“O mundo inteiro está vivendo uma avalanche de grupos, indivíduos e movimentos abertamente contrários aos direitos humanos No Brasil, isso obviamente assusta porque ganha maior alcance, maior peso. Não é à toa que a gente está como está agora”, diagnostica Andressa Caldas, atualmente diretora de Relações Institucionais do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH) do Mercosul. Para ela, todo mundo que defende os direitos humanos “deve estar muito preocupado e deve estar em alerta nesse momento” e é necessário que a militância se ‘reinvente’, a partir de “novas atuações, novas ferramentas, novas linguagens”.
A percepção de que o ativismo em direitos humanos precisa se renovar é fruto da longa relação que Andressa tem com a área. Essa ligação, que moldou toda sua trajetória, começou na segunda metade dos anos 1990, quando ela cursava direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e participou de projeto de extensão voltado para a regularização fundiária em áreas periféricas.
Pouco depois, ela se conectou com a militância da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em um momento em que os despejos violentos e as arbitrariedades da polícia do governador Jaime Lerner (PDT, depois PSL) contra trabalhadores sem terra eram especialmente frequentes.
Nessa mesma época, Andressa participou de oficina prática sobre a utilização do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, promovida por James Cavallaro e Sandra Carvalho, que estavam fundando a organização Justiça Global. No workshop, de onde saíram as petições iniciais dos casos Sétimo Garibaldi e Escher, anos depois julgados pela Corte Interamericana, ela teve seu primeiro contato com o uso de mecanismos de litígio internacional.
Em 2000, ela foi contratada por James e Sandra para trabalhar na recém-fundada Justiça Global, uma das principais peticionárias brasileiras de casos no Sistema Interamericano. Ao longo de 13 anos, foi advogada, coordenadora jurídica e diretora executiva da organização que ajudou a construir, ocupando atualmente uma vaga no conselho da entidade.
Para Andressa, o Sistema Interamericano continua “muito importante”, mas desde que o uso da litigância seja conjugado com outras estratégias. “Precisa ter uma clara mobilização das organizações, de vítimas e familiares das vítimas, nos meios de comunicação, nas esferas políticas. Que esteja enraizado, que tenha um trabalho importante de sensibilização da opinião pública. É uma das estratégias dentro de um conjunto grande”, afirma.
Doutoranda em antropologia em Buenos Aires, onde mora atualmente, ela é mestre em direito e em estudos latino-americanos, e deu aulas de direito internacional dos direitos humanos e de direito civil no Paraná.
Nesta entrevista, além de abordar o cenário dos direitos humanos e a necessidade de reinvenção da militância, ela fala da relação do Brasil com o Sistema Interamericano e aborda os critérios da Comissão Interamericana. A versão resumida da conversa, concedida em 18 de novembro de 2020, está abaixo e você pode ler a entrevista na íntegra aqui.
Como é o processo de escrever uma petição, principalmente de produzir os escritos de solicitações, argumentos e provas?
É bem interessante você perguntar isso, até porque isso vai se modificando ao longo do tempo. Esses dias estava falando com alunos da UnB [Universidade de Brasília], sobre essa alteração, que pra mim é bastante positiva. Se você pegar os anos 90, no Brasil, o movimento de direitos humanos que trabalha com o tema de litigância internacional, basicamente são organizações internacionais. A Humans Rights Watch e o Cejil, vinculando-se com algumas organizações mais antigas. A Justiça Global nem existia nessa época, é criada em 1999.
Isso dá um caráter nesses documentos, nessa atuação. Um porque é uma visão bastante jurídica, são documentos feitos com uma linguagem jurídica, e por atores com formação jurídica. E nos anos 90, ainda com um olhar a partir das organizações internacionais, o que faz uma diferença bastante grande.
Com isso, não quero dizer que tem que ser uma organização local para fazer um trabalho mais profundo. Mas é importante que a organização, seja ela local, ou internacional, tenha vínculos fortes e estabeleça trabalhos consolidados e profundos com as vítimas ou com as organizações que estão na linha de frente.
Essa era a ideia quando criaram a Justiça Global. Ter uma organização que fosse brasileira, que tivesse a definição das agendas dos casos, dos temas, das articulações. Tivesse esse olhar muito fincado no contexto local e as alianças fossem construídas de uma forma muito mais orgânica, porque você está lá diariamente, está no país.
