A advogada Maíra Moreira é assessora jurídica da Terra de Direitos, no escritório da organização em Curitiba (PR), e atua diretamente com o Caso Garibaldi. Nesta entrevista, feita em 21 de dezembro de 2020, ela aborda o trâmite no caso no Brasil, a relevância da condenação da Corte e o cenário atual do país, tanto em relação à violência no campo, quanto ao papel do Judiciário.

Para Maíra Moreira, o Brasil não vem cumprindo adequadamente a sentença do Caso Garibaldi - Foto: Arquivo Pessoal

Como foi o desenrolar do processo nas instâncias internas, antes do caso chegar à Corte?

O caso do Sétimo teve o inquérito policial que apurava o assassinato arquivado em 12 de maio de 2004, a pedido do Ministério Público do Paraná (MP-PR). O MP-PR fundamentou o parecer dele de forma extremamente falha, na época. Segundo o Ministério Público, o processo já tinha cerca de quatro anos e não vislumbrava nenhum caminho em termos de esclarecimento da autoria delitiva. Basicamente, ele entendia que não tinha nem notícias de fatos, ou provas novas, que justificassem sua continuidade. Em 20 de abril de 2009, muda o responsável pelo processo e o novo promotor requer o desarquivamento do inquérito policial, que outrora havia sido arquivado.

E depois que chegou à Corte?

Em setembro de 2009, essa demanda é levada à Corte Interamericana de Direitos Humanos e é proferida a sentença em desfavor do Estado brasileiro, determinando que o Estado deveria conduzir, de forma eficaz e dentro de um prazo razoável, o inquérito e qualquer processo que chegasse a abrir, para identificar, julgar e eventualmente sancionar os autores pela morte do Sétimo Garibaldi.

Por conta dessa decisão, dessa pressão que foi feita em torno do caso, tendo em vista o arquivamento feito pelo MP-PR em 2004, novas diligências são feitas pela Polícia Civil e pelo Ministério Público, de outro membro do MP, que deram origem à ação penal.

O Morival Favoreto, que é um dos acusados, impetrou um habeas corpus, com pedido liminar no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). Aí o TJ-PR determinou o trancamento da ação penal por entender que o desarquivamento do procedimento investigativo se deu sem que houvesse uma nova prova. Por maioria, o tribunal votou pela concessão do pedido de HC para trancar o processo da ação penal que tramitava na comarca de Loanda, mas colocando como ressalva que se surgissem novas provas formais ou substanciais, que alterassem o conjunto probatório reunido, poderia ser oferecida nova denúncia.

Em face dessa decisão, o MP-PR apresentou um recurso especial, sustentando a legalidade do desarquivamento e a viabilidade da denúncia. De acordo com o recurso especial, o MP teria promovido justificadamente o desarquivamento do inquérito, tendo em vista que havia sim a existência de novas provas e novos fatos, que colocavam novas questões para o próprio inquérito policial que havia sido arquivado lá atrás.

Nesse sentido, o Ministério Público trouxe um relato mais pautado nos depoimentos de testemunhas no processo, tentando demonstrar que existiam provas suficientes para que houvesse uma condenação, para realmente ter um prosseguimento do processo.

E no recurso contra essa determinação de trancamento da ação penal, o MP-PR ainda dizia que o ajuizamento da ação penal, não se fundava apenas nos elementos de provas fornecidos pela Procuradoria-Geral de Justiça do Paraná. [No recurso] formulava que, após o desarquivamento do inquérito policial, foi conduzida nova investigação e colhidas novas provas testemunhais e periciais que justificariam o ajuizamento da ação penal.

Depois desse recurso especial do MP, o STJ [Superior Tribunal de Justiça] negou provimento, manteve o trancamento da ação penal. Foram opostos embargos de declaração, pedindo esclarecimentos, mas isso é uma coisa muito processual. Em 15 de agosto de 2016, foi certificado o trânsito em julgado no âmbito do STJ, determinando a baixa definitiva do processo para o arquivo.

Por que as organizações peticionárias decidiram buscar a justiça internacional nesse caso?

As organizações decidiram levar o caso para o Sistema Interamericano porque elas avaliaram, naquele momento, e seguem avaliando, com a decisão do primeiro arquivamento que tinha sido promovido, que havia uma negligência em relação a essa violação grave de direitos humanos. E a negligência da justiça brasileira em relação a essa violação, se configuraria também como uma outra violação de direitos humanos, na medida em que a justiça se eximiu da responsabilidade de promover as responsabilizações. Promover a investigação de forma idônea, promover a garantia da tramitação da ação penal de forma idônea.

A investigação nunca chegou a ser efetivamente, nem concluída, nem desenvolvida de forma plena. Primeiro, porque nós tivemos o arquivamento do inquérito e depois nós tivemos ainda um trancamento da ação penal [após a decisão da Corte]. No final das contas, a justiça brasileira impediu que o caso se desenvolvesse no âmbito interno. Então, por conta dessa negligência, que constituiu uma segunda violação de direitos humanos, as organizações avaliaram que o ideal seria acionar o Sistema.

A despeito da manutenção da denegação de justiça, qual a importância da sentença da Corte e do reconhecimento internacional da violação?

