Com vasta experiência no campo dos direitos humanos, Isabel Pereira é coordenadora da área de Direitos e Justiça do Instituto de Estudos da Religião (ISER) desde o início de 2020. A organização, uma das representantes das vítimas do Caso Favela Nova Brasília, existe desde 1970 e atua na defesa e garantia de direitos, segurança pública, meio ambiente e diversidade religiosa. Nesta entrevista, feita em 19 de novembro de 2020, Isabel aborda o cumprimento da sentença do caso e o cenário da letalidade policial no Rio de Janeiro.
Várias determinações da Corte Interamericana ficaram em aberto. A inauguração da placa chegou a ocorrer?
Não. A gente já teve um novo período de acompanhamento da supervisão. Depois da última resolução que a Corte emitiu, agora no meio desse ano [2020], a gente já teve um novo período, então o Estado e os peticionários já se manifestaram novamente. A gente enviou nosso relatório em agosto e estamos aguardando uma nova resolução da Corte.
Esse pedido especificamente, da placa, não foi atendido. Mas é um pedido um pouco mais complexo. Já tiveram, não agora, mas lá no início, logo que começou a supervisão, algumas trocas entre o governo e os peticionários. Mas é um assunto complexo porque tem uma série de razões pelas quais essa placa ainda não foi colocada. Essa tem sido uma conversa que até tinha sido retomada no início do ano com os familiares e os representantes, mas que por conta da pandemia ficou um pouco paralisado.
Tem uma série de questões aí. Primeiro, porque o próprio Estado ultimamente não tem se posicionado em relação a isso. Mas existem, por exemplo, algumas situações, que precisam ser conversadas com os familiares. Quem vai assinar a placa... Na época era o Witzel, ele não tinha caído ainda, então é bastante complexa a implementação. Quem assinaria a placa seria o Witzel, confesso que eu acho que ele nem assinaria. Todas as gestões que tiveram foram com o governo anterior. Mas a gente nem conseguiu fazer isso, porque a gente iniciou esse diálogo com os familiares, foi impressionante, a gente marcou de ter outra reunião no mês, e a pandemia veio. Não se concretizou.
Então, essa questão da placa não foi cumprida ainda, mas não foi cumprida não só por um problema do Estado, é mais complexo do que isso. Nós ainda estamos ainda acertando os detalhes com os familiares. Já tem o texto [da placa], já está preparado, outras coisas já foram aceitas. [Falta] essa coisa mais prática, de como iria acontecer, porque é óbvio que os familiares querem que seja no local da chacina, não querem que seja fora. Então como fazer toda essa logística e essa coisa simbólica, mesmo, de quem assinaria, de quem estaria lá para colocar a placa. São essas questões.
A Corte também determinou a disponibilização de tratamento psicológico gratuito, que a Corte deveria fornecer aos familiares. Isso avançou?
Então, também não. Não houve uma resposta pelo Estado na época, e aí isso acabou acontecendo através do Napave [Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado], que é um núcleo de atendimento de pessoas vítimas de violência estatal. É até uma instituição parceira do ISER, tem uma vinculação, então acabou sendo feito por eles, vem sendo feito por eles. Isso foram os peticionários que buscaram após a condenação.
Em relação aos processos em si, um deles foi arquivado, certo?
São três processos. Um é relacionado à chacina de 1994, o outro à chacina de 1995 e um terceiro, que é relacionado às vítimas de violência sexual. Os de 1994 e da violência sexual estão tramitando. O da chacina de 1994 já está na fase de tramitação do júri e o de abuso sexual, a juíza responsável recentemente aceitou o caso.
O da chacina de 1995, tinha sido arquivado lá atrás. Aí com a sentença, houve desarquivamento e o Ministério Público fez novos procedimentos. Posterior a isso, eles arquivaram novamente.
E você sabe dizer o porquê houve esse arquivamento?
Não, só a explicação mesmo que tem no arquivamento, que eles não tiveram os elementos probatórios suficientes para seguir.
O Estado concluiu o pagamento das indenizações?
As indenizações estão praticamente concluídas. Tem uma parte que, nessa nova etapa de supervisão, está praticamente concluída. Ainda tem algumas pendências, questões específicas, mas já está bem avançado. Essa parte está bem avançada.
