Ficha Técnica
Supostas vítimas: Jaurídice Nogueira de Carvalho e Geraldo Cruz de Carvalho, pais de Francisco Gilson Nogueira de Carvalho
Peticionários e/ou Representantes: Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), Holocaust Human Rights Project, Group of International Human Rights Law Students e Justiça Global
Juízes: Sergio García Ramírez, Presidente; Alirio Abreu Burelli, Vice-Presidente; Antônio Augusto Cançado Trindade, Juiz; Cecilia Medina Quiroga, Juíza; Manuel E. Ventura Robles, Juiz; e Diego García-Sayán; Juiz;
Cronologia
11 de dezembro de 1997
Petição
2 de outubro de 2000
Relatório de Admissibilidade
10 de março de 2004
Relatório de Mérito
13 de janeiro de 2005
Submissão pela CIDH
28 de novembro de 2006
Sentença
Leia entrevista do Réu Brasil com Aluízio Matias do Santos, do CDHMP
Resumo
Segundo caso brasileiro analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), a sentença do Caso Nogueira de Carvalho e outro versus Brasil data de 28 de novembro de 2006.
Em 20 de outubro de 1996, o advogado ativista de direitos humanos Francisco Gilson Nogueira de Carvalho, 32, foi assassinado por pistoleiros em Macaíba (RN), na zona metropolitana de Natal. Coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), ele trabalhou com ênfase na denúncia dos “meninos de ouro”, um suposto grupo de extermínio composto por policiais civis e outros funcionários públicos. Ele já havia sofrido ameaças de morte anteriormente.
No âmbito da Justiça brasileira, o inquérito foi inicialmente arquivado sem apontar responsáveis. Depois, foi reaberto, mas somente uma pessoa foi indiciada pelo crime: o policial aposentado Otávio Ernesto Moreira, após a Polícia Federal encontrar a arma utilizada no assassinato na fazenda de Moreira, durante operação relacionada a outro inquérito. Em 2002, após uma guerra de recursos, o policial aposentado foi inocentado pelo Tribunal do Júri em Natal, iniciando nova rodada de recursos por parte dos pais de Gilson.
Em junho de 1997, logo após o inquérito ser arquivado, o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), o Holocaust Human Rights Project e o Group of International Human Rights Law Students entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as violações. Em 2000, a Justiça Global se tornou co-peticionária. O órgão admitiu a petição em outubro de 2000, após o Estado brasileiro não se pronunciar adequadamente sobre uma possível falta de esgotamento dos recursos internos.
Em 2003, a CIDH apresentou a possibilidade de solução amistosa, mas o Brasil não se pronunciou a respeito e os peticionários solicitaram que a análise da demanda prosseguisse. Em março de 2004, a Comissão produziu relatório de mérito, considerando o Brasil responsável pelas violações de direitos humanos apontadas na petição, já que o Estado não controvertou os fatos e provas alegadas pelos peticionários. O órgão emitiu uma série de recomendações, incluindo a investigação do crime, o pagamento de indenização e a adoção de política global de proteção dos defensores e defensoras de direitos humanos.
O Brasil chegou a apresentar três relatórios sobre o cumprimento das recomendações, mas a CIDH não considerou o cumprimento satisfatório e remeteu o caso à Corte IDH em janeiro de 2005. Como a morte de Gilson ocorreu antes do reconhecimento da competência do Tribunal pelo Brasil, a demanda da Comissão só se refere aos fatos ocorridos após essa data.
A Corte Interamericana negou as duas exceções preliminares interpostas pelo Estado brasileiro. Na mesma sentença, destacou o dever dos Estados de facilitar a atuação e proteger a vida e a integridade dos defensores de direitos humanos. A despeito disso, considerou que não ficou demonstrado que o Brasil violou os direitos à proteção e às garantias judiciais dos pais de Gilson, arquivando o caso.
Após a sentença desfavorável da Corte, os pais de Gilson continuaram interpondo recursos relacionados ao processo penal contra Otávio Ernesto Moreira perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), mas nenhum deles prosperou. Ninguém foi preso pelo crime.