A sentença da Corte tem uma importância muito relevante. Primeiro, que gera um processo de crítica interna da justiça brasileira e dessas múltiplas negligências. Ao mesmo tempo, possibilita uma publicização do caso e uma perspectiva, de mais longo prazo, que não aconteceria se a gente não tivesse essa sentença.

Mas a justiça brasileira não vem cumprindo uma série de cláusulas da sentença. Na nossa última manifestação no próprio processo [de supervisão do cumprimento], enviando notícias atuais para a Corte Interamericana sobre o estado de cumprimento da sentença pela justiça brasileira, a gente informa a Corte que tem um flagrante descumprimento do ponto resolutivo 7, por parte das autoridades judiciárias brasileiras.

As provas novas, que tinham sido apontadas pelo MP quando houve o pedido de desarquivamento, seguem sendo negligenciadas pela justiça brasileira. A última notícia que a gente dá para a Corte é essa, de que tem um descumprimento na própria condução, na própria consideração sobre o conjunto probatório que foi reunido, tanto no inquérito, quanto na ação penal.

Os efeitos da sentença quanto ao dever de investigar do Estado e da justiça brasileira, estão sendo flagrantemente descumpridos. O estado atual da arte é que o judiciário brasileiro vem descumprindo a sentença da Corte Interamericana.

No caso do Sétimo ainda há alguma possibilidade de que a justiça seja efetivamente feita? Há algum tempo, as organizações peticionárias chegaram a se manifestar de que o crime estaria prestes a prescrever...

Então, a questão da ausência de provas faz com que, eventualmente, essa possibilidade de conseguir a responsabilização seja bastante remota. Diante de todas as alegações que a justiça brasileira, através do TJ-PR, fez no julgamento do recurso especial, e depois o STJ confirmou, vem gerando uma impossibilidade de responsabilização no âmbito interno. Há, de fato, uma possibilidade de que se tenha uma situação de impunidade destacada aí no caso do Sétimo.

Mas o crime não chegou a prescrever ainda?

Não, o crime não chegou a prescrever.

Em linhas gerais, a prescrição para assassinato é de 20 anos, certo?

A princípio, sim. Mas tem um debate em torno da prescrição nesse caso, em virtude da não continuidade dos processos investigatórios. A investigação foi interrompida, primeiro um arquivamento, depois um trancamento. A prescrição é um debate quando se trata desse tipo de caso.

Isso não ocorre nesse caso em específico, mas em várias sentenças da Corte, ela estabelece "medidas de não repetição". Você considera que há garantias de que a violência que ocorreu contra o Sétimo não volte a acontecer?

Não, não há garantias disso, pelo contrário. A gente vem enfrentando uma circunstância política em que há um favorecimento de mais violações de direitos humanos. No estado do Paraná, hoje, a gente tem uma situação já de alguns assassinatos identificados, recentemente, inclusive após 2018, de lideranças.

A gente identifica também que o governo federal atual vem, tanto por medidas legislativas quanto administrativas, fortalecendo certos setores do campo brasileiro, que mobilizam ações violentas contra militantes da luta pela terra e contra povos e comunidades tradicionais. E tantos outros setores populares que estão no campo e são oprimidos por essa elite agrária, que historicamente utiliza a violência para afirmar o poder em torno da terra.

O cenário atual, na verdade, é uma grande janela para maiores violações de direitos humanos. Por isso, justamente, é um período de muitas urgências, e esses casos como o do Sétimo se mostram paradigmáticos, para a gente ter como parâmetro de percepção sobre como a justiça brasileira vem se comportando. Parâmetros críticos.

Um caso recente, envolvendo o próprio presidente da República, quando ele se referiu, durante a pré-campanha, a indígenas, dizendo que não ia demarcar território, comparando quilombolas a animais, utilizando o termo arrobas para se referir a eles. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) distse, naquele momento, que o atual presidente da República estava protegido pela imunidade parlamentar e pela liberdade de expressão. E no inquérito que tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF) à época, com a mesma matéria, questionando o mesmo fato, o STF se manifestou também identificando que se tratava de liberdade de expressão.

Uma série de atos, de discursos e práticas que vêm sendo promovidas pelo governo federal, que colocam essas populações mais vulneráveis do campo, em situação de ainda maior vulnerabilidade à violência, vem sendo negligentemente permitidas pela justiça brasileira. Isso vem se confirmando como padrão. Como um padrão de decisão e político-jurídico das características do nosso judiciário.

A magistratura no Brasil não é um objeto de pesquisa e de crítica por parte dos setores populares à toa. A magistratura reflete esse conjunto da população que não tem identificação, ou tem pouquíssima identificação com a realidade desses grupos oprimidos do campo.

Tem uma pesquisa feita pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça], que tem uma certa regularidade, certa frequência, que informa qual a característica da magistratura no Brasil. Eles fazem pesquisa entre os juízes para saber a origem de classe, raça, gênero e tudo mais. O que a gente percebe é que, de fato, a gente tem um judiciário que não traduz a realidade, a diversidade e o conjunto de desafios que a sociedade brasileira apresenta.