Ficha Técnica
Vítimas: Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni
Peticionários e/ou Representantes: Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e Justiça Global em nome dos membros das organizações Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. (Coana) e Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais (Adecon), além de Terra de Direitos, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST)
Juízes: Cecilia Medina Quiroga, Presidenta; Diego García-Sayán, Vice-presidente; Sergio García Ramírez, Juiz; Manuel E. Ventura Robles, Juiz; Leonardo A. Franco, Juiz; Margarette May Macaulay, Juíza; Rhadys Abreu Blondet, Juíza; e Roberto de Figueiredo Caldas, Juiz ad hoc
Cronologia
26 de dezembro de 2000
Petição
2 de março de 2006
Relatório de Admissibilidade
8 de março de 2007
Relatório de Mérito
20 de dezembro de 2007
Submissão pela CIDH
6 de julho de 2009
Sentença
19 de junho de 2012
Supervisão do cumprimento concluída
Resumo
Terceiro caso do Brasil analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a sentença do Caso Escher e outros versus Brasil data de 6 de julho de 2009.
Entre maio e junho de 1999, os membros das organizações Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. (Coana) e Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais (Adecon), no noroeste do Paraná, foram monitorados pela polícia militar paranaense, por intermédio de interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça, ainda que sem embasamento adequado. Trechos das gravações, que perduraram para além do período autorizado, foram vazados para a mídia – sendo veiculados no Jornal Nacional, inclusive.
À época governado por Jaime Lerner (DEM), o estado vivia uma onda de violência no campo, impulsionada pela União Democrática Ruralista (UDR). Poucos meses antes, um trabalhador rural fora assassinado, em caso também julgado pela Corte Interamericana. As duas organizações monitoradas tinham vinculação com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Entre os membros da Coana e da Adecon estavam Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni.
No âmbito da Justiça brasileira, as ações movidas pelas vítimas da interceptações não resultaram em nenhuma responsabilização, a despeito de terem sido apontadas uma série de irregularidades pela promotora responsável. Nem os policiais que solicitaram as interceptações, nem o secretário de Segurança Pública que deu aval, tampouco a juíza que autorizou as gravações foram punidos por seus atos, seja penal, civil ou administrativamente.
Em dezembro de 2000, a Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e a Justiça Global entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as violações sofridas pelos membros da Adecon e da Coana. O Estado brasileiro alegou não esgotamento dos recursos internos, mas a argumentação foi rejeitada pela CIDH, que em março de 2006 produziu relatório de admissibilidade da petição.
Em março de 2007, a Comissão produziu relatório de mérito, considerando o Brasil responsável por violações de direitos humanos em detrimento dos membros das organizações e emitindo uma série de recomendações. Entre abril e dezembro de 2007, o Estado apresentou relatório de cumprimento parcial e solicitou três prorrogações de prazo. A CIDH considerou que havia “falta de progresso substantivo” no cumprimento das recomendações e remeteu o caso à Corte IDH em dezembro de 2007.
A Corte Interamericana negou as três exceções preliminares interpostas pelo Estado brasileiro. Na mesma sentença, condenou o Brasil pela violação dos direitos à vida privada, à honra e à reputação, à liberdade de associação, às garantias judiciais e à proteção judicial, em relação à obrigação de respeitar e garantir os direitos, previstos na Convenção Americana. Foram consideradas vítimas dessas violações os senhores Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni. Entre as determinações do Tribunal estão a investigação da responsabilidade pela divulgação das fitas com as conversas gravadas, a publicação da sentença e o pagamento de indenização, custas e gastos.
O Estado pagou US$ 22 mil para cada uma das cinco vítimas, em valores da época, e realizou as publicações ordenadas, após negociação e redução do conteúdo. A Procuradoria-Geral de Justiça paranaense informou ao Brasil que não poderia abrir investigação sobre a divulgação das conversas telefônicas, porque os atos já haviam prescrito. Ninguém foi responsabilizado pelas interceptações e nem pela divulgação das conversas. Em seu segundo relatório de supervisão, a Corte considerou o cumprimento das determinações concluído e definiu o arquivamento do expediente, no único caso brasileiro em que a sentença foi considerada cumprida.
Contexto
Entre a segunda metade dos anos 1990 e o início dos anos 2000, o estado do Paraná viveu uma onda de violência no campo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 16 assassinatos, 31 tentativas de homicídio, sete casos de tortura e 49 ameaças de mortes contra trabalhadores sem terra, além de 325 feridos em 134 ações de despejo. À época governado por Jaime Lerner (PDT, depois PFL), o estado tinha forte atuação da União Democrática Ruralista (UDR), entidade formada por grandes proprietários rurais que se opunham – e se opõem até hoje – à reforma agrária, não raramente utilizando-se da violência. Durante os dois mandatos de Lerner, 516 trabalhadores rurais foram presos no Paraná.
A situação era especialmente grave no noroeste do estado. Por lá, dois casos de assassinato chegaram inclusive ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos: a morte de Sebastião Camargo, em 1998, na cidade de Marilena – em 2013, um ex-presidente da UDR foi preso pelo crime; e a morte de Sétimo Garibaldi, também em 1998, na cidade de Querência do Norte.
Nessa mesma região, duas entidades de trabalhadores rurais promoviam desenvolvimento comunitário e atividades econômicas comunitárias, especialmente o cultivo e a comercialização de arroz. Tanto a Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais (Adecon), quanto a Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. (Coana), mantinham relação com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A Coana era à época administrada por Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni.
No final de abril de 1999, o Subcomandante e chefe do Estado Maior da Polícia Militar (PM) do Paraná, coronel Valdemar Kretschmer, solicitou ao então secretário de Segurança Pública do estado, Cândido Martins, que autorizasse o requerimento de interceptação e monitoramento de linhas telefônicas da Coana.