E o Sistema Interamericano, em tese, foi conformado para que você não precisasse ser advogado e nem ter advogado para poder acessar e levar uma denúncia. Acho que isso vai mudando ao longo do tempo.
É muito diferente do trabalho jurídico, deveria ser. Não é um trabalho que você possa fazer só olhando processos, só olhando documentação. É muito importante que seja feito através do contato direto, através da incorporação do olhar e da fala das pessoas diretamente afetadas, das vítimas. Em grande medida, [ser] construída junto com eles.
A ideia de usar o litígio internacional como uma das ferramentas, como uma estratégia dentro de uma luta que é muito mais ampla. Acho que isso exige uma dedicação, uma imersão. Você estar no local, visitar, ir na delegacia, autorizar as autoridades locais, o delegado, o policial, o prefeito. Estar diretamente em contato com as vítimas. Acho que é um trabalho mais de pesquisa de campo mesmo, e isso enriquece e modifica o teor dos documentos. O que vai ter uma importância muito relevante lá na frente, quando eventualmente um caso da CIDH for apresentado para a Corte.
Dentro disso da linguagem, uma coisa que me chamou bastante atenção foi que as sentenças são muito mais compreensíveis do que 99% dos processos internos da Justiça brasileira…
Ainda falta muito. Ainda tem decisões ou recomendações da Comissão e da própria Corte que são indecifráveis. Mas de fato, você tem toda a razão. Comparado com qualquer sentença que a gente tem nos tribunais domésticos, acho que esse é um fator bem importante.
Por que isso é importante? E por que é dessa forma?
Não é uma coisa que acontece em todo mundo, mas é muito visível na nossa formação do direito nos cursos, no ensino jurídico, que remetem a essa linguagem mais fechada, mais hermética, como um argumento de autoridade. Acaba sendo um espaço de poder. Você foi processado, você pode ter acesso ao que tem a ver contigo, algum caso que você esteja como testemunha, enfim, mas você não consegue decifrar. Você precisa da ajuda desse intermediário, e você precisa pagar. Claramente há uma linguagem hermética que beneficia esse restrito espaço de poder.
Eu sempre bato nessa tecla, que o Poder Judiciário, dentre os três poderes da República é o mais hermético, menos transparente. É o mais elitista, o mais machista, homofóbico, racista e mais classista. Sem dúvidas. Com todos os problemas que a gente tem no Executivo e no Legislativo. Tem a ver com uma estratégia de poder.
É uma barreira que não é uma coincidência, é formatada para que seja assim, que se estabeleça um espaço de poder, uma hierarquia. E isso torna mais difícil essa compreensão. Quando você tem um espaço de direitos humanos, é natural que se tenha maior reflexão, maior autocrítica.
Na Corte isso é diferente por uma intenção de que o Sistema seja aberto mesmo para pessoas sem advogado?
Eu acho que tem essa ideia, de [estar] se permitindo mais e mais o uso, com as distintas reformas que houve no regulamento da Corte. Mas tem essa ideia muito a partir da pressão das organizações da sociedade civil e das vítimas, de que haja acesso direito, uma participação cada vez mais direta desses atores.
E por outro lado, também por uma necessidade comunicacional. Você quer que uma sentença seja referência, possa ser melhor conhecida, [então] deveria ser a sua intenção que ela seja mais clara e acessível, tanto do ponto de vista de acesso, mas também como uma forma de melhor comunicar.
A pergunta mais básica, mas que é importante de ser feita: o que são direitos humanos e qual a sua importância?
Ui, essa é mais complicada.
São conquistas. São conquistas resultado de lutas políticas. E depois elas podem ser escritas em documentos que podem ter, se você olhar ao longo da história, uma normatividade, uma obrigatoriedade, também muito recente. Ela é, em grande medida, concebida como um discurso.
Tem duas formas de você olhar. Se você olhar os direitos humanos com essa perspectiva mais legalista, formal e restritiva, você vai olhar a Declaração Universal. Se você olhar os direitos humanos como processo histórico, resultante de constantes lutas, mobilizações sociais coletivas, eles não se limitam e nem se originam na existência de uma convenção, de um tratado internacional, é muito anterior. Você pode chamar isso de lutas sociais.
