Criado em 1972, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) está espalhado por todo o Brasil, atuando nas cinco regiões do país. Em Pernambuco, a entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) acompanha de perto a situação do Povo Xucuru, sendo uma das representantes dos indígenas no caso que tramitou no Sistema Interamericano. Nesta entrevista, concedida em 19 de novembro de 2020, a assessora jurídica do Cimi Carol Hilgert aborda a história de luta que acompanhou o processo demarcatório da Terra Indígena Xucuru e traça perspectivas para o futuro das populações indígenas do Brasil.
Como você avalia o comportamento do Estado e da justiça brasileira em relação ao processo demarcatório e os processos judiciais?
No caso Xucuru, a história é bem, bem longa, nessa questão do comportamento do Estado brasileiro até chegar à Corte. Só para contextualizar um pouquinho, a história dos Xucuru começa, claro, muito antes de 1500, mas na época da Guerra do Paraguai, os Xucuru fizeram um acordo com o Estado, de irem lutar no Paraguai, e que quando eles retornassem, teriam a terra para eles. Quando eles retornaram, a terra não estava para eles. Vários fazendeiros já tinham ocupado.
Eles ficaram um bom tempo nessa luta para reivindicar a terra. Os Xucuru participaram ativamente da Constituinte, pela conquista dos direitos, aí principalmente lembrando do [cacique] Xicão, que é pai do [atual cacique] Marquinhos Xucuru. Eles passaram, com a Constituição, a continuar reivindicando a terra.
O Xicão começou a fazer o que eles chamam de retomadas, porque o Estado não estava garantindo o território e não avançava no procedimento. Então a gente fala que, no caso dos Xucuru, cada avanço no procedimento demarcatório foi marcado por algum assassinato, ou alguma tragédia. O Xicão, se não me engano, foi assassinado em 1998, e ele anuncia, o próprio Xicão anunciou que estavam tentando matar ele.
Em Pesqueira, era muito complicada a situação, tinha muita gente grande envolvida com o território Xucuru. Havia uma pressão do Estado para que as coisas não acontecessem, mas o povo Xucuru ia lá e continuava na pressão.
Enfim, aí Xicão foi assassinado. Foi ele que fez as maiores retomadas do território. Eles fizeram uma estratégia de retomada no sentido de ir nas maiores primeiro, porque eles achavam que aí os menores iriam ficar com medo e sair. Eles foram retomando. Então, assim, dizer que foi o Estado que demarcou a Terra Xucuru é quase uma mentira, porque quem foi fazendo a desintrusão e possibilitando a própria demarcação, foram eles próprios. E com muita morte. Aí, o que aconteceu é que vários faleceram, inclusive um cara da Funai, o advogado da Funai, que defendia o procedimento demarcatório, acho que era [Geraldo] Rolim, o nome dele.
Eles foram fazendo essas retomadas. Eu tenho contadinho, porque na época do julgamento da Corte a gente fez essa linha [do tempo]. O Xicão chegou a fazer as maiores retomadas ali, chegou a fazer seis, e aí foi assassinado. Quando ele foi assassinado, a comoção foi ainda maior. Aí começam a tentar criminalizar os próprios indígenas. Cada indígena que morria durante o procedimento demarcatório, quem era investigado, quem era acusado, eram os próprios indígenas, nessa tentativa de desarticular, mesmo.
Por que vocês resolveram levar o caso ao Sistema Interamericano?
Quando o Xicão foi assassinado, eles começaram a tentar criminalizar a mulher do Xicão, que é a dona Zenilda. E começam a dizer que a dona Zenilda tinha um caso com uma das grandes lideranças dali, que era o Zé de Santa. A dona Zenilda teve até que se esconder. Não porque a comunidade acreditasse nisso, mas porque a perseguição do Estado, no sentido de criminalizá-la pela morte do Xicão.
Aí que começa, na verdade, essa necessidade de chegar na Corte. Com a morte do Xicão, a dona Zenilda passa a ser criminalizada, e o Marquinhos Xucuru... Ali no Xucuru, o cacicado é dado através dos 'encantados'. A religião Xucuru é muito forte, eles se baseiam muito na Jurema [sagrada], eles têm uma pajelança bem forte. O cacicado ali, quem define são essas entidades, tipo espíritos, pra gente que não sabe nada.
Teve uma situação, um pouco antes do Xicão falecer, em que o Xicão teria perguntado para o pajé quem seria o próximo [cacique], porque não necessariamente seria o filho dele. E aí, o pajé falou que o próximo estava do lado dele. O Marquinhos tinha dez anos de idade.
Quando o Xicão foi assassinado, o Marquinhos tinha 20 anos. Aí ele assume esse cacicado. O Marquinhos com esses 20 anos, assumindo o cacicado, ele resolve fazer retomadas, porque o Estado não avançava. Só avançava quando eles avançavam. Se eu for contar aqui, acho que o Marquinhos liderou mais de 40 retomadas. Foi um negócio estrondoso, mesmo.