Contexto
Nos anos 1990, o advogado ativista de direitos humanos Francisco Gilson Nogueira de Carvalho trabalhava como coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), organização filiada ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Em parte da sua atuação, Gilson trabalhou com ênfase na denúncia dos “meninos de ouro”, um suposto grupo de extermínio composto por policiais civis e outros funcionários públicos que praticavam execuções extrajudiciais, torturas e sequestros no Rio Grande do Norte. O advogado também atuava em defesa das vítimas do grupo.
Segundo as denúncias de Gilson, os “meninos de ouro” seriam ligados a Maurílio Pinto de Medeiros, por duas décadas chefe da Polícia Civil (PC-RN) e então subsecretário de Segurança Pública do estado. Entre os funcionários e agentes de polícia do suposto grupo estavam Jorge Luiz Fernandes, conhecido como “Jorge Abafador”, Ranulfo Alves de Melo Filho, Admílson Fernandes de Melo, Lumar Pinto, José Nunes da Silva, Luiz Pedro de Souza, Francisco Gomes de Souza, Gilvan e Maurílio Pinto de Medeiros Júnior, este último filho do chefe da Polícia.
Graças à atuação de Gilson e de policiais e promotores do Rio Grande do Norte, vários integrantes da PC/RN passaram a ser investigados, e o Ministério Público local apresentou denúncia contra o grupo, afirmando que “a polícia civil e funcionários da Secretaria de Segurança Pública haviam cometido os crimes investigados”. A ação resultou em ao menos 54 inquéritos, e um dos acusados de ser membro dos “meninos de ouro”, o ex-policial civil “Jorge Abafador”, chegou a ser preso por participação na “Chacina de Mãe Luiza”, ocorrida em 1995.
Em consequência das denúncias, Gilson passou a ser objeto de constantes ameaças de morte. Entre agosto de 1995 e junho do ano seguinte, o advogado recebeu proteção policial, por decisão do Ministério da Justiça. Em outubro de 1996, poucos meses depois dessa proteção ser suspensa, Gilson estava na “Festa do Boi” quando recebeu por telefone uma nova ameaça. No dia seguinte, a ameaça se concretizou.
Gilson Nogueira de Carvalho foi morto por volta de 12h de 20 de outubro de 1996, em Macaíba (RN), na zona metropolitana de Natal, aos 32 anos. Ele dirigia em direção a sua chácara acompanhado de uma mulher, quando passou a ser seguido por um automóvel vermelho sem placa, ocupado por três homens com os rostos cobertos. Gilson tentou fugir, mas foi atingido na cabeça e morreu por hemorragia intracraniana. Ao todo, seu veículo foi alvejado por 18 disparos de arma de fogo. O carro utilizado na emboscada foi posteriormente queimado.
Após o assassinato de Gilson, outros denunciantes do suposto grupo de extermínio também passaram a receber ameaças de morte. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo de novembro de 1996, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados divulgou à época uma lista com o nome de dez pessoas que estavam "marcadas para morrer" em Natal (RN) por causa das investigações.
Em dezembro de 1996, a Organização dos Estados Americanos (OEA) chegou a solicitar ao governo brasileiro medidas cautelares para a proteção dos dez ameaçados, depois de petição ser movida pela organização Humans Rights Watch. Entre os “marcados para morrer” estavam o procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Norte, Emanuel Cavalcanti, seis promotores, o delegado de polícia Plácido Nunes de Souza e dois integrantes do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal.
Trâmite no Brasil (até a sentença da Corte)
No mesmo dia do assassinato, a Polícia Civil do Rio Grande do Norte determinou abertura de inquérito policial para apurar o crime. Cinco dias depois, em 25 de outubro de 1996, o inquérito foi transferido para a Polícia Federal, após solicitação do então governador do estado, já que eram policiais civis os principais alvos das denúncias de Gilson Nogueira de Carvalho.