De uma maneira mais ampla, qual é a sua avaliação do cumprimento da sentença pelo Brasil?
Realmente, Rafael, a gente vê com olhos bem negativos. Apesar de terem tido alguns avanços em relação aos casos individuais, no geral, nas medidas mais relativas à não repetição, por exemplo, a instauração de políticas públicas, a gente vê que praticamente não houve nenhum avanço. Até foram tomadas algumas medidas pelo Estado, a gente não pode dizer que não teve nenhuma movimentação, mas na maioria dos casos ainda está muito superficial, muito preliminar. Não é nem preliminar, mas não atende aos requisitos que a Corte colocou na sentença.
Tem uma série de questões ali, relacionadas, por exemplo, à redução da letalidade policial [no estado do Rio de Janeiro], que não foram atendidas. Tem uma questão de publicação de dados de letalidade policial à nível nacional. A gente sabe que é complicado, porque cada estado tem a sua forma de apresentar esses dados e na verdade, na grande maioria, de não apresentar esses dados. Mas assim, já se passaram mais de três anos, já daria para ter algo mais consistente, na nossa avaliação.
Enfim, tem uma série de medidas de não repetição que não estão sendo cumpridas. A gente avalia que, de uma forma geral, ainda está muito abaixo. Não vou dizer que é 100%, porque eu estaria sendo exagerada, mas realmente ainda tem muito por se cumprir.
Se a gente for ver formalmente, pela última resolução... Não tenho nem como avaliar como vai sair essa nova, a gente espera que ela saia até rápido, vamos aguardar. Mas na última resolução da Corte, o único ponto que estava parcialmente cumprido era a publicação da sentença, e só. Claro que a partir daí tiveram outras coisas que aconteceram.
Dando um passo para trás. Apesar do Estado não ter cumprido adequadamente ainda, qual a importância dessa sentença e desse reconhecimento internacional da violação?
[A gente sabia] que a condenação não teria como ser sobre os fatos em si, das chacinas, por uma questão de competência temporal, de quando o Brasil assinou e aceitou a competência da Corte [em 1998]. Ela não tinha como falar em si das chacinas, mas uma coisa essencial dessa sentença é que a Corte traz essa questão da investigação.
Aqui eu te falo do Rio de Janeiro, mas eu sei que Brasil afora também é isso, a realidade é muito similar em vários estados: existe uma questão muito grande com essa questão da investigação, quando são atos cometidos por agentes do Estado. Então foi importantíssima a condenação nesse sentido, de tentar trazer mudanças de parâmetros para a investigação.
Acho que teve uma importância incrível de que, apesar de não poder falar especificamente das chacinas, a Corte trouxe essa questão de medidas de não repetição em relação à letalidade policial. Mas a gente sabe que, infelizmente, – tenho que falar isso com muita dor, porque venho trabalhando com isso nos últimos anos – está muito escancarado que, após a sentença, ao invés desses números terem caído, eles tiveram uma guinada. Eles aumentaram absurdamente. É muito importante que a Corte tenha dado esse tipo de sinalização na sentença, mas é preciso de esforços internos para que isso seja cumprido.
Eu acho que tem uma importância histórica, mesmo. Primeiro caso em que o Brasil foi condenado [em um caso do tipo, antes] os temas que surgiam não eram violência policial. Apesar de não ter sido condenada a violência policial, em si, acho que eles realmente conseguiram contornar isso de alguma forma e trazer essa questão pelas medidas de não repetição.
E a sentença também trata dessa questão da violência sexual durante operações policiais e traz estândares importantes, de investigação, de como fazer esse tipo de acolhimento. De como tentar evitar que esse tipo de situação absurda aconteça. Acho que isso é muito relevante, é realmente muito representativa essa condenação.
E, para mim, essa sentença da Corte realmente tem que ser usada por todos. Não só pela sociedade civil, mas também por juízes que venham a decidir casos que tenham relação. Ela é jurisprudência interna. É muito importante também para os defensores, promotores, advogados particulares, enfim. Acho que é uma sentença que precisa ser utilizada.