Eles foram retomando, retomando, até que praticamente retomaram todo o território. Quem sobrou ali dentro é porque vive tranquilo com eles, a maioria. Apesar de ainda ter alguns terceiros. Mas esses terceiros não estão em nem 1% do território hoje. Foram eles que retomaram o território todo.
Nisso, o Marquinhos foi ameaçado várias vezes. Fizeram uma emboscada contra ele na estrada, e dois adolescentes Xucuru morreram, ele conseguiu escapar. Isso foi reforçando as denúncias para a Corte, porque tinham a ver com a integridade física do Marquinhos e da dona Zenilda, tanto que eles entraram para o Programa de Proteção.
Teve um episódio em que os Xucuru foram lá e expulsaram uma cidade inteira de dentro do território. Era um lugar em que queriam fazer turismo religioso. Disseram que acharam uma santa. Sei que os Xucuru foram lá e expulsaram uma cidade inteira. Foram mais de 40 Xucuru nesse caso acusados de botar fogo na cidade. Condenados também, tiveram que cumprir pena.
Isso tudo foi para a Corte. O processo demarcatório, o que aconteceu: em 1996, vem aquele decreto 1.775. Então o processo ia avançando, chegou o decreto que abriu para contestações de terceiros. Teve uma chuva de contestação, todas foram negadas, e o processo administrativo foi avançando nesse sentido.
Quando foi finalizado o processo de demarcação, da parte administrativa da Funai, os Xucuru levaram para registro, no cartório de Pesqueira, depois que já tinha sido homologada e tudo. No cartório, se recusaram a registrar a terra. Eles abriram um procedimento interno, de dúvida, uma coisa meio rara de acontecer em cartórios, mas que quando acontece, demora 90 dias. Ficou mais de dois anos lá, o cartório se negando. Precisou também de todo um esforço ali.
Em 2002, a gente levou tudo para a Comissão, e foi levando. Também na Comissão, ficou parado um tempão, porque a gente levou as informações em 2002, e só em 2016 que a Comissão levou para a Corte, foi aí mais de dez anos para fazerem alguma coisa.
Acho que foi mais ou menos isso, o Estado realmente não fez absolutamente nada. Quem fez foram os Xucuru. Claro, o que fizeram foram os procedimentos que foram avançando, mas que só avançaram mediante pressão ou morte dos Xucuru. Acho que a participação do Estado foi muito pequena.
Tanto que lá na Corte, no julgamento, foi bem vergonhoso para o Estado. Eles botaram um antropólogo lá para falar, que chamou as mortes que aconteceram durante o procedimento administrativo de “acidente”. Eles não conseguiram falar o que eles fizeram, porque de fato foram as retomadas que tiraram os terceiros, que era o papel do Estado tirar. E a cada retomada que eles faziam, alguém era assassinado e alguém era criminalizado.
Então foi bem vergonhoso, eu achei, para o Estado. E eles diziam também que o território já está livre e desimpedido, que os Xucuru já podem usufruir, como se aquilo tivesse sido feito por eles. Mas na questão de fato, o território até hoje tem terceiros dentro, até hoje as pessoas não foram indenizadas [por benfeitorias de boa fé], as pessoas que precisavam ser. Ainda tem uma ação de reintegração de posse, que pode ser cumprida.
A gente entende que, mesmo que já tenha tido o procedimento, mesmo com a sentença da Corte, eles ainda sofrem algumas ameaças. Mais leves, nesse momento, mas ainda existem.
Você falou da demora dentro da Comissão. Que outras dificuldades vocês encontraram para conseguir fazer com que esse caso tivesse um desfecho internacional?
Eu acho que foi mais a questão do tempo, mesmo. Com essa questão do tempo, o caso ficou focado só na questão da demarcação das terras. Eu penso que, se ele tivesse sido feito com mais velocidade, as mortes, os assassinatos, não seriam só pano de fundo. Poderia ter outro desfecho nesse sentido. Acho também que, se tivesse sido mais rápido, algumas violências nesse processo teriam sido evitadas.
Qual a importância e o que representa essa sentença? Que impacto ela teve para o povo Xucuru?
A sentença teve um impacto não só para os Xucuru, teve um impacto para todos os povos indígenas do Brasil, no sentido de não banalizar essa demora [no processo demarcatório]. A Constituição previa que as terras indígenas iam ser demarcadas em cinco anos. Já passaram 30 anos, pelo menos, e as terras ainda não foram demarcadas.
E agora se vem com esse papo de marco temporal. A gente até fala que a primeira vez que falaram em marco temporal, foi no caso dos Xucuru, que queriam usar 1822 como data. Então eu acho que o fato de os Xucuru já terem a terra demarcada, mas mesmo assim a Corte condenar o Estado, porque esse usufruto ainda não é pleno, porque ainda existem ameaças, é muito significativo também para mostrar que não acaba na demarcação. O direito dos indígenas precisa se dar na prática, precisa se dar no território. Não acaba com o papel de demarcação.