De acordo com Plácido Nunes de Souza, delegado da Polícia Civil que trabalhou junto com Gilson na denúncia dos “meninos de ouro”, “Jorge Abafador”, à época preso no Quartel do Corpo dos Bombeiros graças às denúncias de Nogueira de Carvalho, deixou a prisão dias antes da morte do advogado e retornou um dia depois. Segundo Nunes de Souza, quando a juíza encarregada do caso solicitou o envio do livro de ocorrências, que poderia atestar a saída de Jorge Abafador quando do crime, foi enviado outro livro, com registros diferentes.
Entre novembro de 1996 e junho do ano seguinte, a conclusão da investigação foi adiada em três oportunidades, devido ao “grau de dificuldade do caso”. Em 9 de junho de 1997, o delegado da Polícia Federal responsável pelo inquérito apresentou relatório afirmando inexistir nos autos informações que “possibilit[assem] a definição de autoria”. Com base no relatório, o Ministério Público local concluiu que não havia fundamentos para denunciar alguém pelo crime. O pedido de arquivamento foi acolhido por juíza da Primeira Vara de Macaíba dez dias depois.
Inconformado com o desfecho do caso, Antônio Lopes, amigo de Gilson conhecido como “Carla”, realizou investigação particular ao longo dos meses seguintes, apresentando suas conclusões à Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos em Natal (RN), que solicitou a reabertura do inquérito em agosto de 1998.
O caso foi desarquivado pela Primeira Vara de Macaíba em 24 de setembro daquele ano, mas as acusações feitas por “Carla” não foram confirmadas depois de ouvidas as pessoas por ele referidas, segundo depoimentos de delegado e promotor público responsável pelo caso. Antônio Lopes foi assassinado em março de 1999.
Antes disso, em novembro de 1998, a Polícia Federal encontrou uma espingarda Remington no sítio do policial aposentado Otávio Ernesto Moreira, no âmbito de outro inquérito. A arma foi examinada e comparada com o cartucho calibre 12 encontrado na cena do assassinato de Gilson e laudo pericial confirmou que o cartucho provinha da espingarda.
Otávio Ernesto Moreira trabalhou por longo período na Secretaria de Segurança Pública do estado, sob ordens de Maurílio Pinto de Medeiros, inclusive na época da morte do advogado. Segundo o próprio policial aposentado, ele frequentemente emprestava a arma para companheiros da polícia. Em janeiro de 1999, o Ministério Público apresentou denúncia contra Moreira, apontando-o como um dos autores materiais do assassinato de Gilson Nogueira de Carvalho.
Após uma guerra de recursos entre a defesa do policial aposentado e os pais de Gilson, que atuavam como assistentes do Ministério Público no caso, o Tribunal do Júri ocorreu nos dias 6 e 7 de junho de 2002. Realizado na cidade de Natal, e não em Macaíba, como desejavam os pais do advogado, o júri absolveu o acusado. O MP e a família de Gilson apelaram da decisão, mas os recursos foram negados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ-RN).
A última movimentação do processo antes do caso ser julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorreu em maio de 2005. Na ocasião, o TJ-RN remeteu para o Supremo Tribunal Federal (STF) e para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recurso especial e recurso extraordinário interposto pelos pais de Gilson, em que solicitaram a anulação do julgamento realizado pelo Tribunal do Júri.
Na Comissão
Logo após o inquérito sobre o assassinato de Gilson Nogueira de Carvalho ser arquivado, em junho de 1997, o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), o Holocaust Human Rights Project e o Group of International Human Rights Law Students entraram com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No documento, as organizações alegaram que “o Estado havia faltado a sua obrigação de garantir a Gilson Nogueira de Carvalho o direito à vida e de realizar uma investigação séria sobre sua morte, processar os responsáveis e promover os recursos judiciais adequados”. Em agosto de 2000, a organização Justiça Global se tornou co-peticionária.
