Em 1983, o francês Xavier Plassat veio pela primeira vez ao Brasil, para acompanhar o traslado dos restos mortais de seu amigo Frei Tito. Por aqui, conheceu a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade que atua na defesa dos trabalhadores rurais. Seis anos depois, Plassat voltou ao Brasil para ficar e, desde então, o frade dominicano se dedica à luta contra a escravidão moderna na CPT, uma das representantes das vítimas do Caso Fazenda Brasil Verde. Nesta entrevista, feita em 29 de outubro de 2020, o coordenador da campanha nacional da CPT contra o trabalho escravo fala do desenrolar do caso dentro e fora do Brasil, além de abordar a importância da sentença e o cenário atual do trabalho escravo no país.
As denúncias da CPT foram entre o final dos anos 1980 até os anos 2000. Como foi o comportamento do Estado e da justiça brasileira ao longo desse período?
O laço temporal que foi assumido na Corte, em cumprimento da limitação imposta pela falta de ratificação pelo Brasil da competência da Corte [que só ocorreu em 1998], fez com que somente o caso de 2000 fosse considerado. E por uma jogada bem interessante, o caso de 1997, [também foi analisado] porque a ausência de acesso à justiça havia permanecido.
A gente pode dizer que o que caracterizou a resposta às denúncias de trabalho escravo foi uma atitude caótica. No sentido de que, situações semelhantes foram caracterizadas como trabalho escravo [e na Brasil Verde, não]. Primeiro, o atendimento às demandas não passou de 20%, não lembro exatamente, foram três ou quatro fiscalizações. Uma do Grupo Móvel [Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho], e outras da DRT [Delegacia Regional do Trabalho] do Pará.
Demonstrou também uma incompetência enorme. Uma das que chamou muito a atenção, o relatório da Polícia Federal fala que os trabalhadores manifestaram todos a vontade de sair da fazenda, de voltar para casa, o que foi providenciado. Mas mesmo assim, não foi considerado que havia sinais claros de manutenção de trabalhadores em situação de escravidão.
Então, caótico pela falta de parâmetros comuns entre as várias autoridades que ali [atuaram]. Segundo, pela inconsequência, que foi contestado trabalho escravo e não houve depois procedimento de responsabilização. A única ação penal que foi encaminhada se perdeu nas areias do jogo de conflito de competência entre a justiça local e a justiça federal, até perder o prazo da prescrição.
Por que buscar a justiça internacional nesse caso?
[Nos casos] onde se esgota a possibilidade de acessar o direito a partir da legislação do país, a gente recorre a instância internacional para obrigar o país violador a cumprir com suas obrigações. Foi dessa maneira que historicamente a CPT conseguiu dobrar a vontade negacionista do Estado brasileiro em relação à realidade do próprio trabalho escravo, tanto na OIT [Organização Internacional do Trabalho] quanto na Comissão de Direitos Humanos da ONU, e na OEA [Organização dos Estados Americanos], através do Caso José Pereira.
Você pode falar brevemente desse caso José Pereira?
É um caso, curiosamente, quase no mesmo município da Fazenda Brasil Verde. Um trabalhador foge de uma fazenda, acho que em 1989, se não me falha a memória, e ao fugir ele é alcançado por pistoleiros, que atiram e matam o colega dele, que cai morto. Enquanto ele, José Pereira, com 17 ou 20 anos, se finge de morto. Eles são jogados na beira da estrada e, por milagre, ele vem a ser salvo.
A partir dessa situação, que não gerou nenhuma investigação, nenhuma responsabilização, em 1994, cinco anos depois, a Americas Watch, o Cejil e a CPT apresentaram denúncia na CIDH. Como no caso da Brasil Verde, foi preciso mais de 10 anos para chegar a um [relatório de admissibilidade e mérito, que ocorreu em 1999]. Depois, a um termo de solução amistosa, que por sua vez demorou ainda muito, entre 1999 e 2003, quando ele foi assinado, para entrar em vigor.
Mas foi um divisor de águas. Todo mundo reconhece, porque ele, de fora, deu recomendação firme ao Estado brasileiro, que orientou tudo que passou a ser a política de combate ao trabalho escravo. Grupo Móvel, competência [da Justiça Federal para casos do tipo], Lista Suja, essas coisas. Em 2003, isso passou a vigorar na forma do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.