O fato de você encapsular na expressão direitos humanos, tem um lado positivo, porque essas lutas sociais passam a ser mais palatáveis. Dentro de uma perspectiva mais liberal, passa a ser enquadrada, então pode ser exigida. Caso você não tenha esse direito garantido pelo Poder Executivo, você pode recorrer ao Poder Judiciário. Se o Judiciário não te atender, você pode então buscar os mecanismos internacionais. Você cria toda uma institucionalidade em torno da garantia desse direito.
Parece muito pós-moderno, mas eu não me aferro a essa visão de que os direitos humanos são o que estão nos tratados, eu acho que isso limita. Eu acho que são modulações de lutas sociais, resultante de mobilizações coletivas e políticas.
Que papel ocupa a Justiça Internacional e qual o papel e a relevância do Sistema Interamericano na proteção dos direitos humanos?
Acho que continua sendo importante. Tem um risco muito grande de diminuição da importância desses espaços. Acho que situações recentes, como o processo da não renovação do contrato do Paulo Abrão como secretário executivo da Comissão, são um risco muito grande, criam um precedente muito perigoso. Mas também não é o único nem o primeiro momento de crise da CIDH. Eu trabalhei diretamente, redigindo as medidas provisórias e a petição do caso Belo Monte. Esse foi um marco divisório do antes e depois, não só de como o Brasil passou a se relacionar com o Sistema, mas para a região inteira teve um impacto muito grande.
Continua muito importante, mas do ponto de vista da sociedade civil, se você conjuga o uso da litigância, da justiça internacional, com outras estratégias. Precisa ter uma clara mobilização das organizações, de vítimas e familiares das vítimas, nos meios de comunicação, nas esferas políticas. Que esteja enraizado, que tenha um trabalho importante de sensibilização da opinião pública. É uma das estratégias dentro de um conjunto grande.
A outra [questão] tem a ver de como é a percepção do Estado violador da vez. A atuação da Justiça Internacional vai valer mais ou menos, dependendo se o governo daquele Estado que está respondendo ante a CIDH ou a Corte, está mais ou menos preocupado com a sua imagem no cenário internacional. Está muito vinculado com essa preocupação.
Não necessariamente você está falando de um governo de esquerda ou direita, de um governo conservador ou progressista, mas do quanto está dentro das preocupações desse governo a sua imagem internacional. Com esse termômetro, vai variar muito a possibilidade de avanço ou de retrocesso em casos específicos e concretos.
Tem um desafio enorme, que é principalmente nosso, de quem é defensor de direitos humanos, de que esses mecanismos, esses espaços sigam existindo com robustez, com orçamento, com autonomia e com independência. Não necessariamente isso coincide com o que é o projeto dos atuais governos na região, [não necessariamente] eles querem ter um Sistema Interamericano robusto ou não. Acho que esse é o grande desafio. A importância varia muito nessa equação.
Pegando esse gancho, quais as perspectivas para o Sistema nos próximos anos?
O que eu tenho visto do Sistema, da Comissão, é que ela se abriu nos últimos anos para atuar [em outras funções]. Dentro das suas competências, ela não tem que estar só restrita a trabalhar com casos. Nos últimos anos ela foi ampliando a elaboração de relatórios, por países, temáticos, que são cada vez mais frequentes.
Mas a preocupação é quanto vai ficar dessa divisão – se você está falando de mesmos recursos financeiros e humanos – para atuar nos casos. Houve um avanço significativo nos casos que estavam atrasados na gestão do Paulo Abrão, foi feito um grande mutirão para avançar. Mas acho que o desafio é manter a Comissão e Corte atuando nessa que é uma das suas atribuições originárias. Existe uma série de outros organismos que fazem relatórios, capacitação, então é importante que a gente não diminua [a análise de casos].
Fazer essas outras atividades têm um risco político menor. Quando você dedica 80% dos recursos, do tempo e da energia da organização em fazer curso, fazer relatório, você não está implicando em problemas políticos de julgar e definir um caso que vai claramente afetar e criar uma sensibilidade com um Estado A, B ou C. É mais confortável nesse sentido. A perspectiva é também continuar lutando para a existência [dos mecanismos], ainda que o cenário seja bastante preocupante.