Questionado sobre elementos que permitissem à Comissão verificar se haviam sido ou não esgotados os recursos internos no caso, o Brasil silenciou-se em mais de uma oportunidade, e o prazo foi prorrogado algumas vezes. Em junho de 2000, meses após o policial aposentado Otávio Ernesto Moreira ser acusado pelo Ministério Público pelo assassinato, o Estado brasileiro informou à CIDH que o processo encontrava-se em fase de pronúncia, aguardando julgamento pelo Tribunal do Júri. Dado o silêncio do Estado sobre o esgotamento dos recursos internos, considerado uma “renúncia tácita”, a Comissão aprovou em 2 de outubro de 2000 um relatório de admissibilidade, aceitando a petição movida pelo CDHMP e outras organizações.
A possibilidade de resolução amistosa entre as partes foi oferecida pela CIDH em agosto de 2003. O Brasil não se pronunciou sobre, enquanto os peticionários solicitaram a continuação da análise sobre o mérito do caso.
Em 10 de março de 2004, durante seu 119º Período Ordinário de Sessões, a Comissão aprovou relatório de mérito sobre a petição, considerando o Estado responsável pela violação ao direito à vida (artigo 4), às garantias judiciais (artigo 8) e à proteção judicial (artigo 25), em conexão com o artigo 1.1 da Convenção Americana. Segundo a CIDH, “os peticionários alegaram uma série de fatos, que não foram controvertidos pelo Estado[, e que, se este] não contradiz os fatos de mérito nem produz provas destinadas a questioná-los, a Comissão pode presumir verdadeiros os fatos alegados, sempre que não existam elementos de convicção que possam fazê-la concluir de outra maneira”.
O órgão recomendou que o Estado realizasse “uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de estabelecer e sancionar a responsabilidade material e intelectual do assassinato de Gilson Nogueira”. Recomendou também que o Brasil reparasse os familiares do advogado, “incluindo tanto o aspecto moral como o material, (...) e, em particular, pagar-lhes uma indenização (...) por uma quantia suficiente para ressarcir tanto os danos materiais como os danos morais sofridos devido ao seu assassinato”. Por fim, recomendou que o país adotasse “uma política global de proteção dos defensores e defensoras de direitos humanos, e centraliza[sse], como política pública, a luta contra a impunidade através de investigações exaustivas e independentes sobre os ataques sofridos pelos defensores e defensoras de direitos humanos, que conduzam à efetiva punição dos responsáveis materiais e intelectuais por estes ataques”.
Entre agosto de 2004 e janeiro de 2005, o Brasil apresentou três relatórios sobre o cumprimento das recomendações da CIDH, informando o status legal do processo judicial relativo ao assassinato de Gilson Nogueira e relatando resistência das autoridades do Rio Grande do Norte em relação às negociações com vistas à reparação dos danos morais e materiais sofridos pelos familiares. O Estado também destacou que havia sido concluída a elaboração do Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos.
A Comissão considerou que o cumprimento das recomendações não foi satisfatório, e levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Na Corte
A Comissão Interamericana remeteu o caso [formato .doc] à Corte em 13 de janeiro de 2005. Para a CIDH, além de fazer justiça para os familiares de Gilson e lhes oferecer reparação adequada, o envio do caso à Corte também foi importante pela “oportunidade para desenvolver a jurisprudência interamericana sobre responsabilidade estatal no encobrimento de perseguições e agressões que sofrem os defensores e defensoras dos direitos humanos, cujo trabalho (...) é uma peça chave para sua universalização, assim como para a existência plena da democracia e do Estado de Direito”.
A Comissão solicitou que a Corte atestasse a responsabilidade do Estado pela violações dos direitos consagrados nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assim como pelo descumprimento da obrigação geral contida no artigo 1.1 do mesmo instrumento. Além disso, demandou que a Corte ordenasse as mesmas medidas de reparação e não repetição expressas no relatório de mérito da CIDH.
Para a CIDH, “a deficiente atuação das autoridades estatais, vista em seu conjunto, levou à falta de investigação, perseguição, captura, julgamento e condenação dos responsáveis pelo homicídio [de Gilson Nogueira de Carvalho e que] depois de mais de [dez] anos [desse homicídio] não foram identificados e condenados os responsáveis e, portanto, [seus] pais [...] não puderam impetrar um recurso a fim de obter compensação pelos danos sofridos”.