Eu acrescento um ponto, que é muito importante para nós peticionários. Através dos mecanismos de monitoramento que o Sistema Interamericano oferece, temos à mão um mecanismo internacional de cobrança. Até hoje, por exemplo, estamos no pé do governo brasileiro pelo cumprimento do pagamento da indenização das 128 vítimas do Caso Brasil Verde, que está se postergando demais. A cada ano, o Estado é obrigado a apresentar um relatório, os peticionários são obrigados a comentar e questionar eventualmente esse relatório, e a Corte, conforme o caso, se pronuncia.
Ao longo do trâmite do Caso Brasil Verde no Sistema Interamericano, quais foram as dificuldades e desafios que vocês enfrentaram?
O relatório de admissibilidade e mérito da Comissão Interamericana foi dado somente em novembro de 2011, enquanto a petição inicial é de 1998. São 13 anos, é absurdo. Agora, por qual motivo, confesso que não consigo me lembrar. Me estranha, porque estávamos, em tese, em governos democráticos, abertos ao diálogo. E eu acho que houve uma tentativa frouxa de construir um entendimento na forma de uma solução amistosa, que nunca decolou.
O relatório já veio com recomendações ao Estado, não para a [construção] de uma solução amistosa, porque acho que o prazo já havia ultrapassado, mas se os peticionários estivessem de acordo, um acordo sui generis poderia ser construído. Daí entramos durante quase dois anos, dois anos e meio, numa fase de negociação, da qual eu participei diretamente, e que foi meio frustrante. Em vários momentos, nos aproximamos de elementos da construção de ferramentas, de instrumentos muito positivos, que poderiam, na área da repressão, da fiscalização, como na área de prevenção e pós-resgate das vítimas, trazer novidades.
Em um certo momento, por motivos que a gente não conseguiu decodificar, a máquina do Estado bloqueou, paralisou, passou a fazer duas exigências que para nós eram inaceitáveis. Eu me lembro de uma que era que [para cada uma] das 128 vítimas identificadas no relatório da CIDH, a gente apresentasse uma procuração. Sendo que quem representa essas vítimas quando o caso está lá é a própria Comissão. Nós falamos que essa procuração eles não iam ter e não podia ser exigida.
Em segundo, eles exigiam que as vítimas renunciassem a qualquer outra pretensão eventual. E isso nós também não podíamos aceitar. Em função disso, a negociação acabou sendo suspensa, o governo disse que iam cumprir unilateralmente todos os pontos do acordo. Pediu três vezes uma prorrogação, a Comissão se cansou e levou o caso à Corte.
Qual a importância e o que representou a sentença da Corte e o reconhecimento internacional da violação?
Essa sentença é fundamental. Agora, esses dias, em que eu estava montando um pequeno trabalho, eu verifiquei que muitos elementos que eu achava que eram inovadores da sentença, já se encontravam praticamente presentes no relatório de mérito da própria Comissão Interamericana.
O primeiro, é o reconhecimento da prática de trabalho escravo nessa situação. Ou seja, uma análise à luz de critérios dos melhores cortes internacionais, em uma leitura transversal de todas as definições em vigor, para confirmar que a situação encontrada era de trabalho escravo. E de certa maneira, confirmando a adequação da legislação brasileira ao definir assim o trabalho escravo.
O segundo ponto, fundamental, ao analisar que o trabalho escravo não cai do céu. No caso brasileiro, ele nasce da existência e da permanência de uma discriminação estrutural e histórica, que remonta, vem do tempo da escravatura, e que a abolição nunca reverteu. E que o Estado falhou em não adotar nenhuma política consistente de 1888 para cá, para reverter essa discriminação que está na fonte da situação da escravidão.
O terceiro ponto que é fundamental é de confirmar a qualificação do crime de trabalho escravo como uma violação de direitos jus cogens [normas imperativas do direito internacional, inderrogáveis], um crime contra o qual não pode ser evocada nenhuma prescrição. Isso é que é fantástico.
[Isso permitiu que], em 2019, o Ministério Público Federal de Redenção entrasse com ação penal contra o Quagliato, dono da Fazenda Brasil Verde, e seu administrador, pelo crime de trabalhador escravo. E a denúncia-crime foi aceita pelo Tribunal Federal, [além de] um pedido de habeas corpus que foi negado.