Após resposta positiva do secretário, dois policiais militares paranaenses apresentaram, no início de maio, pedidos de interceptação e monitoramento de telefones da Coana e também da Adecon. Em um deles, o responsável afirmava haver “fortes evidências [da Coana] estar sendo utilizada pela liderança do MST para práticas delituosas”, que envolveriam recursos de programas governamentais voltados para o campo. A justificativa também mencionava o homicídio de Eduardo Aghinoni, morto por engano no lugar do irmão, Celso Aghinoni, uma das lideranças da Coana e coordenador regional do MST.
As solicitações do major Valdir Copetti Neves, chefe do Grupo Águia da PM, e do Terceiro Sargento Valdecir Pereira da Silva foram concedidas pela juíza Elisabeth Khater, titular da vara da cidade de Loanda (PR), localizada a 610 km da capital. Nas autorizações, que não foram comunicadas ao Ministério Público local, a magistrada foi sucinta: “R[ecebido] e A[nalisado]. Defiro. Oficie-se”. Em 25 de maio, cerca de duas semanas após a segunda autorização, o major Neves solicitou o cancelamento das interceptações, “em virtude do monitoramento realizado até [aquela] data já ter surtido o efeito desejado”. A demanda foi prontamente atendida pela juíza Khater, que enviou no mesmo dia ofício ao diretor da companhia telefônica local, solicitando o desligamento da interceptação.
O caso ganhou escala nacional em 7 de junho de 1999, quando fragmentos dos diálogos gravados entre lideranças nacionais do MST foram reproduzidos no Jornal Nacional. O conteúdo insinuava que integrantes da organização planejavam um atentado contra Khater e o fórum de Loanda. Na tarde seguinte, o então secretário de Segurança Pública, Cândido Martins, realizou coletiva de imprensa comentando a atuação da polícia, oferecendo explicações sobre as interceptações e expondo quais providências seriam tomadas. Depois da entrevista, fragmentos e trechos transcritos das gravações foram entregues à imprensa pela assessoria da Secretaria.
No primeiro dia de julho daquele ano, o Major Neves entregou 123 fitas com conversas telefônicas gravadas à juíza Khater, fazendo acusações contra o MST. Somente neste mesmo dia, o requerimento de interceptação de 28 de abril, formulado pelo coronel Kretschmer e aprovado pelo ex-secretário de segurança, foi anexado aos autos do processo.
De acordo com o ofício enviado por Neves, as gravações ocorreram em duas etapas: a primeira, de 14 a 26 de maio, período em que estavam autorizadas a ocorrer; a segunda, de 9 a 30 de junho, dias em que não havia solicitação, tampouco autorização para ocorrer – por um problema no aparato técnico, só havia registro dessa segunda fase até o dia 23.
No documento apresentado pelo PM, não havia transcrição integral do material, mas apenas resumos de trechos considerados relevantes pela corporação. Além disso, o conteúdo e os interlocutores de muitas conversas não foram identificados no relatório. No ofício, o Major Neves também atribuía a “um agente infiltrado na PM” com ligações com o MST o vazamento de trechos das gravações.
Somente no dia 2 de julho o aparato técnico de monitoramento das linhas telefônicas da Coana e da Adecon foi desligado pela companhia telefônica paranaense. Dois anos depois, em abril de 2002, a juíza Khater determinou a incineração das fitas, “para evitar celeumas e procrastinações”, ainda que não tenha “result[ada] provada a ilegalidade das interceptações telefônicas”.
Trâmite no Brasil (até a sentença da Corte)
Em 19 de agosto de 1999, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentaram ao Ministério Público uma representação criminal contra o ex-secretário de Segurança, a juíza Elisabeth Khater, o coronel Kretschmer, o major Neves e o sargento Silva, solicitando a investigação de suas condutas pelos crimes de usurpação da função pública, interceptação telefônica ilegal, divulgação de segredo de justiça e abuso de autoridade. A investigação criminal foi instaurada pelo MP paranaense, que somente em 30 de maio de 2000, mais de um ano após a interceptações, recebeu da juíza Khater os autos do pedido.
Em manifestação de setembro daquele ano, a promotora de justiça responsável pelo caso apontou uma série de irregularidades no andamento da solicitação de interceptação. Entre as considerações da promotora Nayani Kelly Garcia estão a ausência de legitimidade do policial militar que solicitou a interceptação, a ausência de fundamentação em ação penal, investigação policial ou ação civil e a ausência de fundamentação das decisões que autorizaram os pedidos. Para Garcia, os “fatos evidenciam que a diligência não possuía o objetivo de investigar e elucidar a prática de crimes mas sim monitorar os atos do MST, ou seja, possuía cunho estritamente político, em total desrespeito ao direito constitucional, à intimidade, à vida privada e à livre associação”.
Em outubro de 2000, o Tribunal de Justiça emitiu acórdão, ordenando o arquivamento da investigação contra os funcionários públicos mencionados no que tange à interceptação telefônica, e o envio dos autos ao juízo de primeira instância para análise da conduta do ex-secretário de Segurança, em relação à divulgação dos diálogos interceptados. Na referida decisão, o Tribunal de Justiça considerou que os equívocos que a juíza Khater cometeu “configuravam, em uma primeira análise, faltas funcionais”. Em abril do ano seguinte, o Ministério Público apresentou uma denúncia contra o ex-secretário.