Por outro lado, o que eu vejo com otimismo é justamente essa concepção de que direitos humanos não se resumem a casos jurídicos internacionais, você tem outras estratégias, você tem o ativismo.
Tem uma renovação importante das agendas, mas ainda tem muita coisa para aprender, como forma de atuar, formas mais interessantes de se comunicar. A gente olhar que grande parte das pessoas não entendem, não sabem, ou tem uma resistência ao tema de direitos humanos, mas se você colocar um documentário contando a história de uma mãe que perdeu um filho pela violência policial, você humaniza. A pessoa consegue entender na prática o que você está falando, para sair desse jargão de que é defensor de bandidos, direitos humanos para humanos direitos, essas coisas que a gente ouve tanto no Brasil.
Acho que tem uma perspectiva de novas atuações, novas ferramentas, novas linguagens, que ainda precisam ser mais exploradas pelo movimento de direitos humanos.
Você falou que na sua experiência o cumprimento de sentenças é sempre acompanhado de pressão e mobilização, não é uma coisa automática. Especialmente dos casos que você acompanhou de maneira mais próxima, como tem sido o cumprimento das sentenças da Corte pelo Brasil?
Esse é um grande outro problema. Pedidos de desculpas, ok. Indenização, tranquilo. Políticas de não repetição, como que você avalia? É um exemplo do limite do próprio Sistema. Quando chega na parte de responsabilizar, ainda mais quando vincula agentes policiais, uma juíza, [como no Caso Escher] você tem aí um limite claro da possibilidade do Sistema. Por isso é importante quando a gente está construindo as petições, e sempre foi, não gerar nenhuma expectativa nas vítimas que a gente sabe que não vai acontecer.
O Sistema é importante para dar visibilidade para o caso, para o caso ter algum tipo de reparação. Tem uma importância de instaurar temas. [Mas] quando você chega nos poderes duros, o Poder Judiciário, o poder político-partidário, é onde você vai ver a correlação de forças. E aí nem a CIDH, nem a Corte e nem a ONU têm poder de atuação e de modificação nessa realidade. Você tem sempre uma tentativa de enganar, de enrolar a Corte, dizendo que algo foi feito, está sendo feito. Um processo muito enroscado. E acaba gerando uma desesperança.
Para você ingressar com um caso no Sistema, via de regra tem que esgotar todas as instâncias nacionais, ou o caso ter uma demora injustificada. Então você já parte de uma violação seríssima e de uma demora na prestação jurisdicional.
Mas sim, continua sendo importante, porque vai pautar. No Brasil menos infelizmente, mas no México, na Colômbia, na Argentina, Chile também, você tem decisões do Poder Judiciário desses países, utilizando a jurisprudência da Corte. No Brasil muito pouco. Você pode ver no Caso da Guerrilha do Araguaia, da refração do Brasil em alterar a Lei de Anistia, como a gente continua de costas para o Sistema Interamericano.
É uma postura bastante colonizada do nosso Poder Judiciário. Você vê ministros do STF que adoram fazer citação em alemão e mal conhecem as decisões [da Corte]. Não precisa falar que não reconhece porque não entende que é vinculante... Não precisa ser vinculante. Mas são decisões muito ricas, muito profundas.
Agora, é um desafio enorme, mas não dá para jogar o bebê com o berço junto. Não dá para dizer que não serve para nada. Talvez seja um misto disso a resposta: serviu para algo, mas não resolve tudo. Mas continua sendo um espaço e uma estratégia de luta bastante importante.
Os critérios tanto para a Comissão analisar um caso quanto para enviar para a Corte são pouco claros?
Sim. É importante esse debate, muito. Acho que os casos [que vão para a] Corte [têm critérios] mais evidentes. Você consegue perceber – inclusive está no próprio regulamento – essa intenção de criar precedentes. Você vê um critério de distribuição por país, uma tentativa de contrabalancear, que não necessariamente é um critério justo.
No Caso Damião Ximenes, foi muito claro isso. Não necessariamente era o caso que estava mais adiantado, não era necessariamente o caso que estava mais bem formulado e pronto para ir para a Corte. Claramente a gente via que a CIDH tinha buscado levar esse caso porque sabia que era importante ter um caso relacionado à saúde e à saúde mental.