A quarta coisa é que, embora a gente esperasse um pouco mais de detalhamento na sentença, teve um rigoroso apelo, feito pela Corte, para que o Brasil, que já foi luz entre as nações, em matéria de legislação e de políticas públicas contra o trabalho escravo, não retrocedesse, afirmando a proibição de qualquer retrocesso. Essa afirmação já foi utilizada em vários julgamentos, tanto na justiça trabalhista quanto na penal aqui no Brasil, desde dezembro de 2016.
Então são efeitos importantes. Sem falar da importância da indenização determinada, de 30 a 40 mil dólares, quando na última proposta que o Estado fazia na sua negociação falida, a oferta dele era de dois mil dólares. Para você ter uma ideia da distância da consideração da gravidade.
Você já falou brevemente sobre a indenização e sobre a abertura do processo judicial. Que informações mais você tem sobre o cumprimento da sentença? Você considera que o Brasil está cumprindo adequadamente as determinações da Corte?
Estamos ainda sem ter concluído. Eu não tenho a data exata, eu vi uma mensagens dessas semanas, de uma procuradora da República que está nos ajudando nesse monitoramento, e ela fala em torno de 40 vítimas ainda não indenizadas. Do Caso Brasil Verde, tem de seis a dez vítimas já falecidas. Identificar onde que essa vítima falecida deixou herdeiros, juntar a documentação necessária para abrir o processo na Justiça Federal por cumprimento de obrigação internacional, é complicadíssimo. Mais ainda nos últimos meses [pela pandemia de Covid-19]. A gente tenta conseguir o apoio da DPU [Defensoria Pública da União] nesses casos.
Outro caso, mais complicado ainda, que é menor, mas que deu trabalho, é que houve um erro gráfico no nome de uma vítima. Chegou ao absurdo que um cara conseguiu receber uma indenização que ele não tinha direito, porque se passou por outro. Depois foi necessário a Corte alterar sua própria sentença modificando o nome. Nesse meio tempo, um advogado picareta do interior do Piauí, teve a ideia de se colocar no meio e oferecer seus serviços. E aí, nós tentamos desmantelar essas picaretagens.
E, por fim, os trabalhadores que a gente não consegue localizar.
Você considera que foi feita justiça?
Bom, se a gente pensa que estamos com trabalhadores que foram ofendidos, tiveram seus direitos negados e foram humilhados em 1997 ou em 2000, e que estamos quase em 2021, é insuportável pensar... Essa justiça que se faz hoje é a prova de uma injustiça acumulada insuportável. Ela confirma essa longa, estruturada e histórica discriminação. A gente imagina que se não fosse esse status de pobreza das vítimas, possivelmente elas teriam acessado essa reparação com muito mais velocidade.
Mas mesmo assim, consideramos sim que valeu a pena, porque afirmamos direitos primordiais. Conseguimos validar internacionalmente a política de combate ao trabalho escravo e a definição legal de trabalho escravo aqui no Brasil. Portanto, eu acho que sim, vale imensamente todo o trabalho que nos deu.
Mas para um caso que a gente resolver, quantos casos vão ficar sem solução? Mas esse caso nos ajudará a resolver outros.
Um dos pontos principais das sentenças da Corte são as garantias de não repetição. Há alguma garantia de não repetição desse tipo de violação no país? Em outras palavras, de que forma você avalia o combate ao trabalho escravo atualmente?
Aí, vem justamente essa obrigação de não retrocesso e de implementar políticas públicas que enfrentem essa discriminação histórica e estrutural. Esse é o nervo da guerra contra a repetição. Claro que é genérico, de uma certa maneira. Verificar isso caso a caso exige uma atenção grande, que nós tentamos proporcionar, por isso mantemos quente essa questão na pauta de todas as reuniões da Conatrae [Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo], relacionando sempre esse caso. Não como um caso de museu, mas como um caso que exija a definição de políticas atuais de combate ao trabalho escravo.
