional.

E esses agentes do Estado continuaram atuando como agentes públicos?

Alguns se afastaram por alguma outra coisa, foram fazer outras coisas, em outras áreas, que não a área [do policiamento] de rua. Foram para outros tipos de áreas. Mas outros saíram... Enfim. Em relação a outros crimes correlatos, uns foram condenados. Crimes correlatos, não o do Gilson. Alguns que o Gilson tinha denunciado foram condenados. A nossa tese é que era uma junção, não era uma coisa isolada.

Como você enxerga o cenário para os direitos humanos e para os defensores de direitos humanos, como você e Gilson, nos dias de hoje?

Cada vez que passa o negócio está pior. Além dos casos absurdos de violação que está tendo, as mortes continuam. E, sinceramente, providências, com a exceção de alguns estados que são mais democráticos, tendem a apurar o que aconteceu, à nível nacional está uma tragédia. Tragédia total.