Cândido Martins foi condenado em primeira instância em dezembro de 2003 às penas de multa e de reclusão de dois anos e quatro meses, sendo essa última substituída pela prestação de serviços comunitários. Em outubro do ano seguinte, o Tribunal de Justiça do Paraná acatou recurso do ex-secretário, e sob o argumento de que “o apelante não quebrou o sigilo dos dados obtidos pela interceptação telefônica, uma vez que não se pode quebrar [...] o sigilo de dados que já haviam sido divulgados no dia anterior em rede de televisão”, decidiu reverter a condenação, absolvendo Martins.
Paralelamente a isso, em outubro de 1999, a Coana, a Adecon, além de Arlei José Escher, Celso Aghinoni e Avanilson Alves Araújo, interpuseram perante o Tribunal de Justiça do estado (TJ-PR) um mandado de segurança contra a juíza Khater, solicitando a suspensão das interceptações telefônicas e a destruição das fitas gravadas. Em abril do ano seguinte, o órgão de justiça determinou a extinção do mandado sem julgamento de mérito, por considerar que a interrupção das interceptações significava perda de objeto da ação. Em junho, o TJ-PR rejeitou recurso movido pelas vítimas, e o processo transitou em julgado.
Também em 1999, foi aberto um procedimento administrativo em relação à conduta da juíza Elizabeth Kather no caso, mas o processo foi arquivado em 2001 pela Corregedoria-Geral da Justiça. Em 2008, após recomendação da Comissão Interamericana, o caso foi enviado para a revisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, mas o CNJ recusou o pedido.
Arlei José Escher (em 2004) e Dalton Luciano de Vargas (em 2007) moveram ações civis de reparação de danos morais contra o Paraná. Até a sentença da Corte Interamericana ser publicada, nenhum dos dois havia obtido resultado definitivo nos processos, sendo que Vargas estava recorrendo de derrota em primeira instância.
Paralelamente ao trâmite do caso no Sistema Interamericano, a magistrada Elisabeth Kather, responsável por autorizar as interceptações, recebeu o título de Cidadã Honorária do Paraná, por meio de decreto da Assembleia Legislativa do estado, aprovado pelo então governador, em outubro de 2007.
Na Comissão
A Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e a Justiça Global entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 26 de dezembro de 2000. No documento, as organizações denunciam o Brasil pela violação dos direitos ao devido processo legal (artigo 8), à proteção da honra e da dignidade (artigo 11) e à proteção judicial (artigo 25), em relação à obrigação de respeitar os direitos (artigo 1.1), em prejuízo de membros da Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. (Coana) e da Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais (Adecon).
No dia seguinte, a CIDH transmitiu o caso ao governo brasileiro, para que fosse apresentada contestação no prazo de 90 dias. Após a realização de audiência, em novembro de 2001, e depois novamente em outubro de 2005, quando o caso voltou a ter movimentação, o Estado brasileiro alegou que os peticionários não haviam cumprido o requisito de esgotamento prévio dos recursos internos e que a petição não deveria ser admitida. A CIDH rejeitou a argumentação brasileira e emitiu relatório de admissibilidade [em espanhol] em março de 2006, notificando e abrindo a possibilidade de solução amistosa entre as partes no mês seguinte.
Em 8 de março de 2007, durante seu 127º Período Ordinário de Sessões, a Comissão aprovou relatório de mérito sobre o caso, considerando o Estado responsável pela violação dos direitos ao devido processo legal (artigo 8), à proteção da honra e da dignidade (artigo 11) e à proteção judicial (artigo 25), além da liberdade de associação (artigo 16), não somente em relação às obrigações previstas no artigo 1.1, como solicitava a petição inicial, mas também em relação aos artigos 2 (dever de adotar disposições de direito interno) e 28 (cláusula federal) da Convenção Americana.
O órgão recomendou que o Estado fizesse “uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de estabelecer as responsabilidades civis e administrativas com respeito aos fatos relacionados com as interceptações telefônicas bem como com as gravações realizadas de maneira arbitrária (...), bem como sua divulgação posterior”. Recomendou também que o Brasil oferecesse “reparação plena” a Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, bem como aos familiares de Eduardo Aghinoni, “no aspecto tanto moral quanto material”. Por fim, recomendou a “aprovação e implementação de medidas destinadas a preparar funcionários da justiça e da polícia, a fim de evitar ações que impliquem violação do direito de privacidade em suas investigações” e a “aprovação e implementação de ações imediatas para assegurar o cumprimento dos direitos [violados], de maneira que se tornem efetivos os direitos à proteção especial da privacidade e à liberdade de associação das pessoas físicas”.
Entre abril e dezembro de 2007, o Estado apresentou relatório de cumprimento parcial e solicitou três prorrogações do prazo para efetivar as recomendações, alegando complexidades na interação dos diversos atores estaduais e federais implicados no cumprimento das recomendações formuladas no relatório de mérito. Após a última prorrogação, considerando o descumprimento do prazo pelo Brasil e “levando em consideração a falta de progresso substantivo no que diz respeito ao (...) efetivo cumprimento [das recomendações]” a CIDH resolveu submeter o caso para a Corte Interamericana.
Na Corte
A Comissão Interamericana remeteu o caso à Corte em 20 de dezembro de 2007. Para a CIDH, o envio da demanda ao Tribunal representava “uma oportunidade valiosa para o aperfeiçoamento da jurisprudência interamericana sobre a tutela do direito à proteção da privacidade e do direito à liberdade de associação bem como dos limites do exercício do poder público”.
O órgão solicitou que a Corte declarasse o Brasil responsável pelas violações expressas em seu relatório de mérito. Também solicitou que o Tribunal determinasse as mesmas medidas expressas nas recomendações da CIDH ao Estado brasileiro.
Durante o procedimento ante a Corte Interamericana, as organizações Terra de Direitos, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) também tornaram-se representantes das vítimas.