Agora, dentro da Comissão, pra mim é muito mais nebuloso. Eu posso especular, mas eu não poderia afirmar para você porque algum caso [foi analisado]. Por alguma situação, que pode ter a ver com a complexidade do caso, com a dimensão, e com uma possível repercussão política, alguns casos demoram mais e outros avançam mais rápido.
Seria muito importante ter maior clareza do que por alguns casos tramitam [e outros não]. E de novo, a CIDH acaba reproduzindo a lógica dos poderes judiciários domésticos, onde você não sabe... Você pode imaginar porque alguns casos andam mais rápido do que outros. Porque alguns casos têm medida cautelar e outros não tem. Isso é um ponto nevrálgico, que a gente precisa ir distensionando e entendendo melhor como funciona. É importante para dar maior transparência para os procedimentos da Comissão.
Entra nessa equação questões políticas e a possibilidade do país reagir mal, como foi no caso de Belo Monte?
Claro. [Como eu te falei], dentro da Comissão e das organizações, há um antes de Belo Monte e depois de Belo Monte. Criou uma reviravolta gigantesca. Você imagina, um país como o Brasil dizer que vai retirar seu apoio financeiro e sua representação diplomática ante a OEA, por conta de uma decisão de uma medida cautelar. Você tem uma limitação disso depois da decisão de Belo Monte.
Ali ficou bastante evidenciado, por um lado, a enorme coragem da CIDH de ter dado as medidas. Foi um dos últimos casos em que eu trabalhei diretamente. Eu não lembro de nenhum caso com tanta comprovação, com tanta prova, testemunha, laudo.
Mas, por outro lado, houve uma reação dos Estados que foi em cadeia. O Brasil, naquele momento, era "Global Player", era um ator importantíssimo e relevante, não só na região, como no mundo. Nessa rabeira, entrou toda uma insatisfação de outros países com a adoção de medidas cautelares. Entrou Venezuela, Equador, Colômbia, dizendo que tinha que restringir isso, porque não dava mais. É a política real, né, a real politik.
E quais as perspectivas para os direitos humanos no continente?
O cenário neste momento, não é diferente do que a gente está vendo no mundo todo. O mundo inteiro está vivendo uma avalanche de grupos, indivíduos e movimentos abertamente contrários aos direitos humanos No Brasil, isso obviamente assusta porque ganha maior alcance, maior peso. Não é à toa que a gente está como está agora.
Na Argentina, justamente porque ela realizou um processo de memória, verdade e justiça, da época da ditadura, você não tem aqui ninguém falando na televisão de saudades da época da ditadura, ou que mataram pouco, qualquer coisa assim. O processo de memória tem a ver com você interiorizar na consciência social que essas coisas nunca mais podem acontecer, que direitos humanos são um valor positivo, como você tem claramente na Argentina, no Uruguai e no Chile. Você evita e reprime esse avanço mais descarado dos discursos de ódio.
Dito tudo isso, para dizer que o Brasil já estava na vanguarda desse bueiro que se abriu, da possibilidade de se dizer qualquer coisa. Mas mesmo com todos esses cuidados e as lições das políticas de memória, verdade e justiça, em vários países do Cone Sul, você ainda assim vê um avanço de discursos de ódio e de uma organização de grupos que não tem apreço e que não consideram que a democracia é um valor arraigado, que deve ser defendido. E muitos menos os direitos humanos.
Acho que a gente está hoje em um momento de alerta, não só na região, como também no mundo todo, o que faz ainda mais importante a luta pelos direitos humanos, as organizações de direitos humanos. Faz ainda mais urgente um olhar mais crítico e um reinventar-se, um ampliar das estratégias e das ferramentas e linguagens para quem trabalha com direitos humanos. Acho que é mais urgente ainda. A gente precisa se oxigenar, se organizar melhor com outros espaços de mobilização, porque a situação está crítica.
Todo mundo que atua, que defende direitos humanos, seja do lado da sociedade civil, seja em organismos internacionais, intergovernamentais; todo mundo que está com a cabeça e tem uma militância, ou uma preocupação com direitos humanos, deve estar muito preocupado e deve estar em alerta nesse momento.