Como o Brasil só reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana em 10 de dezembro de 1998, a demanda da CIDH refere-se exclusivamente aos fatos ocorridos após este reconhecimento. É por conta disso que a Comissão não incluiu em sua demanda a violação ao direito à vida (artigo 4) de Gilson, assassinado em 1996, a despeito de ter considerado o Brasil responsável por isto em seu relatório de mérito. Esta violação foi incluída na petição dos representantes de Jaurídice Nogueira de Carvalho e Geraldo Cruz de Carvalho, pais de Gilson, mas a Corte não se pronunciou sobre.
Em 28 de julho de 2006, dezenas de pessoas e organizações de defesa dos direitos humanos apresentaram um escrito de amici curiae relacionado ao caso Nogueira de Carvalho. Entre as entidades estão o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), a Fundação Interamericana de Defesa de Direitos Humanos (FIDDH), a Terra de Direitos e diversas organizações internacionais.
Exceções preliminares
Na fase de contestação do processo, o Estado brasileiro interpôs duas exceções preliminares — recurso utilizado para evitar total ou parcialmente o julgamento de mérito pelo Tribunal. Ambas foram julgadas juntamente com o mérito. Em primeiro lugar, o Brasil afirmou “incompetência ratione temporis [da] Corte”. Segundo a argumentação, embora a CIDH alegasse somente a violação dos artigos 8 e 25, “tinha como objetivo na realidade a declaração da violação do direito à vida” e que, portanto, o Tribunal não poderia se pronunciar sobre matéria ocorrida antes do reconhecimento brasileiro da competência da Corte.
No julgamento desta exceção preliminar, os juízes concordaram que a Corte não poderia julgar o Estado pela morte de Gilson, mas rechaçaram a alegação brasileira. Para eles, a Corte poderia conhecer das alegadas violações dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, já que o Tribunal é “competente para examinar as ações e omissões relacionadas com violações contínuas ou permanentes, que têm início antes da data de reconhecimento da competência da Corte e persistem ainda depois dessa data, sem infringir o princípio de irretroatividade, e quando os fatos violatórios são posteriores à data de reconhecimento da sua competência”.
Em sua segunda exceção preliminar, o Brasil alegou “não esgotamento dos recursos internos”, já que um processo judicial relacionado à morte de Gilson Nogueira tramitava na Justiça brasileira. A alegação também foi desconsiderada pela Corte, já que o país não indicou expressamente, durante o procedimento de admissibilidade do caso perante a CIDH, “quais seriam os recursos idôneos e efetivos que deveriam ter sido esgotados”, renunciando a essa prerrogativa.
Supostas violações analisadas pela Corte
Artigos 8.1 e 25.1, em relação com o artigo 1.1
Tanto a Comissão Interamericana quanto os representantes das supostas vítimas centraram sua argumentação em apontar a atuação das autoridades brasileiras na investigação da morte de Gilson como deficiente, criticando a ausência de qualquer responsabilização quase dez anos após o crime.
Entre os pontos levantados estavam: a falta de investigação acerca dos empréstimos que Otávio Ernesto Moreira fazia da espingarda utilizada no crime; a falta de investigação sobre a relação de Moreira com integrantes do grupo “meninos de ouro” e possíveis razões que ele poderia ter para cometer o crime; a recusa do presidente do Tribunal do Júri de incluir no caso uma testemunha que alegava relação do policial aposentado e de “Jorge Abafador” com o assassinato; e a não incorporação nos autos do homicídio de Antônio Lopes (“Carla”), que realizara investigação particular sobre o caso.
Na visão da CIDH, o inquérito policial e o processo judicial realizado contra o único acusado tinha falhas que dificultavam e continuariam dificultando o esclarecimento da morte. A Comissão destacou que a execução mecânica de formalidades processuais condenadas de antemão a ser infrutíferas não constituíam uma busca efetiva de justiça.