Exceções Preliminares
Na fase de contestação do processo, o Estado brasileiro interpôs três exceções preliminares — recurso utilizado para evitar total ou parcialmente o julgamento de mérito pelo Tribunal. Elas foram julgadas juntamente com o mérito.
Em sua primeira exceção preliminar, o Estado brasileiro alegou que os representantes das vítimas apresentaram seu escrito de petições e argumentos uma semana após o prazo, e que os anexos foram apresentados ainda depois. Segundo a defesa brasileira, o descumprimento do prazo “constituiu um prejuízo à sua defesa e uma violação ao princípio do contraditório”. A Corte rejeitou o argumento, por considerar que não se tratava efetivamente de uma exceção preliminar. Posteriormente, já na fase de avaliação do mérito, o Tribunal considerou igualmente improcedente a alegação.
Na segunda, o Brasil afirmou que a violação do artigo 28 da Convenção Americana não foi alegada durante o procedimento perante a Comissão, sendo incluída na demanda somente na fase de cumprimento das recomendações do caso na CIDH. Além disso, alegou que “o referido dispositivo não estabelece direito ou liberdade alguma, mas tão somente regras de interpretação e aplicação da Convenção (...) e [a alegada violação] não deve ser valorada pela Corte”. O Tribunal também rejeitou a alegação, por depreender que o suposto descumprimento do artigo 28 já havia sido considerado durante o procedimento perante a Comissão Interamericana, e por considerar que “tem competência para analisar o alegado descumprimento do artigo 28 da Convenção, independentemente da sua natureza jurídica, seja uma obrigação geral, um direito ou uma norma de interpretação”.
Na terceira exceção preliminar, o Estado alegou falta de esgotamento dos recursos judiciais internos. O Tribunal dividiu a exceção preliminar em quatro pontos.
No primeiro, o Brasil alegou que o mandado de segurança, recurso utilizado pelas vítimas internamente, não era um instrumento idôneo para o caso, mas que uma vez escolhido, deveria ter sido esgotado. A Corte rejeitou a alegação, por considerar que “os recursos que devem ser esgotados são aqueles que resultam adequados na situação particular da violação de direitos humanos alegada”, o que não era o caso.
No segundo, o país afirmou que “a ação penal [movida pelas vítimas] foi devidamente instaurada e julgada, de acordo com o devido processo legal, em tempo regular e razoável” e que a Corte atuaria como uma quarta instância de revisão se analisasse o mérito do caso. Em relação a este ponto, o Tribunal ressaltou ter competência para examinar os processos jurídicos internos do país para estabelecer sua compatibilidade com a Convenção Americana, o que “não é o mesmo, por certo, que determinar responsabilidades penais individuais”. A Corte também rejeitou a alegação, considerando que esse exame corresponde ao mérito do assunto.
No terceiro ponto da terceira exceção preliminar, o Brasil alegou que os representantes “não apontaram violação ao artigo 16 da Convenção Americana [em sua denúncia à Comissão] e, por essa razão, não se discutiu, na fase de admissibilidade, o esgotamento dos recursos internos em relação à suposta violação ao direito à liberdade de associação”. O Tribunal também rejeitou este ponto, por considerar que o Estado se “omitiu [de] pronunciar-se sobre a suposta falta de esgotamento dos recursos internos a respeito, ou sobre a falta de oportunidade de pronunciar-se sobre a mesma durante a etapa de admissibilidade”.
Por fim, no quarto ponto, o país alegou que os membros da Coana e da Adecon entraram com ação cível de reparação somente quatro anos após ingressarem com petição no Sistema Interamericano, o que representaria afronta à regra do prévio esgotamento dos recursos internos. A Corte também desconsiderou a exceção preliminar por considerar que “o Estado não apresentou essa defesa no momento processual oportuno”.
Determinação das supostas vítimas
Em sua demanda à Corte, a CIDH incluiu Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral, Celso Aghinoni e Eduardo Aghinoni como vítimas de violações de direitos humanos. Em seu escrito de petições e argumentos, os representantes das vítimas apresentaram uma lista de 34 pessoas.
Para determinar as vítimas efetivas, a Corte levou em consideração que “corresponde à Comissão, e não [ao Tribunal], identificar com precisão e na devida oportunidade processual as supostas vítimas de um caso perante esta Corte”. Por conta disso, não incluiu os demais nomes apresentados pelos representantes. Além disso, considerando que Eduardo Aghinoni faleceu pouco mais de um mês antes da interceptação ocorrer, o órgão interamericano também não o incluiu. Com isso, somente Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral, Celso Aghinoni foram considerados pelo Tribunal.
Supostas violações analisadas pela Corte
Artigo 11, em relação com o artigo 1.1
A Comissão alegou violação do direito à vida privada, à honra e à reputação das supostas vítimas por conta da responsabilidade estatal pela interceptação e gravação das conversas telefônicas, pela divulgação de seu conteúdo e pela negativa do Poder Judiciário de destruir o material gravado. Os representantes das vítimas coincidiram nessa argumentação.
O Estado contestou que a violação alegada não havia se configurado, afirmando não haver vícios no processo que estabeleceu as interceptações; que eventual falha nesse procedimento não resultou em prejuízo à honra ou à dignidade; e que as condutas dos envolvidos foram devidamente examinadas.
Para a Corte, o artigo 11 da Convenção Americana, que proíbe “ingerências arbitrárias ou abusivas” na vida privada das pessoas, contempla conversações telefônicas, ainda que isso não esteja explicitamente impresso no tratado. Em sua decisão, o Tribunal ressaltou que “o direito à vida privada não é um direito absoluto”, podendo “ser restringido pelos Estados quando as ingerências não forem abusivas ou arbitrárias; por isso, devem estar previstas em lei, perseguir um fim legítimo e ser necessárias em uma sociedade democrática”.
