Antecedentes da integração interamericana
As origens do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos remontam 1826, com a realização do Congresso do Panamá, convocado pelo líder latino-americano Simón Bolívar, figura fundamental em vários dos processos de independência no continente. Com a presença de representantes hispânicos da América do Sul e Central, o evento não contou com países de peso na região, como o Brasil, a Argentina e os Estados Unidos.
É somente 70 anos depois, entre outubro de 1889 e abril do ano seguinte, que a América dá um passo mais concreto em seu processo de integração. Na ocasião, 18 nações americanas reuniram-se na capital dos Estados Unidos, Washington, com a intenção de incentivar as relações recíprocas, discutir um plano de arbitragem para a solução de controvérsias e melhorar o intercâmbio comercial entre os países. A Primeira Conferência Internacional Americana dá origem à primeira organização entre estados americanos: a União Internacional das Repúblicas Americanas — posteriormente renomeada para União Panamericana.
Ao longo das décadas seguintes, diversas organizações de caráter continental foram criadas, contemplando grupos da sociedade como crianças (1927), mulheres (1928) e populações indígenas (1940), e áreas como a saúde (1902), a justiça (1906), a agricultura e a defesa (ambas em 1942). Nos primeiros anos do século XX, os países americanos também assinaram uma série de acordos, como o Tratado para Evitar ou Prevenir Conflitos entre Estados Americanos (1923) e a Convenção sobre os Direitos e Deveres dos Estados (1933).
Na segunda metade da década de 1940, no pós-Segunda Guerra, a integração do continente aprofundou-se ainda mais. Em 1945, a Cidade do México recebeu a Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz, em que 20 das nações americanas discutiram sua participação e o papel do que viria a se tornar meses depois a Organização das Nações Unidas (ONU). Dois anos depois, foi assinado no Rio de Janeiro o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, que estabeleceu princípios para a autodefesa coletiva no continente.
Carta da OEA
Em 1948, o passo definitivo: na Nona Conferência Internacional Americana, em Bogotá, Colômbia, 21 dos estados americanos formularam a carta que dá origem à Organização dos Estados Americanos (OEA), até hoje a principal entidade do continente. O documento aborda amplamente resoluções para possíveis conflitos entre as nações da região e firma o princípio da defesa coletiva do continente em caso de agressão a um membro. A Carta, posteriormente reformada em 1967, 1985, 1992 e 1993, foi ratificada pelo Estado brasileiro em 1950 e promulgada dois anos depois.
Em parte da introdução da Carta da OEA, as nações fundadoras explicitam sua visão de mundo: “Certos de que o verdadeiro sentido da solidariedade americana e da boa vizinhança não pode ser outro senão o de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade individual e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do Homem”.
Em seu artigo 2º, a Carta estabelece os propósitos básicos da nova organização. Fala-se em garantia da paz e da solução pacífica de controvérsias, na consolidação da democracia representativa e do princípio da não intervenção, em ação solidária em caso de agressão e em busca pela solução dos problemas políticos, econômicos e jurídicos surgidos entre os estados. Também são colocados como propósitos da OEA a promoção do desenvolvimento socioeconômico e cultural e a erradicação da pobreza, além da limitação de armamentos convencionais.
No artigo seguinte, o documento firma os princípios que regem a Organização dos Estados Americanos, reiterando algumas das ideias já estabelecidas no artigo anterior, como o respeito à soberania, a eliminação da pobreza crítica, a solidariedade mútua em caso de agressão e a resolução de conflitos pacificamente. Também é enfatizado o direito internacional como “norma de conduta dos Estados em suas relações recíprocas”; exaltada a importância da cooperação econômica entre as nações; e proclamados “os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo”. Além da universalidade dos direitos humanos, a Carta da OEA estabelece uma série de direitos sociais.
Na reforma da Carta em 1992, no chamado Protocolo de Washington [em espanhol], é incluída uma cláusula democrática. O artigo 9º estabelece que “um membro da Organização, cujo governo democraticamente constituído seja deposto pela força, poderá ser suspenso do exercício do direito de participação nas sessões” dos diferentes órgãos da OEA.
Também no documento, a partir de suas reformas, são introduzidos ou incluídos órgãos como a Assembleia Geral, estrutura suprema da OEA, em que cada país tem direito a um voto — criada a partir da reforma de 1967; o Conselho Permanente, que é ocupado por embaixadores indicados pelos Estados e trata dos assuntos administrativos e políticos da OEA; a Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, que funciona como órgão de consulta e é convocada em casos de natureza urgente; e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos — que fora criada em Reunião de Ministros de 1959, e que a partir da reforma de 1967 passa a ser um órgão principal e autônomo da OEA.
Todos os 35 países independentes das Américas ratificaram a Carta da OEA e são membros da organização. Em 1962, o governo de Cuba foi excluído de sua participação na OEA, ainda que o Estado continuasse formalmente como membro da organização; em 2009, a resolução que estabelecia a suspensão teve seu efeito cessado [formato .doc], mas o regime cubano ainda não voltou a mandar representantes para os fóruns do órgão.
Em julho de 2009, Honduras foi suspensa da organização, por conta do golpe militar sofrido pelo presidente Manuel Zelaya. Após a realização de eleições, o país foi readmitido no órgão, em junho de 2011.