Para os representantes dos pais de Gilson, as autoridades ignoraram provas e depoimentos que reforçavam a tese de que a morte fora um homicídio planejado pelo grupo de extermínio ‘meninos de ouro’. Além disso, foi questionada a inércia do Ministério Público perante redação – considerada incorreta pelos representantes – do quesito apresentado ao júri, que resultou na absolvição de Otávio Ernesto Moreira. A pergunta imputava ao ex-policial a autoria material do homicídio.
Adicionalmente, os representantes consideraram que a falha do Estado em investigar efetivamente a morte de Gilson também constituía violação do artigo 4 (direito à vida) da Convenção Americana.
Para o Brasil, não houve omissão nem negligência na condução do inquérito policial ou do processo judicial. Em sua defesa, o Estado brasileiro alegou que o homicídio de Gilson caracterizava-se por uma grande complexidade, com grande número de suspeitos e muitas versões contraditórias sobre sua autoria e que foram essas as razões que fizeram com que o processo judicial não resultasse em uma condenação, e não a alegada lentidão ou omissão do Estado. O Brasil também afirmou que o fato de não haver uma condenação no caso não significava uma violação às regras do devido processo legal.
Em sua decisão, o Tribunal destacou a condição de defensor de direitos humanos de Gilson Nogueira de Carvalho, ressaltando o dever dos Estados de facilitar a atuação e proteger a vida e a integridade destes. Para a Corte, ameaças e atentados contra defensores de direitos humanos “são particularmente graves, porque têm um efeito não somente individual, mas também coletivo, na medida em que a sociedade se vê impedida de conhecer a verdade sobre a situação de respeito ou de violação dos direitos das pessoas sob a jurisdição de um determinado Estado”.
De acordo com os juízes, “numa sociedade democrática, o cumprimento do dever dos Estados de criar as condições necessárias para o efetivo respeito e garantia dos direitos humanos (...) está intrinsecamente ligado à proteção e ao reconhecimento da importância do papel que cumprem os defensores de direitos humanos”.
Em sua decisão, a Corte efetuou exame das medidas policiais e judiciais ocorridas após o reconhecimento da competência contenciosa do Tribunal pelo Brasil, em 10 de dezembro de 1998. Com base nisso, considerou que não ficou demonstrada a violação dos direitos consagrados nos artigos 8 (proteção judicial) e 25 (garantias judiciais), em relação a Jaurídice Nogueira de Carvalho e Geraldo Cruz de Carvalho, pais de Gilson.
A Corte destacou que “compete aos tribunais do Estado o exame dos fatos e das provas apresentadas nas causas particulares” e não cabe ao Tribunal “substituir a jurisdição interna estabelecendo as modalidades específicas de investigação e julgamento num caso concreto para obter um resultado melhor ou mais eficaz, mas constatar se nos passos efetivamente dados no âmbito interno foram ou não violadas obrigações internacionais do Estado”.
Pontos resolutivos da sentença
Corte declara, por unanimidade:
- Desconsidera as duas exceções preliminares interpostas pelo Estado.
- Em virtude do limitado suporte fático de que dispõe a Corte, não ficou demonstrado que o Estado tenha violado no presente caso os direitos às Garantias Judiciais e à Proteção Judicial consagrados nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Corte decide, por unanimidade:
- Arquivar o expediente.
Após a sentença
Após a sentença da Corte Interamericana, recursos movidos pelos pais de Gilson Nogueira de Carvalho às instâncias superiores continuaram tramitando. Em um deles, Jaurídice Nogueira de Carvalho e Geraldo Cruz de Carvalho solicitavam manifestação sobre a nulidade do processo de desaforamento, que mudou o Tribunal do Júri de Macaíba para Natal, por falta de intimação das partes; o cerceamento da acusação por conta a inclusão de documento três dias antes do julgamento; e a falta de pronunciamento sobre a solicitação de que cópia do processo que apurava a morte de Antônio Lopes, morto meses após realizar investigação particular sobre o assassinato de Gilson, fosse incluída nos autos.