No Brasil, a normativa que rege as interceptações telefônicas desde à época dos fatos julgados pelo Tribunal é a Lei 9.296/96. Para a Corte, as interceptações e gravações das conversas dos membros da Adecon e da Coana descumpriram uma série de artigos da lei brasileira: não havia um procedimento investigativo que justificasse as solicitações; os pedidos, assim como as decisões que os concederam, “não expuseram quais eram os indícios razoáveis de autoria ou de participação dos membros [das organizações] nas infrações penais supostamente investigadas”; os policiais militares não eram autoridades competentes para requerer a interceptação; não houve fundamentação da decisão por parte da magistrada e não houve autorização para que o segundo período de interceptação fosse executado; o Ministério Público não foi comunicado e a transcrição da íntegra do material não foi incluída nos autos.
Com base nisso, a Corte Interamericana considerou que a interceptação e a gravação de conversas telefônicas das vítimas significou uma violação ao direito à vida privada, previsto no artigo 11 da Convenção Americana, pelo Estado brasileiro.
O Tribunal também analisou a ingerência na vida privada, honra e reputação das vítimas em relação à divulgação de trechos das conversas em duas situações: por meio de “agente não identificado”, que entregou o material exibido no Jornal Nacional; e através do então secretário de Segurança Pública, que “entregou partes transcritas das gravações aos jornalistas presentes na coletiva de imprensa de 8 de junho de 1999 e os fez escutar fragmentos de áudio das fitas gravadas”.
Em relação à divulgação no Jornal Nacional, o órgão interamericano considerou que “o Estado não apresentou uma explicação satisfatória sobre como conversas privadas interceptadas e gravadas no curso de uma investigação penal, protegidas pela figura do segredo de justiça, culminaram em um meio de imprensa”. No tocante à divulgação pelo secretário Cândido Martins, o Tribunal considerou que foi feito “sem que estivesse autorizado por lei ou por ordem judicial como exigido pela Lei 9.296/96”. No entendimento dos juízes, “manter sigilo quanto às conversas telefônicas interceptadas durante uma investigação penal é um dever estatal”.
Dado isso, a Corte Interamericana também considerou que, “ao divulgar as conversas privadas que se encontravam sob segredo de justiça, sem respeitar os requisitos legais, o Estado violou os direitos à vida privada, à honra e à reputação, reconhecidos nos artigos 11.1 e 11.2 da Convenção Americana, conexo com a obrigação de respeito consagrada no artigo 1.1 do mesmo tratado”.
Artigo 16, em relação com artigo 1.1
A Comissão Interamericana destacou “a obrigação do Estado de não interferir no exercício do direito de reunião ou associação” e “a obrigação de adotar, em certas circunstâncias, medidas positivas para assegurar [seu] exercício efetivo”. No presente caso, a CIDH considerou que as intervenções, o monitoramento e a publicação das informações configuraram “um modo de restrição velada à liberdade de associação”, com objetivo de “deslegitimar o trabalho das associações que de que faziam parte” as vítimas. Com base nisso, solicitou à Corte que declare a violação ao artigo 16 da Convenção Americana.
Em seus escritos, os representantes ratificaram os argumentos da Comissão e acrescentaram que a violação no caso em questão estava “nitidamente caracterizada pela criminalização e perseguição aos defensores de direitos humanos e movimentos sociais”, com o objetivo de desmoralizar e silenciar essas lideranças. Os representantes também apontaram que a atuação do Estado ocasionou prejuízos às atividades das duas associações, inclusive com a dificuldade de obtenção de recursos financeiros.
Para os representantes das vítimas, o objetivo da atuação estatal era, além de criminalizar e intimidar as vítimas, “enfraquecer as associações de trabalhadores rurais ligadas ao MST” que lutam pelo acesso à terra, pelo fim do latifúndio e “a equânime distribuição da propriedade rural”.
Em sua defesa, o Brasil negou a violação ao direito de associação das vítimas e a existência de “uma tendência à perseguição a trabalhadores rurais e restrição velada ao direito de associação”, e afirmou que a CIDH não identificou claramente os fatos que configurariam a violação. O Estado também alegou que a interceptação das comunicações não era contrária à liberdade de associação, pois perseguia um fim legítimo: a investigação de desvios de recursos públicos e da morte de Eduardo Aghinoni, integrante da Coana.
Na decisão, a Corte destacou que a Convenção Americana reconhece o direito de associar-se livremente e “ao mesmo tempo estabelece que o exercício de tal direito pode estar sujeito a restrições previstas por lei, que persigam um fim legítimo e que, definitivamente, resultem necessárias em uma sociedade democrática”.
Para os juízes, porém, além da ingerência nas comunicações das vítimas não cumprir os requisitos legais, “não se evidencia através dos autos que as finalidades declaradas pela autoridade policial no seu pedido de interceptação telefônica (...) fossem as que efetivamente se perseguiam”.
O Tribunal destacou a postura do major Neves, um dos solicitantes do monitoramento das comunicações das entidades. O policial, ao pedir a cessação da interceptação, afirmou que “[o] monitoramento realizado até [aquela] data já t[inha] surtido o efeito desejado”. A despeito da afirmação do PM, a interceptação não resultou em nenhum avanço nas investigações da morte de Eduardo Aghinoni ou do desvio de recursos, tampouco de qualquer outra ação investigativa.