Em abril de 2017, o governo de Nicolás Maduro na Venezuela apresentou formalmente documento denunciando a Carta da OEA, o que resultaria na saída do país da Organização dos Estados Americanos. A OEA, porém, reconhece Juan Guaidó como mandatário legítimo do país. O autoproclamado presidente venezuelano anulou a denúncia da Carta da OEA. Com isso, a despeito do regime de Maduro considerar que o Estado não faz mais parte da organização, a Venezuela segue tendo um representante nos fóruns do órgão.
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
Na mesma Conferência de Bogotá, em 1948, as nações americanas estabeleceram documento que deu mais um passo na delineação dos direitos humanos no continente: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem — adotada seis meses antes da redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em seu texto introdutório, fala em “proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam progredir espiritual e materialmente e alcançar a felicidade”.
A Declaração Americana estabelece 27 direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Entre eles, estão o direito à vida, segurança, liberdade e integridade, à igualdade perante a lei, à educação, ao trabalho e a uma justa remuneração e à justiça, entre outros. O texto pontua, em seu 28º artigo, que “os direitos do homem estão limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem-estar geral e do desenvolvimento democrático”. Além disso, em seu segundo capítulo, a Declaração também determina 10 deveres.
Convenção Americana sobre Direitos Humanos e protocolos adicionais
21 anos depois da adoção da Carta da OEA e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, os países americanos reuniram-se em San José, capital da Costa Rica, para a Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. Realizada entre 7 e 22 de novembro de 1969, a conferência adotou, em seu último dia, o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
O tratado interamericano de direitos humanos, proposto em um contexto de regimes ditatoriais na região — apoiados pela potência maior do continente, os Estados Unidos —, somente entrou em vigor nove anos depois. Isso ocorreu em 18 de julho de 1978, quando o Peru adotou o instrumento, na 11ª ratificação.
O Brasil, que só voltou a ser uma democracia em 1985, tardou em mais sete anos após o fim da Ditadura Militar para adotar a Convenção. O Pacto de San José, como é conhecido o instrumento, entrou em vigor no país em 25 de setembro de 1992, já durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Em seu primeiro capítulo, a Convenção Americana estabelece dois deveres centrais: as obrigações de respeitar e garantir, e de adotar disposições de direito interno.
O artigo 1.1 institui a obrigação de que os Estados-Partes do tratado “[respeitem] os direitos e liberdades nel[e] reconhecidos e [garantam] seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição”, sem nenhum tipo de discriminação. O artigo 1.2 destaca que pessoa é todo ser humano.
Já o artigo 2º estabelece que “os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades”.
O segundo capítulo da Convenção tem 22 artigos e estabelece uma série de direitos civis e políticos. Entre eles estão os direitos à vida, à integridade pessoal, proibição da escravidão e servidão, à liberdade pessoal, às garantias judiciais, liberdade de consciência e religão, liberdade de pensamento e de expressão, da criança, à propriedade privada, de circulação e residência, políticos, de igualdade perante a lei e de proteção judicial, entre outros.
O capítulo seguinte fala de direitos econômicos, sociais e culturais (DESCs), sem listá-los propriamente. O único artigo (26) determina que os Estados adotem providência para, progressivamente e na medida de seus recursos, alcançar a plena efetividade desses direitos. Os DESCs são mais profundamente explorados no Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos (Protocolo de San Salvador), elaborado em 1988 e que entrou em vigor em novembro de 1999.
No quarto capítulo, a Convenção aborda a suspensão de garantias em situações excepcionais, listando quais direitos não estão sujeitos a restrições mesmo nesse contexto. Também estabelece que os estados de um país federativo, como o Brasil, também devem respeitar as disposições do tratado. Além disso, dispõe sobre a interpretação e aplicação da Convenção, estabelecendo a possibilidade de novos direitos serem incluídos no regime de proteção do tratado. No capítulo seguinte, o texto trata da correlação entre os direitos e deveres, estabelecendo que “os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais”.
Em sua parte II, a Convenção aborda a organização, as funções, a competência e o processo dos dois órgãos “competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes nesta Convenção”: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), criada a partir da Convenção. A CIDH e a Corte IDH compõem o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIDH) — leia mais sobre os dois órgãos aqui.
Os capítulos que abordam o funcionamento dos dois organismos também estabelecem parte do rito do sistema de petições individuais, que é um dos elementos do SIDH. Leia mais sobre a tramitação de uma petição/caso no Sistema Interamericano aqui.
Além do Protocolo de San Salvador (1998), sobre direitos econômicos, sociais e políticos, há uma série de outros documentos adicionais à Convenção Americana. Entre eles, estão a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos refente à Abolição da Pena de Morte (1990), a Convenção Interamericana Sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994), a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) e a Convenção Interamericana Para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999). O Brasil ratificou todos esses instrumentos.
Até 2020, 24 dos 35 países da OEA ratificaram a Convenção Americana, mas dois a denunciaram. Os Estados Unidos, cujo presidente Jimmy Carter chegou a assinar o tratado, nunca ratificaram o instrumento, assim como o Canadá.
Em maio de 1998, Trinidad e Tobago denunciou a Convenção, por não aceitar o posicionamento da Comissão e da Corte Interamericana sobre o processo de imposição da pena de morte no país, deixando de ser parte do tratado a partir do ano seguinte.
Em setembro de 2012, o então presidente venezuelano Hugo Chávez seguiu o mesmo caminho, por considerar que os organismos do Sistema Interamericano eram “instrumentos do imperialismo”. A saída foi efetivada após 12 meses. Em 2019, o representante do autoproclamado presidente Juan Guaidó na OEA anunciou que o país voltaria a ser parte do tratado, o que ainda não se efetivou.
Foto em destaque: Divulgação/OEA