Em dezembro de 2009, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou recurso especial movido pelos pais de Gilson na condição de assistentes do Ministério Público, que poderiam anular a absolvição do policial aposentado Otávio Ernesto Moreira. Em março de 2010, o processo foi remetido ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em julho de 2010, a Procuradoria-Geral da União (PGR) manifestou-se pelo provimento parcial do recurso extraordinário em tramitação no STF, para considerar nula a decisão que determinou o desaforamento. Em junho de 2011, o ministro do STF Ayres Britto negou seguimento ao recurso extraordinário. Em setembro daquele ano foi interposto agravo regimental, desprovido pela Segunda Turma do Supremo no mês seguinte. Em janeiro de 2012, os pais de Gilson interpuseram embargos de declaração, que foram rejeitados pela Segunda Turma em agosto de 2015. Em setembro de 2015, interpuseram embargos de divergência, inadmitidos em outubro. No mesmo mês, interpuseram novo agravo regimental, negado pelo pleno do STF em março de 2016. Em 22 de março de 2016, o caso foi considerado transitado em julgado pelo Supremo.
Há um outro recurso especial movido pelos pais de Gilson no STJ, cuja última movimentação ocorreu em abril de 2016, quando foi enviado para decisão do relator.
Em relação aos supostos membros do grupo “meninos de ouro”, nenhuma relação com o assassinato de Gilson Nogueira de Carvalho foi provada. “Jorge Abafador” foi demitido do cargo de policial civil em 2007 e, pelo menos até 2013, encontrava-se preso por outras três condenações, que totalizavam 94 anos de reclusão. Apontado como chefe do grupo de extermínio, o ex-chefe da Polícia Civil Maurílio Pinto de Medeiros continuou atuando no órgão e ocupando cargos de destaque na Secretaria de Segurança Pública do estado até 2011, quando se aposentou. Ele faleceu aos 76 anos, em 2018, sendo homenageado pelo governo e por outros órgãos de segurança pública do Rio Grande do Norte.
Os recursos judiciais relacionados ao caso no STJ podem ser consultados pelos números 2002/0054507-4, 2005/0072625-0 e 2011/0122403-0. Os recursos julgados no STF podem ser vistos aqui.
Saiba mais
Oficial
- Relatório de admissibilidade da CIDH
- Demanda da CIDH para a Corte [formato .doc]
- Escrito de Solicitações, Argumentos e Provas (ESAP) dos representantes
- Contestação do Brasil
- Alegações finais dos representantes
- Alegações finais da CIDH
- Alegações finais do Brasil
- Íntegra da sentença
Outros
- O assassinato do advogado Gilson Nogueira (DHNet)
- Grupo de extermínio ameaça investigação (Folha de S. Paulo)
- Os meninos de ouro do Dr. Maurílio (Revista Manchete)
- Autoridade policial do Rio Grande do Norte é acusada de chefiar grupo de extermínio (Alesp)
- OEA pede proteção para 10 ameaçados de morte no RN (Folha)
- O julgamento dos assassinos de Gilson Nogueira: histórico de uma farsa (Tecido Social)
- Primeiro caso de defensor de direitos humanos terá decisão em seis meses (Repórter Brasil)
Notas do autor
- As informações apresentadas neste site sobre o Caso Nogueira de Carvalho foram essencialmente extraídas da sentença da Corte Interamericana. Também há informações colhidas no relatório de admissibilidade da CIDH e nos escritos de submissão do caso à Corte. Informações de contexto também foram colhidas nos textos e reportagens listadas em “saiba mais”.
- As informações sobre os desdobramentos posteriores à sentença da Corte foram colhidas nos processos judiciais ligados ao caso, nas reportagens linkadas e em entrevista realizada com Aluízio Matias dos Santos, colega de Gilson e coordenador da organização em que o advogado trabalhava quando foi assassinado.
- No trecho em que são apresentados os pontos resolutivos determinados pela Corte, são omitidas referências a parágrafos da sentença e feitas adaptações para melhor entendimento.
- Como o Brasil não foi considerado culpado, o termo “supostas vítimas” foi mantido em alguns trechos.
Foto em destaque: DHNet