Quanto à alegação dos representantes de perseguições e danos materiais, a Corte destacou o depoimento da vítima Celso Aghinoni, que afirmou que, após a interceptação e divulgação das conversas telefônicas “todo mundo começou a v[ê-los] como bandidos, como terroristas”; que os projetos dentro da cooperativa para beneficiar a produção “fic[aram] paralisado[s] durante cinco anos, até que [...] consegui[ram] [re]adquirir a confiança [...] das empresas, do[s] banco[s] e das próprias organizações do governo[, pelo que] ti[veram] um prejuízo moral e econômico muito grande”; que “[havia] uma perseguição sistemática da polícia civil e militar [aos integrantes das associações]”, e que depois dos fatos ele “evita[va] falar que [...] era membro da Coana”.
A decisão aponta que a Corte não contava “com outros elementos que lhe permitam considerar provadas as perseguições nem os danos materiais alegados pelos representantes, tais como a perda de ingressos ou de possibilidades de crédito das organizações como consequência dos fatos mencionados”. A despeito disso, os juízes consideraram que as declarações testemunhais “demonstram de maneira consistente que quando essas pessoas tomaram conhecimento da interceptação e da divulgação de suas conversas telefônicas, sofreram um temor intenso e, por outra parte, a divulgação causou problemas entre os associados e agricultores vinculados às organizações Coana e Adecon, além de afetar a imagem dessas entidades”.
Com base nisso, a Corte considerou “provado que o monitoramento das comunicações telefônicas das associações (....) e sua posterior divulgação causaram temor, conflitos e afetações à imagem e à credibilidade das entidades”, alterando “o livre e normal exercício do direito de associação” da Coana e da Adecon, representando violação do direito reconhecido no artigo 16 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1, em prejuízo das vítimas.
Artigos 8.1 e 25, em relação com artigo 1.1
Em sua petição à Corte, a CIDH alegou que “a inexistência de um recurso efetivo contra as violações (...) constitui uma transgressão” da Convenção, ressaltando que “não basta que os recursos existam formalmente, mas também é preciso que seja efetiva sua aplicação”. Na visão da Comissão, “os resultados dos recursos tentados no âmbito interno mostram […] uma série de intromissões na vida privada das vítimas [e] no seu direito de associar-se, e que o Estado não respondeu com a devida diligência”, tendo violado direitos protegidos pelos artigos 8.1 e 25, em relação com o artigo 1.1.
Adicionalmente ao defendido pela CIDH, os representantes das vítimas alegaram violação da imparcialidade pela juíza Elisabeth Khater, que autorizou as interceptações, assim como pelo Tribunal de Justiça que julgou a conduta da magistrada. Ambas as alegações adicionais foram rejeitadas pela Corte: a relacionada à juíza porque parte do alegado não estava presente na demanda da Comissão, parte porque já havia sido analisado; em relação à suposta violação da imparcialidade pelo Tribunal de Justiça, a Corte considerou que “não se demonstram nos autos os pressupostos fáticos que, segundo os representantes, violariam as garantias de imparcialidade e independência alegadas”.
Em sua defesa, o Brasil negou a violação dos direitos, alegando que havia recursos disponíveis e que “se as vítimas tivessem utilizado o recurso adequado, teriam sido escutadas de acordo com todas as garantias previstas” na Constituição Federal. Também ressaltou que a decisão judicial que autorizou a interceptação “se produziu por um erro da juíza no que se refere ao procedimento legal que deve ser seguido”, mas que esse erro “foi amplamente investigado nas três esferas de responsabilidade do Estado: penal, administrativa e civil, o que leva a concluir que não se está diante de uma situação que mereceria a apreciação desse equívoco por parte de uma instância internacional”.
A Corte Interamericana ressaltou em sua decisão que “para cumprir a obrigação de garantir direitos, os Estados não só devem prevenir, mas também investigar as violações aos direitos humanos reconhecidos na Convenção e procurar ademais, se possível, o restabelecimento do direito violado e a reparação dos danos produzidos pelas violações de direitos humanos”. Além disso, destacou que “o dever de investigar é uma obrigação de meio e não de resultado” e que “este dever deve ser assumido pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples formalidade condenada de antemão a ser infrutuosa”.
O Tribunal dividiu sua análise em quatro partes. Em relação ao mandado de segurança movido pelas vítimas, constatou que era o recurso idôneo, mas que “não era capaz de produzir o resultado pretendido no caso concreto, não por uma circunstância atribuível ao Estado ou às vítimas, mas por que os fatos que se reputavam violatórios haviam cessado”. Quanto ao pedido de destruição das fitas, incluso no mandado, a Corte considerou que existiam no direito interno outros recursos para alcançar este fim. Com base nisso, considerou não ter encontrado evidência de que houve violação dos artigos 8 e 25 quanto a isso.
Em relação à jurisdição penal, a Corte Interamericana considerou regular a primeira fase do procedimento criminal, que determinou o arquivamento da investigação contra a juíza Khater e os policiais militares, além de remeter à primeira instância a análise da conduta do então secretário de Segurança. Em relação a essa análise, porém, os juízes consideraram ter havido falhas na busca por provas, apontando que o Tribunal de Justiça do Paraná “concluiu que o ex-secretário não divulgou novos trechos da conversa telefônica, sem ter essa prova nem comparar o material exposto em ambas as divulgações”. A decisão ressalta também a ausência de diligências para esclarecer o vazamento dos áudios para o Jornal Nacional. Com base nisso, a Corte considerou que houve violação dos artigos 8 e 25 em relação a esse ponto.