A sentença foi citada na ADPF que suspendeu as operações policiais no Rio, né?
Sim, foi muito citada. O próprio ISER é amicus curiae na ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental], junto com outras organizações. Realmente, na ADPF 635, não só o ministro... É algo que vem muito presente, tanto na petição inicial da ADPF, em que o autor falou muito sobre o Caso Nova Brasília. Isso é algo que se refletiu nas decisões, tanto do ministro Fachin, que é o relator, quanto de outros ministros, que também mencionaram o Caso Nova Brasília para emitir seus votos. Bem importante.
A Comissão, ao remeter o caso para a Corte, fala da necessidade de obtenção de justiça. Você acha que as vítimas obtiveram justiça nesse caso?
Essa pergunta é muito difícil de responder. Confesso que não me sinto confortável para responder por elas, até porque eu tive muito pouco contato com as famílias. Eu participei de uma reunião, e depois não tive mais. Qualquer coisa que eu vá falar aqui é achismo.
Mas não sei, ainda tem um processo, no momento ainda não. Acho que para elas foi muito importante que essa condenação viesse. Isso, por si só, já é algo muito simbólico, muito representativo, muito forte para as famílias, quando vem uma condenação assim. Mas acho que ainda estamos em um processo, o Estado ainda não cumpriu seu dever perante essas famílias.
Você já abordou isso em outras respostas, mas queria que você se aprofundasse na questão da não repetição. O Brasil, especialmente o estado do Rio de Janeiro, está a salvo de uma chacina como as que ocorreram no Caso Favela Nova Brasília?
Na verdade, tem se repetido. Os documentos que estão na ADPF 635 trazem uma série de casos onde violações do mesmo tipo ocorreram. Elas vêm ocorrendo, não pararam de acontecer. E tem sido mais intensas nos últimos anos. Não é nem que a gente quer que sejam garantidas medidas para que isso não aconteça no futuro, é para que deixe de acontecer já, porque não deixaram de acontecer. Acho que isso que é muito preocupante.
Para mim, as medidas de não repetição são essenciais nessa parte do cumprimento da sentença, porque realmente é uma demonstração do Estado de que ele está comprometido com aquele assunto. Não é o que a gente vem vendo. É óbvio, não vou te dizer que não tem instâncias internas, de alguns órgãos, que estão tentando se movimentar para que processos que levem a consolidar essas medidas de não repetição aconteçam. Existem órgãos, por exemplo, dentro do Ministério Público, que tem tentado fazer essa aproximação. Não com a gente, mas com o Executivo, para que essas medidas aconteçam.
Tem alguns casos que são muito emblemáticos e para mim refletem o quanto estamos longes disso. Em maio desse ano [2020]... Porque uma das chacinas aconteceu também em maio. Então em maio, dentro do Complexo do Alemão, novamente, 13 pessoas foram assassinadas pela polícia. É muito emblemático, é muito trágico. A gente falou que era uma trágica coincidência, e aí teve uma pessoa que trabalhou com a gente que falou que não era uma coincidência, era uma comprovação, uma confirmação da política que o Estado vem adotando. Não foi a primeira e não vai ser a última. É isso que é mais dolorido. Foi uma chacina que teve o mesmo número de mortos da chacina de 1994 e de 1995, porque ambas tiveram 13 pessoas assassinadas. E foi no mesmo mês. No mesmo Complexo do Alemão.
E, não sei se foi só em 2019, ou também em 2018, familiares de vítimas das chacinas de Nova Brasília, sofreram novas violações. Teve o primo de uma das pessoas que foi assassinada na Nova Brasília, que foi morto em 2018. E também, em 2019, teve o sobrinho de uma pessoa que foi assassinada na Nova Brasília, que foi morta. Esse caso de 2019, para mim é muito simbólico, porque o rapaz estava andando em uma moto, que ele foi alvejado, e essa moto ele comprou com parte da indenização que a mãe dele tinha recebido [por conta da sentença] de Nova Brasília. Então é realmente emblemático de como essas famílias... E aí responde um pouco da sua pergunta anterior, de como essas famílias seguem sendo revitimizadas.