Por exemplo, nós fomentamos com vários parceiros, uma carta da Conatrae protestando contra a ausência de concurso, de recrutamento de auditores fiscais do trabalho, quando a gente sabe que não tem há dez anos. Tem um envelhecimento da categoria, que inclusive nesse tempo de pandemia inviabilizou o trabalho de vários que estão numa faixa etária de risco. Tem uma capacidade de intervenção enfraquecida, que beira à asfixia do instrumento. Para esse tipo de protesto e de cobrança, a sentença do Caso Brasil Verde nos é de uma grande valia.
Estamos esses tempos rediscutindo algumas interpretações aparentemente bem montadas, mas muito criticadas. Por exemplo, numa linha inspirada nos trabalhos de autores anglo-saxões sobre a escravidão moderna, que vincula a propensão à existência da escravidão à característica de vulnerabilidade de uma população de determinada região, país ou etnia.
E no caso do Brasil, a gente levou esse discurso, que são nordestinos que são escravizados prioritariamente, a condição de vulnerabilidade, pobreza, sem acesso a políticas públicas, saúde, educação, etc. Mas uma coisa que não é dita nunca, é que são afrodescendentes. São negros. Parece que essa característica é silenciada até hoje. E mesmo em termos de informações, quando você pega os dados da fiscalização, a gente não tem esse perfil étnico-racial.
Hoje, começa a surgir esse posicionamento. A escravidão moderna tem cor. É muito importante esse amparo que a gente pode encontrar nas organizações internacionais para levantar essa questão com mais força ainda.
Insistindo um pouquinho nessa última questão. Como você avalia os avanços ou retrocessos do combate ao trabalho escravo no Brasil? Você falou da importância do Caso José Pereira para uma política nacional de trabalho escravo, eu gostaria de saber se essa política está sendo enfraquecida. Qual é o cenário que temos hoje?
Até o momento, nós conseguimos, como a gente fala na minha língua, sauver les meubles, salvar os móveis. Evitar o pior. Mas a quantidade de ataques que já houve, sob os mais variados pretextos, para eliminar, da definição legal do trabalho escravo, as características de condições degradantes e da jornada excessiva...
[Em um dos casos], sob o pretexto de aprovar uma regulamentação da PEC [Proposta de Emenda à Constituição] do confisco de propriedades, pela Kátia Abreu e a bancada ruralista, eles disseram 'bem, em troca de voltar a discutir a regulamentação, a gente muda isso, esse detalhe'. A segunda é a tentativa reiterada de inviabilizar a publicação da Lista Suja.
Estamos em uma linha de resistência, bem alinhados com várias instituições públicas, o Ministério Público, sobretudo, que nos permitiu até agora manter. Mas o que a gente enfrenta hoje é uma tentativa de asfixia e de desidratação. Nos últimos três, quatro anos, com alterações consistentes da legislação trabalhista, as imposições no funcionamento da justiça do trabalho, de que a vítima sucumbente tenha que pagar os gastos do que ganhou, etc. Enfim, vários mecanismos que são inibidores da denúncia, que favorecem a maior invisibilidade do trabalho escravo.
O ponto crucial do trabalho escravo é a invisibilidade. Todos os mecanismos que foram se criando, visam mobilizar a sociedade e os próprios trabalhadores a abrir o olho. É o nome da nossa campanha, inclusive, "De olho aberto para não virar escravo". É mostrar para a sociedade que isso acontece, que é verdade comprovada, como a Lista Suja. E levar a compromissos [de diferentes atores] da economia, no sentido do pacto das empresas contra o trabalho escravo. Tudo isso pode vir a cair se a fonte da informação, que é a fiscalização, for asfixiada.
Hoje, a gente consegue ainda manter uma fiscalização. Eu estou acompanhando esses dados quase semanalmente. Claro que esse ano [2020] é atípico. Houve 72 estabelecimentos fiscalizados até o início desse mês [outubro]. Oficialmente, 320 libertados. Se a gente pega o número mais perto da realidade, que nós acompanhamos a partir de informações mais "ao vivo” – porque essas informações são do ex-Ministério do Trabalho, que só registra um caso quando ele é devidamente relatado em relato de fiscalização conclusivo –, nós estaríamos mais perto de 700 libertados, já este ano. O que é considerável de uma certa maneira, porque essa é a média dos últimos cinco anos. Então, apesar dos pesares, a gente consegue manter o mínimo do mínimo.
Os retrocessos ainda estão por vir, se esse que nos manda continuar no lugar.