Já quanto ao procedimento administrativo movido contra a juíza Elisabeth Khater, que foi arquivado pela Corregedoria-Geral da Justiça à época, o Tribunal considerou que a Corregedoria “deveria ter motivado sua decisão quanto à ausência de faltas funcionais atribuídas à juíza Khater (...), e não ter-se limitado a indicar os fatos que já haviam sido analisados pelo Tribunal de Justiça, quando precisamente esse tribunal determinou que a atuação da juíza não configurava delito penal, mas sim poderia constituir faltas funcionais”. Com base nisso, a Corte considerou que o Estado “descumpriu seu dever de motivar a decisão quanto à responsabilidade administrativa da interceptação e a gravação da conversa telefônica”, destacando também a ausência de procedimentos para analisar a responsabilidade administrativa dos policiais militares e do então secretário de Segurança.
Por fim, o órgão interamericano não enxergou violações dos direitos consagrados nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana em relação aos processos civis movidos por Arlei José Escher e Dalton Luciano de Vargas, já que o Tribunal não contava “com os respectivos autos processuais nem com outros elementos que pudessem demonstrar a falta de efetividade das ações civis e possíveis violações”.
Artigo 28, em relação com artigo 1.1 e 2
Em sua demanda, a Comissão Interamericana considerou que o Brasil incorreu nesta violação ao alegar, em uma reunião de trabalho relacionada ao cumprimento das recomendações feitas pela CIDH, que encontrava dificuldades em “estabelecer contato com as autoridades do […] Paraná, e por isso, não seria possível trazer informações sobre o cumprimento das recomendações”. Na interpretação da Comissão, a salvaguarda dos direitos previstos na Convenção “prescindem de qualquer referência à divisão interna de competências ou organização das entidades componentes de uma federação”. Os representantes das vítimas coincidiram na argumentação da CIDH.
Em sua defesa, o Brasil alegou primeiramente que o artigo 28 configura apenas uma regra de interpretação e aplicação da Convenção, e que uma violação de tal artigo não poderia ser objeto de exame da Corte. Além disso, argumentou que a menção às dificuldades de comunicação interna foram demonstração de boa-fé e transparência, e tiveram como objetivo explicar as razões do descumprimento imediato de todas as recomendações. O Estado afirmou “repudia[r] o uso das declarações proferidas por ocasião da reunião de trabalho como argumento para demonstrar o descumprimento da cláusula federal”.
Em relação à primeira alegação, a Corte Interamericana destacou ter “competência para interpretar e aplicar as disposições da Convenção Americana, não só as que reconhecem direitos específicos, senão também as que estabelecem obrigações de caráter geral” e ressaltou a importância de que os Estados assegurem “o respeito e a garantia de todos os direitos reconhecidos na Convenção Americana a todas as pessoas sob sua jurisdição, sem limitação nem exceção alguma com base na referida organização interna”.
A despeito disso, a Corte considerou que a comunicação brasileira de dificuldades no cumprimento das recomendações “não significa nem acarreta, por si mesma um descumprimento à norma”, ressaltando que, durante o trâmite perante o Tribunal, “o Estado não apresentou sua estrutura federal como escusa para descumprir uma obrigação internacional”. Com base nisso, considerou não haver a violação alegada.
Pontos resolutivos da sentença
Corte decide, por unanimidade:
- Rechaçar as exceções preliminares interpostas pelo Estado.
Corte declara, por unanimidade:
- O Estado violou o direito à vida privada e o direito à honra e à reputação reconhecidos no artigo 11 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 da mesma, em prejuízo dos senhores Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, pela interceptação, gravação e divulgação das suas conversas telefônicas.
- O Estado violou o direito à liberdade de associação reconhecido no artigo 16 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 da mesma, em prejuízo dos senhores Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, pelas alterações no exercício desse direito.
- O Tribunal não conta com elementos que demonstrem a existência de uma violação aos direitos consagrados nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana no que concerne ao mandado de segurança e às ações civis examinadas no presente caso. De outra feita, o Estado violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial reconhecidos nos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 da mesma, em prejuízo dos senhores Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, a respeito da ação penal seguida contra o ex-secretário de segurança; da falta de investigação dos responsáveis pela primeira divulgação das conversas telefônicas; e da falta de motivação da decisão em sede administrativa relativa à conduta funcional da juíza que autorizou a interceptação telefônica.
- O Estado não descumpriu a cláusula federal estabelecida no artigo 28 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 da mesma, em prejuízo dos senhores Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni.
Corte dispõe, por unanimidade:
- Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação.
- O Estado deve pagar aos senhores Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni montante fixado a título de dano imaterial, dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação da sentença.
- O Estado deve publicar no Diário Oficial, em outro jornal de ampla circulação nacional, e em um jornal de ampla circulação no Estado do Paraná, uma única vez, a página de rosto, os Capítulos I, VI a XI, sem as notas de rodapé, e a parte resolutiva da presente Sentença, bem como deve publicar de forma íntegra a presente Decisão em um site oficial da União Federal e do Estado do Paraná. As publicações nos jornais e na internet deverão realizar-se nos prazos de seis e dois meses, respectivamente, contados a partir da notificação da sentença.
- O Estado deve investigar os fatos que geraram as violações do presente caso.
- O Estado deve pagar, no prazo de um ano, montante fixado por restituição de custas e gastos, dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação da sentença.
- A Corte supervisionará o cumprimento íntegro desta sentença, em exercício de suas atribuições e em cumprimento dos seus deveres conforme a Convenção Americana, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma. O Estado deverá, dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação desta sentença, apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para cumprir a mesma.
Os juízes Sergio García Ramírez e Roberto de Figueiredo Caldas (ad hoc) apresentaram, respectivamente, votos concordante e fundamentado. Ambos os votos podem ser lidos ao final da sentença da Corte.