A Corte, na sentença, traz essa noção mais completa e menos banal. Por exemplo, o próprio Estado chegou lá dizendo que as terras indígenas, mais da metade já estão demarcadas. Existe muito esse argumento. Se você pensar que as terras que estão demarcadas, a maioria se encontra na região amazônica... As terras são gigantescas na Amazônia. Por mais que, territorialmente, a gente possa falar que tem muita terra demarcada, os povos não estão beneficiados.
No Mato Grosso do Sul, a segunda maior população indígena não tem território. Essa noção que a Corte traz, que precisa ser completo, que precisa da demarcação, da desintrusão... Precisa também do Judiciário se comportar de maneira a garantir esse direito originário. Porque não adianta a gente ter uma reintegração de posse pendente também. Então acho que isso foi muito válido.
Eles receberam também uma indenização, de US$ 1 milhão, que foi paga pelo Estado à Associação. E até, como o próprio Marquinhos disse, esse dinheiro não é nada perto de tudo o que eles passaram. Mas é alguma coisa, é uma conquista nesse sentido. Então acho que a conquista em si da sentença, ela tem a ver não só com os Xucuru, mas com todos os povos.
Partindo para o cumprimento da sentença, você já falou de algumas coisas. A desintrusão ainda não está completa e as ações que estavam pendentes, assim continuam, certo?
O que o Estado cumpriu foi a indenização para a comunidade e a publicação. O resto ainda está pendente. Tanto que, a gente entrou com uma ação rescisória em relação a essa reintegração de posse, para você ter uma ideia, ela está parada no STJ [Superior Tribunal de Justiça]. A Corte já julgou, até a Corte foi mais rápida. A gente até já juntou a decisão da Corte em vários casos. Mas essa parte eles não finalizaram. A parte de finalizar as indenizações das pessoas, também não fizeram. Ainda está tudo pendente.
Uma das coisas que a maioria das sentenças da Corte batem bastante na tecla são as garantias de não repetição. Há garantias de não repetição do que os Xucuru passaram?
Não tem garantia nenhuma de não repetição, sobretudo quando você não tem o julgamento do marco temporal, quando você ainda tem que discutir uma tese dessa. Acho que o que aconteceu agora, pensando na pandemia, é que com aquela liminar de repercussão geral que o Fachin deu, todos os processos de reintegração de posse e de anulação das demarcações com base no marco temporal, ficaram suspensas. Isso deu um respiro. Mas sem o julgamento efetivo da questão do marco temporal, principalmente, não tem garantia nenhuma de não repetição. Pelo contrário, tem de não demarcar, mesmo.
Insistindo nesse tema, qual o cenário hoje para as populações indígenas, especialmente em relação aos seus territórios, e quais as perspectivas dos próximos anos?
Eu acho que em termos de perspectiva, a maior perspectiva colocada hoje, para além de sobreviver à pandemia, é essa questão do julgamento do marco temporal. Acho que isso vai ser fundamental para definir. Se isso não ficar definido, a situação só tende a piorar.
É o que a gente estava vendo acontecer no Brasil inteiro. Diversas terras, que tiveram todo um procedimento administrativo feito por pessoas competentes, pelo órgão competente, sendo aniquilado, com base no marco temporal. Então eu acho que, tudo bem, nesse momento a gente tem essa liminar. Mas será que ela vai segurar a onda? Não sei. [Depende] do julgamento marco temporal para que os indígenas possam ter um alívio, um respiro.
Não quer dizer que, com o julgamento do marco temporal, a Funai vai trabalhar, porque a perspectiva em relação à Funai é a pior possível nesse momento. A gente tem visto a própria Funai não atuar na defesa de indígenas, simplesmente porque ela usa critérios que já foram abandonados pela Constituição Federal, como o critério da integração e tudo mais.
Eu acho que a perspectiva é a pior possível. Então é muito necessário entender o lugar dos indígenas nesse momento, pra gente não voltar para trás. Principalmente, quando a gente vê que essas forças tem sido muito presentes nos territórios, no sentido da cooptação de indígenas, ou na alteração da realidade cultural da organização social daqueles povos. As organizações sociais dos povos têm sido muito perseguidas, até pelo Ministério Público. Essa seara da criminalização tem acontecido muito.
Eu penso que o julgamento do marco temporal é fundamental para dar alívio e continuidade aos procedimentos demarcatórios. Porque, sem terra, os indígenas não tem como sobreviver e nem como lutar por outras coisas. Eu penso que o cenário é o pior possível mesmo, sem esse julgamento.
Ainda mais agora, que a gente tem essa Instrução Normativa nº 9, que está rolando. Essa outra orientação da Funai, também, da Procuradoria Especializada não atuar na defesa de indígenas que seriam “integrados”. Aí você pergunta o que é integrado para o chefe da Procuradoria e ele não sabe dizer, mas diz que os indígenas não são mais tutelados. Então está tendo uma perversidade em confundir o que é o dever de proteção do Estado a uma população vulnerável, e o que é o direito dessa população buscar o seu próprio direito. É muito perverso o que está acontecendo, a gente tem que estar meio preparado mesmo.