Cumprimento da sentença
Nenhum dos supostos crimes imputados aos membros da Coana e da Adecon para justificar o monitoramento telefônico foi provado, tampouco instaurou-se inquérito acerca disso. Quanto ao assassinato de Eduardo Aghinoni, também mencionado na justificativa para solicitar a interceptação, Jair Firmino Borracha foi condenado a 15 anos de prisão em 2011.
O policial militar Valdir Copetti Neves, responsável por solicitar as interceptações, foi condenado em 2009 a 18 de prisão pela Justiça Federal por tráfico internacional de arma de fogo, drogas e formação de quadrilha. As armas eram utilizadas para segurança ilegal de fazendeiros e repressão a famílias do MST, que também acusou o ex-policial de grilar terras da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Neves, que chegou a tenente-coronel da PM, foi reformado após a condenação. Ele foi assassinado em outubro de 2018, após uma emboscada. Os suspeitos estão presos.
Valdemar Kretschmer e Valdecir Pereira da Silva, os dois outros policiais militares que tiveram participação no caso, continuaram atuando na corporação. O ex-secretário de Segurança Pública do Paraná Cândido Martins de Oliveira, também envolvido nas interceptações, foi demitido do cargo pelo governador Jaime Lerner em março de 2000, após denúncias na CPI do Narcotráfico.
Além de ter se tornado cidadã honorária do Paraná, a juíza Elisabeth Khater, que autorizou as interceptações, permaneceu por quase duas décadas na comarca de Loanda. Em 2008, Khater assumiu a 1ª Vara Criminal e a presidência do Tribunal do Júri em Londrina (PR). Ela faleceu em setembro de 2019, aos 70 anos.
Em relação ao caso perante à Corte Interamericana, o órgão publicou dois relatórios de supervisão do cumprimento da sentença, em 17 de maio de 2010 e em 19 de junho de 2012. No segundo relatório, o Tribunal deu a supervisão do cumprimento como concluída e definiu o arquivamento do expediente. O caso Escher é o único em que a sentença foi considerada integralmente cumprida pela Corte Interamericana.
Pontos resolutivos 7 e 10 (indenização)
Por meio do Decreto 7.158, de 20 de abril de 2010, o Brasil pagou US$ 22 mil (cerca de R$ 38 mil em valores da época, R$ 85 mil em valores de novembro/2020) a cada uma das cinco vítimas, referentes a indenização por danos imateriais e restituição de gastos.
Ponto resolutivo 8 (publicações)
Fora do prazo previsto para tal, o Brasil solicitou formas alternativas de cumprir a obrigação de publicar trechos da sentença em jornal de grande circulação nacional. O país alegou que a publicação de todos os capítulos previstos na sentença ocuparia mais de 40 páginas, sendo de difícil compreensão e acarretando em alto custo. Em resposta a essa solicitação, os representantes sugeriram a redução da quantidade de parágrafos a ser publicada pelo Estado. A sugestão foi acatada pela Corte Interamericana, que deu o prazo de dois meses para o cumprimento, em maio de 2010.
Após o relatório, o Brasil publicou as partes pertinentes da sentença no jornal O Globo, em 23 de julho de 2010, no Correio Paranaense, em 10 de agosto, e no Diário Oficial da União, em 27 de setembro daquele ano. Além disso, também publicou a sentença no site oficial da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, e nos da Procuradoria-Geral de Justiça e do Tribunal de Justiça do Paraná.
Ponto resolutivo 9 (investigação)
O Brasil, por intermédio da Secretaria de Direitos Humanos, consultou a Procuradoria-Geral de Justiça paranaense sobre a possibilidade de abertura de investigação sobre a divulgação das conversas telefônicas. O órgão de Justiça informou que não era possível, já que os atos já haviam prescrito, de acordo com os prazos previstos na lei. O Estado também destacou a impossibilidade de se considerar o caso uma grave violação de direitos humanos — o que o tornaria imprescritível. A argumentação do Estado foi rejeitada tanto pelos representantes quanto pela Comissão, mas acatada pela Corte Interamericana.
O órgão ressaltou que, em sua jurisprudência, tem considerado como graves violações de direitos humanos — e imprescritíveis — torturas, desaparecimento forçado e execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, o que não era o caso. Considerando a prescrição dos atos, a Corte considerou a obrigação de investigá-los cumprida.
Saiba mais
Oficial
- Relatório de admissibilidade da CIDH [em espanhol]
- Demanda da CIDH para a Corte
- Escrito de Solicitações, Argumentos e Provas (ESAP) dos representantes
- Contestação do Brasil
- Alegações finais dos representantes
- Alegações finais da CIDH [em espanhol]
- Alegações finais do Brasil
- Íntegra da sentença
- Interpretação da sentença de mérito
Outros
- Brasil é condenado pela OEA por grampos ilegais contra o MST (Terra de Direitos)
- Brasil indeniza membros do MST em US$ 110 mil (Conjur)
- Governo acata decisão da OEA e vai indenizar membros do MST por grampo ilegal (Opera Mundi)
Notas do autor
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As informações apresentadas neste site sobre o Caso Escher foram essencialmente extraídas da sentença da Corte Interamericana. Também há informações colhidas no relatório de admissibilidade da CIDH e nos escritos de submissão do caso à Corte. Informações de contexto também foram colhidas nos textos e reportagens listadas em “saiba mais” e na petição inicial do Caso Garibaldi.
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As informações sobre o cumprimento da sentença foram colhidas nos relatórios de supervisão da Corte Interamericana, nos processos judiciais ligados ao caso, nos textos e reportagens listadas em “saiba mais” e nas reportagens linkadas.
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No “resumo da sentença”, em que são apresentados os pontos resolutivos determinados pela Corte, são omitidas referências a parágrafos da sentença e feitas adaptações para melhor entendimento.
Foto em destaque: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil